TEL-AVIV — Por três meses, o primeiro-ministro Israel, Binyamin Netanyahu, celebrou publicamente a derrocada do Hamas no norte de Gaza ao mesmo tempo que desconsiderou alertas relatando que uma severa escassez de alimentos e a ampliação do vácuo de poder estão criando um estado de anarquia no enclave.
Mas após o desastre envolvendo um comboio de ajuda na Cidade de Gaza e em meio a relatos de crianças palestinas morrendo de subnutrição, Netanyahu está diante de um acerto de contas com a comunidade internacional — sob crescente pressão dos Estados Unidos para pôr fim à crise de fome e restaurar a ordem no território devastado. A crise, afirmam autoridades e ex-autoridades, decorre do fracasso de Israel em desenvolver uma estratégia funcional para o pós-guerra e planejar-se para enfrentar as consequências de uma ocupação militar sem objetivo claro.
O ex-subchefe do Conselho de Segurança Nacional de Israel Eran Etzion afirmou que a situação no norte de Gaza sublinha “a profundeza do lamaçal, do caos e da incapacidade de simplesmente reinstituir qualquer tipo de normalidade” após a conclusão dos estágios mais intensos dos combates.
“Evitar uma crise de fome é responsabilidade legal de Israel — não fazê-lo contraria normas que Israel finge sustentar — e também uma medida estratégica, para evitar pressão internacional”, acrescentou Etzion.
A pressão continuou a aumentar na quinta-feira, conforme o líder da maioria no Senado americano, Charles Schumer (democrata de Nova York), alertou que Israel arrisca se transformar em “pária” internacional se Netanyahu permanecer no poder. A fala contundente do judeu que ocupa a função de autoridade mais elevada nos EUA atualmente foi o sinal mais claro até aqui do exaspero de Washington em relação ao líder israelense e à maneira que ele conduz a guerra em Gaza.
Mas o caos no norte do enclave faz surgir questões maiores para o governo de Israel — partido entre um establishment de segurança que exige uma estratégia de saída e uma coalizão cujos membros de extrema direita sonham em ocupar a Faixa de Gaza — que o gabinete não está preparado para responder. Em entrevista ao jornal Politico, na quinta-feira, Netanyahu rejeitou novamente entregar o poder para a Autoridade Palestina, considerada por Washington a única alternativa viável ao Hamas.
Quando questionado sobre a crise de fome no norte de Gaza, Netanyahu afirmou: “Não é essa a informação que temos, e nós monitoramos proximamente. Mais importante, essa não é nossa política. Nossas políticas são fazer entrar o máximo de ajuda humanitária que conseguirmos”.
Israel tem trabalhado para enfraquecer a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), a entidade que possui mais experiência em fornecer ajuda e outros serviços em Gaza. Os EUA, entre outros doadores internacionais, suspenderam o financiamento da agência em janeiro, depois de Israel acusar mais de uma dúzia de seus funcionários de participar dos ataques de 7 de outubro. A UNRWA demitiu os funcionários supostamente conectados com o 7 de Outubro e está investigando as denúncias.
Mais de 150 instalações da UNRWA foram atingidas na guerra e pelo menos 165 funcionários foram mortos, segundo a agência. Um ataque israelense contra um centro de distribuição de alimentos em Rafah, na quarta-feira, matou um funcionário e deixou outros 22 feridos. Israel afirmou que o alvo era o comandante do Hamas responsável por desviar a ajuda para o grupo; o Hamas identificou o homem como subchefe da polícia na área.
O porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, John Kirby, afirmou na quinta-feira que o governo Biden está “muito preocupado” a respeito do ataque da quarta-feira em Rafah e gostaria de ver Israel conduzir “uma investigação ágil e ampla para determinar exatamente o que ocorreu”.
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Com a UNRWA efetivamente escanteada, o governo israelense está paralisado e busca alternativas conforme grupos de ajuda e aliados alertam que seu tempo está se esgotando. Muitas das 300 mil pessoas que permanecem no norte de Gaza deixam de consumir pelo menos uma refeição diariamente e estão tendo de comer ração de animais e plantas silvestres para sobreviver. Pelo menos 27 pessoas, a maioria crianças, morreram de desnutrição ou desidratação nas semanas recentes, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza.
“Se não aumentarmos exponencialmente o tamanho da ajuda às áreas do norte, a crise de fome será iminente”, afirmou a diretora do Programa Alimentar Mundial na ONU, Cindy McCain, em um comunicado emitido na segunda-feira.
