Vejamos, o que ocorre quando o TikTok alimenta as queixas palestinas sobre apropriação de terras árabes em distritos de Jerusalém por israelenses de direita? E depois se você adiciona a isto a mais sagrada noite de oração dos muçulmanos em Jerusalém? E depois acrescentar o feriado que mais comove os israelenses em Jerusalém? E ainda uma jogada de poder do Hamas para assumir a liderança da causa palestina? E finalmente, um vazio político em que a Autoridade Palestina é incapaz de realizar novas eleições e Israel está tão dividido que não pode deixar de realizar eleições?
O resultado foi uma explosão da violência em Jerusalém na segunda-feira que rapidamente se propagou para a Faixa de Gaza e deixou as pessoas perguntando: este é o grande confronto? O início da próxima revolta palestina?
O governo israelense, as nações árabes vizinhas e a Autoridade Palestina querem desesperadamente que a resposta seja “não”. Israel porque, nesse caso, contará com pouco apoio de uma Casa Branca inclinada à esquerda, sem falar do restante do mundo, a uma dura repressão aos palestinos; os governos árabes porque a maioria deles quer continuar fazendo negócios com os fabricantes de tecnologia israelense e não ficar defendendo atiradores de pedras palestinos; e a liderança palestina porque essa revolta deixaria exposto como não tem mais nenhum controle sobre as ruas palestinas.
Mas ao contrário das Intifadas em 1987 e 2000, quando Israel tinha alguém para chamar e tentar desativá-las, desta vez não há nenhum palestino do outro lado da linha – ou se houver, é um garoto de 15 anos com seu smartphone, passando instruções e inspirações no TikTok, aplicativo de vídeo usado pelos jovens palestinos, para desafiarem e encorajarem uns aos outros a enfrentar os israelenses.
Jack Khoury, especialista na dinâmica desse conflito, explicou bem na segunda-feira na sua análise publicada no Haaretz, ao escrever que o motor do lado palestino do protesto “é o movimento popular” formado “na maior parte pela geração mais jovem que não espera mais nada da sua liderança política – nem a Autoridade Palestina, nem os líderes árabes em Israel ou na Faixa de Gaza. Nos últimos dias, foi relatado que o Hamas vem tentando insuflar o protesto, mas a liderança do movimento não tem nenhum controle sobre os eventos, e, como o governo tem visto, não há nenhum endereço ou pessoa para se comunicar com o fim de ter uma discussão política sobre a situação”.
Mas o que desencadeou tudo isso? O pavio foi uma colisão de “tempos sagrados” e “territórios sagrados”, disse-me o filósofo religioso da Hebrew University, Moshe Halbertal, e então diferentes atores atearam foto para começar um incêndio violento.
Especificamente, o Dia de Jerusalém este ano – o feriado nacional comemorando o estabelecimento do controle de Israel de Jerusalém Oriental, a Cidade Antiga e o Monte do Templo na guerra de 1967 entre árabes e israelenses, unificando assim Jerusalém Ocidental e Oriental – era comemorando com serviços de orações no Muro Ocidental que começaram na noite de domingo.
Essa data sagrada coincidiu com a Laylat al-Qadrs (Noite do Poder) dos muçulmanos, que este ano caiu no sábado. A data é considerada não apenas a noite mais sagrada do Ramadã, mas de todo o calendário islâmico. Ela celebra a noite em que os primeiros versos do Alcorão foram revelados ao profeta Maomé pelo Anjo Gabriel e é marcada por milhares de encontros de muçulmanos na Mesquita de Al-Aqsa, próximo do Monte do Templo, na parte ocidental de Jerusalém.
Essas datas sagradas que coincidiram levaram a inevitáveis confrontos nos becos de Jerusalém Oriental e culminaram na segunda-feira com a polícia israelense tomando de assalto a Mesquita de Al-Aqsa onde os palestinos haviam estocado pedras. Centenas de palestinos ficaram feridos e mais de 20 policiais israelenses sofreram lesões.
A situação foi agravada por uma disputa há muito tempo latente sobre o que Halbertal chamou de “território sagrado”. Em resumo, judeus israelenses de direita obtiveram ordem judicial para despejar seis famílias palestinas que viviam em casas e terras de propriedade de judeus na parte oriental de Jerusalém antes de a cidade ser dividida na guerra de 1948. As famílias palestinas estão contestando esse despejo. E, na verdade, a Suprema Corte de Israel iria proferir sua decisão na segunda-feira quanto a se os palestinos podiam ser expulsos, mas adiou a decisão por causa da violência.
