Restaurar a segurança do norte de Israel. O objetivo da atual invasão no Líbano é o mesmo das operações israelenses anteriores no país vizinho. Os contextos geopolíticos e os adversários mudaram, mas desde 1978 o Exército israelense entra em território libanês com essa justificativa. Com a atual, Israel busca cumprir esse objetivo pela quarta vez.
Mais do que o objetivo em comum, as operações anteriores são cruciais para entender o presente. Elas incluem uma ocupação de Israel no sul do Líbano durante 18 anos e uma guerra contra o Hezbollah em 2006, encerrada com uma resolução da ONU que nunca foi cumprida.
Navegue neste conteúdo
A ocupação é descrita por historiadores e analistas geopolíticos como uma condição que favoreceu o surgimento e o fortalecimento do Hezbollah. Já a guerra de 2006 prenunciou o enfraquecimento da ONU como instituição mediadora de conflitos. “Se olhamos para o passado, a ONU teve um papel importante para encerrar as invasões. Hoje, isso não é mais possível, em parte porque Israel diz ‘vocês falharam no passado’”, diz a professora de relações internacionais da Ibmec e pesquisadora associada do Instituto Brasil-Israel, Karina Calderón.
À medida que Israel bombardeia e invade o Líbano e o Hezbollah continua lançando mísseis no norte do país, paira a pergunta: o que as operações anteriores podem dizer sobre a atual?
Operação Litani (1978)
Em março de 1978, um grupo da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), com membros baseados no Líbano, entrou em Israel e matou 35 civis em uma estrada nos arredores de Tel Aviv. Em resposta, Israel lançou a Operação Litani no dia 14 de março. O objetivo era destruir as bases da OLP no Líbano e restaurar a segurança no norte do país.
A operação envolveu cerca de 25 mil soldados israelenses no auge, segundo historiadores. Durante a operação, Israel avançou com tropas até o rio Litani, próximo a cidade de Tiro, hoje alvo de bombardeios no sul do Líbano.
Apenas cinco dias depois de Israel enviar tropas ao país, o Conselho de Segurança da ONU adotou a Resolução 425, que determinou a retirada das tropas israelenses e criou a Força Interina da ONU no Líbano (Unifil), com o propósito determinado de garantir a saída das tropas israelenses e restaurar a paz na região. As tropas da Unifil foram enviadas em junho, e as tropas israelenses se retiraram.
Os combates deixaram cerca de 2 mil libaneses e palestinos mortos no Líbano. Israel, preocupado com o retorno da OLP na região, também entregou faixas do território a uma milícia cristã armada, chamada Exército do Sul do Líbano. Anos depois, a milícia teria um papel importante em um massacre que marcou a história libanesa e palestina.
Relembre
Guerra do Líbano (1982)
Apesar da primeira invasão no Líbano, a segurança do norte de Israel não foi restaurada. Nos anos seguintes as forças israelenses continuaram em confronto com membros da OLP, liderados por Yasser Arafat, na fronteira, mas foi um fato ocorrido no Reino Unido que desencadeou a segunda invasão. Em 3 de junho de 1982, o grupo palestino Abu Nidal, dissidência da OLP, tentou matar o embaixador israelense em Londres.
Em resposta ao ataque, o primeiro-ministro israelense, Menachem Begin, lançou a Operação Paz para a Galileia e entrou no sul do Líbano pela segunda vez. Embora o grupo palestino Abu Nidal fosse oposição à OLP, Begin culpou o grupo e usou isso como pretexto para a invasão.
O historiador americano Eugene Rogan, professor da Universidade de Oxford, relata no livro “Os Árabes: Uma história” (Zahar, 2021) que o objetivo de Menachem Begin era expulsar os palestinos e sírios, que também ocupavam o Líbano, e fortalecer as milícias cristãs libanesas como aliados. Em 4 de junho de 1982, aviões e navios israelenses bombardearam Beirute e o sul libanês e mais de 40 mil soldados entraram no país por terra.
A invasão provocou a morte de mais de 17 mil libaneses e palestinos e 30 mil feridos, a maioria civis, de acordo com os informes da ONU. Dezenas de prédios foram bombardeados numa tentativa malsucedida de Israel matar Yasser Arafat.
Mais de Oriente Médio
Os ataques duraram dez semanas, até o então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, pressionar Begin a parar os combates. O premiê cedeu à pressão, e os EUA intermediaram um acordo de cessar-fogo que determinou a saída da OLP do Líbano e o envio de uma força multinacional, formada por tropas americanas, francesas e italianas, a assumir as posições dos israelenses.
Os membros da OLP cumpriram o acordo e deixaram o Líbano, espalhando-se pela região. Com a retirada concluída em 30 de agosto, as tropas estrangeiras também começaram a deixar o país. As tropas israelenses saíram de Beirute, mas continuaram operando no sul do país. Em 14 de setembro, no entanto, o presidente libanês eleito, Bashir Gemayel, foi assassinado, e Israel voltou a cercar a capital.
Apesar de um libanês ter confessado o crime contra Gemayel, os partidários do presidente culparam os palestinos de serem os responsáveis pelo assassinato e enviaram milicianos para os campos de refugiados de Sabra e Chatila, no sul. Mais de dois mil civis desarmados foram mortos. As tropas israelenses vigiavam os locais e nada fizeram para deter os massacres. Ao contrário, ofereceram livre acesso aos milicianos.
As mortes causaram uma condenação mundial, inclusive em Israel. Após protestos em Tel Aviv, o governo israelense instaurou uma comissão oficial de inquérito, a Comissão Kahan, que considerou Israel como responsável indireto do massacre.