Enquanto EUA, Europa e países árabes enfrentam dificuldades para aumentar a assistência por via aérea e estabelecer um novo corredor marítimo, o governo israelense “não trabalha para transformar os significativos sucessos táticos do Exército em algo sustentável”, afirmou Israel Ziv, ex-chefe da Diretoria de Operações das Forças Armadas Israelenses.
A escala da crise humanitária entrou em foco em 29 de fevereiro, quando milhares de palestinos famintos avançaram sobre um comboio de fornecimento de alimentos em meio à escuridão da madrugada. As forças israelenses abriram fogo, e mais de 100 pessoas foram mortas, de acordo com autoridades de saúde palestinas. O porta-voz militar de Israel Daniel Hagari afirmou que as forças israelenses só dispararam tiros de alerta e que a maioria dos mortos foi pisoteada em um tumulto. Médicos palestinos afirmaram que a maioria das vítimas que eles socorreram tinha sido baleada. Um grupo de especialistas da ONU classificou o episódio como um “massacre”.
A sequência dos acontecimentos permanece incerta, afirmaram ao Washington Post duas autoridades graduadas do governo Biden. Mas, segundo as fontes, Israel criou as condições que ocasionaram a tragédia. Três dias depois, na reprimenda mais contundente do governo americano a Israel até aqui, a vice-presidente Kamala Harris pediu um “cessar-fogo imediato” e mais ajuda para Gaza — “sem desculpas”, afirmou ela.
O presidente Joe Biden anunciou posteriormente a construção de um píer na costa de Gaza e o estabelecimento de um corredor marítimo de ajuda, cuja responsabilidade pela segurança caberia a Israel.
“Este caos foi fabricado por Israel”, afirmou uma das autoridades do governo americano, falando sob condição de anonimato para discutir assuntos sensíveis. “Em última instância, Israel é responsável pela fome massiva e a escassa ajuda que entra.”
Netanyahu permanece desafiador. Em um discurso pronunciado na terça-feira para o Comitê Americano-Israelense de Assuntos Públicos (AIPAC), entidade que faz lobby pró-Israel nos EUA, o primeiro-ministro afirmou que a comunidade internacional não pode “sustentar que Israel deve destruir o Hamas e depois se opor a Israel quando o país adota as medidas necessárias para alcançar esse objetivo”.
Netanyahu também prometeu ir adiante com a operação militar em Rafah, no sul de Gaza, onde cerca de 1,5 milhão de palestinos deslocados buscaram refúgio. As Forças Armadas de Israel afirmaram que civis serão colocados em “ilhas humanitárias” no centro do território antes de uma invasão.
O governo de Netanyahu não foi envolvido no projeto do píer, afirmou ao Post uma autoridade israelense, falando sob condição de anonimato por não estar autorizada a conversar com a imprensa. Mas a fonte afirmou que Israel vê com bons olhos a criação do corredor marítimo de ajuda, pelo qual o país vinha fazendo lobby desde as primeiras semanas da invasão terrestre.
Grupos de ajuda humanitária e diplomatas afirmam que envios aéreos e marítimos não substituem um acesso terrestre contínuo e desimpedido. Antes da guerra, em média 500 caminhões entravam em Gaza diariamente; em cinco meses de conflito, as restrições de Israel mantiveram a média bem abaixo dos 200 que os israelenses prometeram permitir. Em meados de fevereiro, menos de 10 caminhões cruzaram em certos dias, em parte por causa de ataques israelenses contra comboios de ajuda e as forças policiais — os últimos vestígios do governo do Hamas — que os protegiam. Conforme a segurança colapsou no norte de Gaza, os envios de ajuda cessaram.
Israel ainda tem de encontrar um novo parceiro “em campo para entregar a ajuda de uma maneira melhor”, afirmou a autoridade israelense. “Mais adiante, o objetivo é haver alguém (…) que será capaz de manter a lei e a ordem em torno do fornecimento (de ajuda) e que, ainda mais adiante, coloque Gaza numa trajetória diferente.”
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Quem liderará esse esforço — e como Israel pretende encontrar essas pessoas — permanece incerto. E o governo israelense não estabeleceu nenhum cronograma concreto para alcançar os principais objetivos da guerra: destruir o Hamas e libertar os mais de 100 reféns ainda mantidos em Gaza.
“Não haver nenhuma estratégia para ‘o dia seguinte’ cria uma situação na qual as Forças Armadas começam a andar em círculos”, afirmou o ex-comandante da divisão de Gaza do Exército israelense Gadi Shamni.
