Israel está abrindo mão de seu futuro democrático e inovador; leia a coluna de Thomas Friedman

Cada vez mais, jovens ortodoxos não recebem formação cívica nem aprendem a respeito de separação entre os poderes ou sobre o funcionamento da democracia liberal

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Por Thomas Friedman
Atualização:

(Esta coluna de Thomas Friedman foi dividida em três partes para facilitar a leitura; este é o segundo capítulo)

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THE NEW YORK TIMES - O presidente americano, Joe Biden, tem ficado cada vez mais confiante em lidar tanto com Israel de Binyamin Netanyahu quanto com a Arábia Saudita de Mohamed Bin Salman (MBS) — dando puxões de orelha e impondo limites quando necessário e buscando promover a construção de pontes dentro de suas sociedades e entre elas (e com os EUA) onde possível. Mas ainda há adiante muito envolvimento necessário para ajudar a manter essa região — e particularmente esses dois países — mais inclinada ao pluralismo, à integração e à tolerância.

Permitam-me mostrar-lhes por que, em detalhe, com alguns retratos da minha viagem.

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Na minha primeira manhã em Tel-Aviv, eu me levantei às 7h e fui caminhar no calçadão ao longo da praia, para conseguir meus 10 mil passos do dia. Num determinado momento, duas jovens israelenses vestidas em trajes de mergulho pretos passaram por mim carregando pranchas de surfe sobre as cabeças. Eu não pude deixar de rir comigo mesmo: será que Theodor Herzl, quando concebeu a ideia de um Estado judaico moderno, na Europa do século 19, imaginou uma visão como esta?

Dois judeus ultraortodoxos abatem galinhas brancas enquanto crianças observam no bairro de Mea Shearim, em Jerusalém, em 2005 Foto: Gil Cohen Magen / Reuters

Alguns minutos depois, outras duas jovens se aproximaram. Elas pareciam árabes-israelenses muçulmanas, cobrindo os cabelos com véus pretos e calçando tênis sob os longos vestidos.

Elas dispararam em mim um outro pensamento: este país — toda esta região — só prosperará se essas quatro mulheres puderem compartilhar do mesmo calçadão de praia com a mesma dignidade, em uma sociedade e cultura em que a máxima “viva e deixe viver” é valorizada. Todas as pessoas estão agora entrelaçadas demais para qualquer outro modelo. Mas viver e deixar viver requer trabalho e uma liderança correta, seja em nível de chefes de Estado ou do condomínio.

Seculares x Ortodoxos

Um velho amigo meu, Uri Dromi, ex-piloto da Força Aérea israelense, relatou-me a experiência que teve ao se deparar pessoalmente com a necessidade do viva e deixe viver em Israel hoje em dia. Duas semanas atrás, ele e alguns colegas da Força Aérea decidiram visitar Bnei Brak, uma cidade de população predominantemente ultraortodoxa a leste de Tel-Aviv que apoia intensamente o esforço de Netanyahu de reformar o Judiciário, dada a frequência com que a Justiça intervém para conter o poder e os privilégios dos judeus ultraortodoxos. Dromi tem mobilizado outros aviadores aposentados para se opor ao esforço de Netanyahu e foi a Bnei Brak tentar entender como pode ser possível “que, sob o mesmo céu israelense, haja pessoas que pensam de modo tão distinto do meu”, explicou Dromi.

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Na noite anterior à visita, Dromi ligou para a padaria kosher Hazvi Bakery, para encomendar dezenas de chalás com bolsas de plástico individuais com logo da padaria kosher. Ele usou os pães judaicos como cartões de visita, colocando uma mensagem em cada uma das sacolas de chalá: “O Shabat mora em todos os nossos corações. Assim como a democracia”.

Entregar as chalás ocasionou várias conversas que fizeram Dromi refletir. Ele se recordou de uma mulher ultraortodoxa dizendo-lhe: “Você está empurrando sua agenda progressista, e eu tenho que me defender”. A mulher acrescentou: “Meu marido estuda o dia inteiro, e eu sou engenheira de computação”. Quando Dromi perguntou-lhe por que seu marido não trabalha, ela respondeu: “Porque depois do Holocausto nós precisamos de famílias grandes, e alguém tem de manter acessa a tocha da Torá”. Para ouvidos progressistas, notou Dromi, “isso pode parecer nonsense, mas os ortodoxos realmente acreditam profundamente nisso”.