Ocupação israelense no Líbano (1982 - 2000)
Uma consequência da primeira guerra do Líbano foi a ocupação do sul do país pelas tropas israelenses por quase 18 anos. O objetivo oficial da presença: garantir a segurança dos moradores no norte. Entretanto, a principal ameaça à segurança israelense, a OLP, não estava mais no Líbano. A partir desse momento, Israel travou combates com novos grupos que cresceram e ganharam apoio no Líbano com o discurso de expulsar o inimigo que havia bombardeado o país. Entre os grupos, estava o Hezbollah, uma milícia muçulmana xiita apoiada pelo Irã.
Em 1985, Israel se retirou dos centros urbanos do sul libanês e estabeleceu uma zona de segurança na região, com o apoio do Exército do Sul do Líbano, a milícia cristã apoiada pelos israelenses há uma década. A zona de segurança, no entanto, nunca funcionou e se tornou uma área de constantes combates.
A ocupação foi menor em quantidade de tropas do que as anteriores, mas falhou em restaurar a segurança no norte. Durante anos, o Hezbollah ofereceu dificuldades a Israel e ganhou popularidade entre os libaneses como movimento nacional de resistência contra uma ocupação odiada. Em 2000, o primeiro-ministro israelense, Ehud Barak, ordenou a retirada das forças do país em conformidade com a Resolução 425 da ONU, a mesma utilizada em 1978, após anos de desgastes e baixas.
Segunda guerra do Líbano (2006)
Em 12 de julho de 2006, um grupo de combatentes do Hezbollah entrou em Israel e atacou dois jipes que patrulhavam a fronteira com o Líbano. Três soldados foram mortos, dois ficaram feridos e outros dois foram capturados pelo grupo, com o objetivo de serem trocados por prisioneiros. A resposta israelense foi a segunda guerra no Líbano.
Em termos oficiais, a operação teve o objetivo de forçar o Hezbollah a sair do sul do Líbano e, mais uma vez, restaurar a segurança no norte. A guerra começou com ataques aéreos massivos, incluindo ao aeroporto de Beirute, e entrada por terra de cerca de 2 mil soldados. Esse contingente aumentou rapidamente. Cerca de um milhão de civis deixaram suas casas.
Um mês depois, em agosto, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 1701. O documento solicitava o cessar-fogo imediato dos conflitos, a saída do Hezbollah do sul para o norte do rio Litani, o reforço do Exército oficial do Líbano na região e o desarmamento das milícias libanesas, incluindo o Hezbollah. Somente o cessar-fogo aconteceu.
Na avaliação de Karina Calderón, o fracasso da Resolução 1701 é um dos motivos que torna o conflito atual ainda mais difícil. “A ONU ficou sob as críticas de Israel, que a culpa de não fazer cumprir suas resoluções”, disse. “E agora, Israel também acaba descumprindo as resoluções da instituição, em um movimento de descrédito da ONU como instituição capaz de resolver conflitos.”
O conflito atual (2023)
Dezoito anos depois da primeira guerra contra o Hezbollah, Israel voltou a invadir o Líbano na tentativa de expulsar o grupo do sul do país. A campanha começou depois da milícia xiita realizar ataques contra o território israelense em apoio ao Hamas, em guerra contra Israel na Faixa de Gaza por causa do ataque terrorista de 7 de outubro de 2023. Cerca de 60 mil israelenses saíram do norte desde o início do conflito.
A intensificação da campanha israelense contra o Hezbollah, que começou com a explosão de pagers e walkie-talkies do grupo, já provocou mais de 2 mil mortes, 10 mil feridos e 1 milhão de deslocados no Líbano. As tropas por terra são cada vez mais numerosas e Israel eliminou toda a cadeia de comando da milícia, incluindo o líder Hasan Nasrallah, mas os ataques contra o norte israelense continuam.
Ao contrário dos conflitos anteriores, a ONU ou os Estados Unidos, que cumpriu um papel importante em 1982, não parecem mais capazes de mediar uma resolução. A instituição perdeu crédito nas últimas décadas, e os americanos perderam influência no Oriente Médio.
Além disso, diferente da primeira guerra no Líbano, os EUA apoiam a missão israelense contra o Hezbollah e encorajam o país a seguir em frente. Até agora, há ausência de soluções diplomáticas.
Segundo a analista Mairav Zonszein, do centro de estudos International Crisis Group, as opções de Israel mais prováveis até o momento parecem duas: uma nova ocupação no sul do Líbano e a destruição completa do Hezbollah. “Mas reprisar a ocupação anterior seria uma situação prolongada, que provavelmente deve causar baixas contínuas de soldados, uma economia mais fraca e isolamento diplomático”, declarou.
“Já a destruição do Hezbollah, mesmo com os recentes sucessos, não é clara se será diferente de 2006, especialmente considerando que o exército luta há um ano na Faixa de Gaza e permanece tanto lá quanto na Cisjordânia”, continuou.
Até o momento, Israel e o Hezbollah parecem estar firmes em suas posições políticas, dificultando resoluções. Enquanto o governo israelense afirma que quer destruir o grupo por causa dos ataques em apoio ao Hamas, a milícia condiciona o fim dos ataques a um cessar-fogo na Faixa de Gaza, um acordo que parece cada vez mais distante. “Enquanto as duas partes não estiverem dispostas a negociar os termos, não tem como haver uma solução”, concluiu Karina Calderón.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.