Há pelo menos dois meses Israel tem buscado parcerias com empresários locais para levar de caminhão a ajuda para o norte de Gaza. O programa-piloto — que foi mantido fora do radar até o incidente mortífero no comboio — fornece algumas pistas sobre os planos de Israel para o pós-guerra.
A iniciativa envolveu originalmente palestinos donos de empresas, que alocaram 20 caminhões por dia, afirmou um empresário envolvido no comboio mortífero de fevereiro, falando sob condição de anonimato para discutir a situação sensível. O empresário tinha sido contratado no mês passado pela Coordenação de Atividades do Governo nos Territórios (COGAT), um braço do Ministério da Defesa de Israel, e questionado sobre a possibilidade de entregar alimentos no norte de Gaza.
Apesar de temer saques, afirmou o empresário, ele concordou em assumir o trabalho esperando que o fluxo de mantimentos ajudasse a baixar os preços cada vez mais altos no mercado clandestino de Gaza. Após o desastre em 29 de fevereiro, ele parou de organizar comboios: “Nunca espere lei e ordem em meio à fome”, afirmou ele, notando que outros empresários palestinos ainda estão envolvidos nos esforços.
Mais de 150 caminhões de ajuda, a maioria do setor privado, entraram no norte de Gaza nas duas semanas recentes, de acordo com a COGAT. Sob novos protocolos implementados este mês “a pedido do governo americano”, afirmaram as Forças Armadas de Israel em um comunicado, os caminhões são inspecionados na passagem fronteiriça de Kerem Shalom, no sul israelense, e então acompanhados pelos militares por cerca de 50 quilômetros ao longo da cerca de segurança. Os caminhões entram em Gaza por uma nova passagem — chamada “96″, próxima ao Kibutz Be’eri — e depois seguem sem escolta até o norte do enclave.
Seis caminhões do Programa Alimentar Mundial percorreram o corredor na terça-feira, disse Hagari a jornalistas internacionais na quarta-feira. “Nós, entidades internacionais e outros países precisamos encontrar juntos uma alternativa para o norte”, afirmou ele. “E encheremos Gaza de ajuda.”
Mas fazer caminhões entrar no enclave é apenas o primeiro de uma série de desafios que se acumulam.
“O objetivo é ter cada vez mais contêineres, mas a dúvida sobre quem os receberá, garantirá sua segurança e os classificará persiste. E Israel continua sempre voltando à estaca zero”, afirmou o ex-chefe da divisão para os palestinos da inteligência militar de Israel Michael Milshtein.
O programa-piloto de distribuição de ajuda atraiu nova atenção para o plano de pós-guerra em Gaza definido opacamente por Netanyahu no mês passado, que convocou uma parceria com “entidades locais com capacidade gerencial” — o que foi amplamente interpretado como uma referência a algumas das famílias ou clãs mais poderosos de Gaza, que no passado exerciam influência sobre diferentes partes do enclave e já confrontaram o Hamas.
O Hamas alertou esta semana que qualquer palestino que trabalhar juntamente com Israel para dar segurança aos comboios de ajuda será considerado colaborador e se tornará alvo.
“A tentativa (de Israel) de comunicar-se com líderes e clãs de algumas famílias para operar dentro da Faixa de Gaza é considerada colaboração direta com a ocupação e uma traição à nação que nós não toleraremos”, afirmou o website Al-Majd, afiliado ao Hamas, citando uma autoridade militar anônima.
E o Hamas não é o único obstáculo. “É impossível encontrar uma família capaz de exercer esse tipo de controle”, afirmou uma autoridade israelense a par da situação, falando sob condição de anonimato para discutir o assunto sensível.
Israel tentou se aliar a clãs palestinos em várias ocasiões — mais recentemente nos anos 80 — como alternativa a movimentos nacionais como o Fatah e a Autoridade Palestina.
“Isso já foi tentado”, afirmou Ziv, o general israelense aposentado, acrescentando que esse plano arrisca “transformar Gaza em uma Somália, com todas as famílias brigando entre si, armando-se, e Israel não intervindo”.
Sem alguma estratégia de longo prazo mais factível, afirmou Milshtein, o ex-agente de inteligência israelense, os militares de Israel poderão acabar ocupando Gaza indefinidamente — o que Washington afirma ser inaceitável.
“Israel não está se esforçando para encontrar um parceiro com que possa trabalhar em Gaza; em vez disso, está começando a fazer todo tipo de acordo com clãs e empresários palestinos (…) esperando que alguma magia aconteça”, afirmou ele. “A ideia de que isso pode funcionar é uma ilusão.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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