Os palestinos alegam que é injusto que judeus reivindiquem terras ou casas que eles possuíam em Jerusalém Oriental antes de 1948, mas não têm meios legais para reclamar a terra de sua propriedade em Jerusalém Oriental ou qualquer outro lugar em Israel antes de 1948.
Os confrontos envolvendo essas datas sagradas e espaços sagrados já eram incendiários o bastante, mas também foram alimentados, como eu disse, por cenas vistas no TikTok. Em abril, alguns jovens palestinos carregaram na plataforma um vídeo deles próprios agredindo um judeu ortodoxo num transporte público para inspirarem ataques similares. Em resposta, um grupo judeu de extrema direita chamado Lehava liderou uma marcha por Jerusalém até o Portão de Damasco, na Cidade Antiga, entoando o slogan “Árabes, caiam fora”.
Toda a confusão faz um nó górdio parecer simples de desfazer. Mas o que tudo isto está nos dizendo?
O ponto mais óbvio e mais importante é que um consenso perigosamente simplista surgiu em Israel nos últimos anos, sugerindo que Israel basicamente suprimiu o conflito palestino e que aqueles palestinos que vivem na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental estão basicamente resignados a viver sob controle permanente de Israel. Esse consenso ficou tão poderoso que em todas as quatro eleições recentes em Israel, a questão da paz com os palestinos – como alcançá-la e o que acontece se for ignorada – não fez parte das campanhas.
Os Acordos de Abrahão, arquitetados pelo governo Trump, normalizando as relações entre Israel e os Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Sudão e Marrocos – embora valiosos no sentido de contribuírem para estabilizar a região – também reforçaram a ideia de que a causa palestina basicamente era coisa do passado. As manchetes de hoje provam a falácia desse raciocínio.
A propósito, o governo Biden não tem nenhum interesse no momento em ser forçado a reagir aos fatos hoje noticiados. Não acredita que as condições estão propícias para qualquer progresso real na questão israelense-palestina, e a última coisa que deseja – quando seu foco principal na região é reviver o acordo nuclear com o Irã, o que já vem provocando tensões com Israel – é ser desviado disso tendo de mediar um cessar-fogo entre israelenses e palestinos ou conter tentativas iranianas para inflamar a situação em Jerusalém.
Mas para onde vamos a partir da situação presente?
Em parte, depende de Binyamin "Bibi" Netanyahu. De todas as coincidências malucas deste momento, talvez a mais insana é que os choques ocorrem num momento em que Bibi pode estar nos seus últimos dias como primeiro-ministro, depois de mais de 12 anos no cargo. Netanyahu tem interesse em ver seus rivais não conseguirem formar uma nova coalizão para derrubá-lo. Ele gostaria que Israel realizasse uma quinta eleição - dando a ele a chance de se agarrar ao poder e evitar a prisão se for condenado no seu julgamento por corrupção. Uma maneira pela qual conseguiria isto seria inflamando a situação a ponto de seus rivais de direita serem forçados a abandonar as tentativas para derrubá-lo e declararem que não é o momento para uma mudança de liderança.
Muita coisa depende também do que o Hamas decidir fazer. O grupo não conseguiu produzir um crescimento econômico significativo na Faixa de Gaza, que ele governa, ou algum progresso político com Israel. E o fato de a Autoridade Palestina adiar as planejadas eleições, que o Hamas provavelmente venceria, significa que ela está travada.
O que faz o Hamas quando se vê sem uma saída? Lança foguetes contra Israel. Mas na segunda-feira ele fez algo inusitado. Lançou foguetes contra Jerusalém para tentar assumir a liderança da revolta que se preparava ali. Israel retaliou bombardeando Gaza e, segundo notícias, matando pelo menos 20 palestinos.
Resumindo: tudo isto pode se acalmar em três ou quatro dias quando o Hamas, Israel, Egito, Jordânia e a Autoridade Palestina entenderem que é do seu interesse impor sua vontade às ruas. Ou não. E se a situação se transformar numa nova Intifada, com as ruas impondo a sua vontade, este terremoto vai abalar Israel, Gaza, Cisjordânia, Egito e os Acordos de Abrahão.
Se isso acontecer, sugiro a você baixar o TikTok para acompanhar toda a situação em tempo real./ TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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