Dromi contou que, quando se sentou em um banco, um menino ultraortodoxo se aproximou dele e lhe perguntou, “O que é democracia?”.

“Isso tocou meu coração”, afirmou Dromi. “Eu falei, ‘Na democracia, todos são iguais, como eu e você, e se algum problema acontece entre nós, nós vamos ao tribunal’. Ele disse ter escutado que não deve ir a um tribunal do governo israelense porque ‘é uma corte gói’”, querendo dizer que o Judiciário de Israel serve aos gentios.

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Uma crise política estafante

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Um dia depois, o presidente de Israel, Isaac Herzog, disse-me que na maioria das sextas-feiras ele vai ao mercado local acompanhado de sua mulher comprar alimentos. Herzog contou que atualmente a maior dúvida que escuta de seus colegas de compras toda vez que vai ao mercado, a respeito das negociações que ele convocou para intermediar algum tipo de pacto sobre a reforma judicial, é, “Quando haverá um acordo?”.

Eu estou convencido de que muito mais indivíduos em Israel e na região estão cansados de odiar um ao outro e transcenderam divergências políticas — ou pelo menos certamente querem isso — dentro de suas sociedades e entre elas. Essas pessoas vivem realidades muito mais entrelaçadas do que se poderia pensar.

Um homem levanta um cartaz representando o premiê israelense Binyamin Netanyahu e o traficante Pablo Escobar em um protesto em Tel Aviv, em junho de 2023 Foto: Jack Guez / AFP

Tanto quanto meios de comunicação e políticos israelenses disseminam suas ideologias diariamente, a sociedade israelense heterogênea é escancarada todas a noites no horário nobre da TV: uma chef celebridade ultraortodoxa aparece no Canal 1, enquanto outra chef celebridade, drusa-israelense, aparece outra emissora — e o programa de uma estrela do jornalismo árabe-israelense é exibido em outra.

E nesta semana o noticiário esportivo foi dominado pela jornada dos sonhos do time de futebol israelense sub-20, que venceu o Brasil por 3 a 2 nas quartas de final da Copa do Mundo da categoria na Argentina. O time israelense é composto por judeus religiosos, judeus seculares e três árabes-israelenses. Dois dos três gols contra o Brasil foram marcados por árabes-israelenses, ocasionando uma ola no Twitter israelense para enfatizar: “Sem árabes, sem gols”.

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Infelizmente, desde 1996 a principal estratégia de Netanyahu para vencer eleições e governar tem sido dividir, dividir e dividir — a esquerda da direita, judeus de palestinos árabes, seculares de religiosos, ashkenazim de sefardim — tentando ganhar cada disputa eleitoral sempre com apenas 50,001%. (Como Donald Trump.)

Netanyahu dificilmente é o único problema, mas ele tem sido uma figura imensa na vida política israelense desde que venceu sua primeira eleição — e agora está no sexto mandato. Netanyahu é inteligente e possui um talento político raro, mas sua paranoia, sua desonestidade e agora seu medo de ir para a cadeia sob acusações de corrupção o tornaram uma figura tóxica, cuja prioridade é aferrar-se ao poder a qualquer custo, não unir a nação.

Desta vez, contudo, eu acho que Bibi causou um dano demais ao coração do organismo político de Israel.

Um dano ao coração da democracia

Eu caminhei junto com a marcante manifestação pró-democracia em Tel-Aviv na noite do sábado, 20 de maio — o 20.º protesto semanal consecutivo que leva dezenas de milhares de israelenses às ruas para resistir à tentativa de golpe de Netanyahu no Judiciário. Um cartaz em hebraico capturou particularmente minha atenção: “Bibi, você provocou a geração errada”.

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Certamente ele o fez. Eu observava a manifestação junto com um dos principais colunistas de Israel, Nahum Barnea, do jornal Yedioth Ahronoth, e sua mulher, Tammy. Em um determinado momento, Tammy olhou em volta toda aquela energia dos jovens manifestantes entoando em hebraico,“DE-MO-CRAT-YA”, e me comentou: esta é a tentativa dos israelenses “de consertar o dano causado pelo assassinato de Rabin”.

Eu nunca tinha escutado isso. Tammy explicou que o assassinato do primeiro-ministro Yitzhak Rabin, em 1995, por um ultranacionalista, não foi um ataque apenas contra o processo de paz de Oslo, que Rabin liderava, mas também contra o próprio processo democrático de Israel.

O assassino de Rabin votou com uma bala, e então, seus aliados políticos, alguns dos mesmos supremacistas judeus que atualmente ocupam cargos no gabinete israelense, votaram com suas cédulas, que pavimentaram o caminho para o primeiro dos seis mandatos de Netanyahu.

Desde então, colonos judeus têm sido implantados cada vez mais profundamente na Cisjordânia, tornando uma solução de dois Estados quase impossível, e cada vez mais recursos têm sido transferidos do Estado secular para os judeus ultraortodoxos, transformando-os em fazedores de líderes na política israelense.

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Uma nova geração mobilizada contra o autoritarismo

Agora, uma geração mais jovem de israelenses — muitos deles nascidos após a morte de Rabin — está se levantando e se juntando ao centro da sociedade israelense para dizer que todo esse desvio da democracia tem de parar.

Como em todos os movimentos desse tipo, o essencial é transformar essa vigorosa energia das ruas, dessa nova coalizão entre centro-esquerda e centro-direita, numa energia política permanente capaz de, no futuro, conquistar o gabinete pelo voto e ser o motor de novas abordagens “viva e deixe viver” dentro de Israel — e talvez, algum dia, também entre israelenses e palestinos. Veremos.

Eu direi, contudo, o seguinte: tendo observado em primeira mão os movimentos de protesto no Egito, em Hong Kong e em Istambul, posso afirmar que aqui a coisa é totalmente diferente. As manifestações em Israel são lideradas por uma coalizão entre os mais proeminentes profissionais da tecnologia e da guerra, que agora acionam as capacidades que aperfeiçoaram competindo com o Vale do Silício ou em combates noturnos no Vale do Bekaa para deixar claro a Netanyahu que eles são capazes de fechar Israel e farão isso — das instituições do governo à economia startup, à Força Aérea — se ele tentar acabar com a independência da Suprema Corte.

Israelenses protestam em Tel Aviv contra reforma do Judiciário proposta por Netanyahu: mobilização de meses para impedir autoritarismo  Foto: Corinna Kern/Reuters

Ouçam alguns dos organizadores dos protestos que vocês entenderão quão singular este movimento é. “Eu comecei como piloto da Força Aérea e fundei seis empresas”, afirmou Gigi Levy-Weiss. “Nós criamos 50 mil empregos. Quando nós começamos, todos percebemos que não podemos mais ficar à margem.” Desta vez, “nós não pararemos após evitar essa lei”, mas, em vez disso, “pensaremos sobre como construir a infraestrutura” que preservará permanentemente a democracia de Israel, afirmou ele.

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A pilota Shira Eting, que comanda helicópteros Cobra na Força Aérea israelense, afirmou: “Eu pude me tornar pilota por causa de uma decisão da Suprema Corte. Eu fui a 19.ª mulher a se formar na academia da Força Aérea. Sem a Suprema Corte, minha vida teria sido diferente. Eu sou casada com uma mulher. Se eu quiser ser mãe da minha filha, eu preciso” da proteção da Suprema Corte dos ultraortodoxos que se opõem a tudo isso, acrescentou ela. Graças à Suprema Corte de Israel, “as pessoas podem tornar seus sonhos realidade”.

David Gillerman, que serviu na unidade especial de busca e resgate da Força Aérea israelense e é agora um grande empreendedor imobiliário em Israel, contou-me que disse aos seus filhos que estava se envolvendo profundamente com o movimento de protestos pró-democracia “para que eles tenham um país de verdade no qual possam crescer. Esta é a nossa nova guerra de independência. Tudo isso despertou um gigante adormecido”.

Bibi definitivamente mexeu com os cowboys e cowgirls errados.

Ortodoxos de costas para o futuro

Mas nunca, nunca subestimem até onde Netanyahu poderá chegar para continuar no poder. Para manter sua coalizão unida, ele aprovou um orçamento duas semanas atrás que transfere quantidades massivas de shekels para as escolas ultraortodoxas de seus aliados, que rejeitam o currículo básico israelense, para estudantes de religião e adultos que não servem ao Exército e para colonos judeus na Cisjordânia.

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Judeus ortodoxos protestam pela integridade de escola religiosa feminina, em Bnei Brak, Israel Foto: Ariel Schalit/AP

“O novo orçamento do governo inclui um aumento sem precedentes em alocações (de recursos) para os colonos e os ultraortodoxos, incluindo financiamento pleno para escolas que não ensinam inglês, ciências e matemática. Esse aumento orçamentário, sozinho, equivale a mais do que o total investido por Israel anualmente em educação superior — ou a 14 anos de financiamento completo para o instituto Technion, o MIT de Israel”, afirmou Dan Ben-David, macroeconomista que tem estudado a interação entre a demografia de Israel e a educação na Universidade de Tel-Aviv, onde ele dirige o Instituto Shoresh para Pesquisa Socioeconômica. “É pura doideira.”

A fatia ultraortodoxa da população israelense dobra a cada 25 anos, acrescentou Ben-David. “Hoje, 24% dos bebês são filhos de ultraortodoxos. Até 2050, eles serão 50%. Nenhuma dessas crianças recebe formação cívica nem aprende a respeito de separação entre os poderes ou sobre o funcionamento da democracia liberal — além disso, os jovens ultraortodoxos não recebem as ferramentas para prosperar em uma economia moderna”, disse-me ele.

“Se nós não nos organizarmos para dar um jeito nisso agora, este será o último prego no caixão do nosso futuro”, afirmou ele.

Um rival de frente para as oportunidades

Então imaginem o quão bizarro foi, quando dei por mim — três dias depois de conversar com Ben-David em Tel-Aviv — e estava na sala de estar do ministro da Educação da Arábia Saudita, Yousef al-Benyan, ouvindo-o descrever como seu país está reformulando suas escolas públicas e currículos universitários para desenvolver uma força de trabalho de homens e mulheres capazes de competir em uma era pós-petróleo.

As cartilhas escolares foram reeditadas para eliminar materiais que promoviam intolerância em relação a outras fés ou subserviência das mulheres, e o governo está dobrando a aposta no treinamento de professores, tudo com o objetivo de “inculcar proficiência tecnológica juntamente com pensamento crítico, resolução de problemas e capacidades analíticas”, para alinhar o sistema de educação saudita “a padrões competitivos internacionais”, conforme coloca um estudo recente do Oxford Business Group. A Arábia Saudita ainda tem um longo caminho a percorrer nesse sentido, mas em comparação com uma década atrás, houve uma revolução na educação.

E como praticamente todos os outros ministros com que conversei em Riad, Al-Benyan transbordava de orgulho em razão de uma equipe nacional de alunos e alunas de ciências e matemática que ganhou 27 prêmios na Feira Internacional de Ciências e Engenharia Regeneron, em Dallas. Mais de 70 países estavam competindo, na maior disputa do mundo sobre conhecimento em ciências entre estudantes pré-universitários.

É interessante notar que Al-Benyan dirigia anteriormente uma das empresas mais importantes no país, a Corporação Saudita de Indústrias Básicas (SABIC), uma das petroquímicas mais diversificadas do mundo. A liderança saudita quis um ministro da Educação que entende o que é necessário para conseguir um bom emprego no setor privado atualmente, porque acabaram-se os dias em que bastava obter um bacharelado em estudos islâmicos para conseguir um emprego confortável no governo.

Isso é justamente o oposto do que Israel está fazendo com sua juventude religiosa.

Vai entender. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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