BRASÍLIA - A primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, desistiu de viajar a Nova York, nesta semana, para chefiar a delegação brasileira e discursar na Organização das Nações Unidas (ONU), como representante do Brasil.
O governo Luiz Inácio Lula da Silva organizava a participação da primeira-dama com líder da comitiva a ser enviada pelo País à 69ª sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW). Com o cancelamento, a delegação será comandada novamente pela ministra da Mulheres, Cida Gonçalves. Ela decolou neste domingo, dia 9, e disse que o País terá cerca de 150 participantes.
Nos bastidores, a avaliação é que a viagem teria um alto risco político: a presidência de Donald Trump atiçou bolsonaristas nos EUA que poderiam fazer algum tipo de manifestação, a queda de popularidade de Lula e da própria Janja, as frases ditas pela primeira-dama no G20 sobre o bilionário Elon Musk, além do grande desgaste gerado com agendas e despesas em outras viagens feitas por ela e sua equipe informal.
A reportagem questionou a assessoria de imprensa da primeira-dama sobre as razões de sua ausência e se ela ainda avaliava alguma participação na CSW, ainda que remota, mas não obteve retorno até a publicação deste texto. O espaço segue aberto.

Um ano depois de compor comitiva brasileira, a primeira-dama não vai mais ter nem sequer um assento na delegação. Após mudança de planos no governo, Cida assumiu a chefia da missão entre 10 e 14 de março, para uma série de compromissos oficiais da ONU e reuniões bilaterais, como encontro com a ex-presidente do Chile Michelle Bachelet. Na segunda semana, entre 17 e 21 de março, o País será representado pela secretária-executiva do Ministério das Mulheres, Maria Helena Guarezi, amiga pessoal de Janja.
A CSW se reúne anualmente em março, na sede da ONU, em Nova York. Criada em 1946, é a principal instância global a discutir direitos das mulheres. O Brasil patrocina, via Ministério das Mulheres, três debates paralelos sobre os temas Misoginia Online, Justiça Climática e a Aliança Contra a Fome e a Pobreza.
Em março de 2024, o próprio Lula designou Janja como integrante da delegação. O decreto publicado no Diário Oficial da União destacou a formação dela como socióloga e autorizou oito dias de viagem com despesas custeadas pelo erário. Foi a primeira agenda internacional solo da primeira-dama - sem acompanhar Lula.
Agenda de risco
Órgãos envolvidos nos preparativos - Presidência da República, Itamaraty e Ministério das Mulheres - começaram a ser avisados da desistência de Janja na semana passada. Antes, o planejamento previa que viajassem juntas após ações no Rio, ligadas ao pós-carnaval, e que Janja e Cida dividissem agendas em Nova York.
Mudanças como essa podem implicar em custos porque retardam emissões de passagens e reservas de hotéis - que por praxe de mercado ficam mais caras em cima da hora -, além da reprogramação de quem vai compor a comissão e quando viaja.
Segundo relato de servidores federais, um diagnóstico da Presidência identificou que a viagem era de “alto risco” - não houve detalhamentos se a análise abordou apenas risco político ou também à integridade dela. Mas a conjuntura era considerada complicada.
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A viagem seria a primeira aos EUA de alguma figura influente no governo brasileiro, diretamente ligada a Lula, após a posse do presidente Donald Trump, que agitou a oposição bolsonarista radicada no país. O Planalto e a Casa Branca não dialogam em alto nível. Os choques entre Lula e Trump já começaram, com embates sobre liberdade de expressão, tarifas e imigrantes brasileiros deportados.
Em novembro passado, Janja ofendeu com um xingamento um dos principais conselheiros de Trump, o bilionário Elon Musk, durante discurso em evento paralelo do G-20, no Rio. Sem citá-la, Lula desautorizou a manifestação no mesmo dia.
Nomes como o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e os blogueiros Paulo Figueiredo e Allan dos Santos têm feito intensa campanha junto ao governo Trump para punir autoridades brasileiras sob alegação de violarem liberdade de expressão.

No passado, bolsonaristas provocaram autoridades brasileiras em viagem para participar de conferências em NY, como ocorreu com o ministro e então presidente do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso. Ele soltou a frase “Perdeu, mané”, que virou bordão da direita brasileira. Considerado foragido da Justiça, Allan dos Santos protestou com megafone em frente ao hotel onde o relator dos casos no Supremo, Alexandre de Moraes, se hospedou na cidade.
As viagens de Janja têm gerado desgaste ao governo federal, e a popularidade dela caiu, acompanhando a do presidente, em recentes pesquisas de opinião. Ela já foi alvo de questionamentos pela oposição e por organizações como a Transparência Internacional sobre a “informalidade” de sua atuação no governo, embora cumpra agenda de representação assídua.
Recentemente, ela passou a divulgar compromissos de maneira informal em sua conta no Instagram, após a deputada Rosângela Moro (União-PR) apresentar projetos de lei sobre a obrigação de publicidade na agenda e despesas da primeira-dama. A parlamentar é mulher do senador e ex-juiz Sergio Moro (União-PR), que prendeu e condenou Lula na Operação Lava Jato.
Como o Estadão mostrou, Janja faz uso de estrutura pública da Presidência para além da segurança regulamentar. Tem um gabinete informal à sua disposição, com servidores espalhados por setores do Palácio do Planalto, em que pese a ausência de cargo formal no governo.
As viagens da primeira-dama costumam dar trabalho extra aos servidores envolvidos, sobretudo na logística, por causa de pedidos dela. Quando acompanhou Lula na Etiópia, em 2024, Janja queria visitar um campo de refugiados sudaneses distante da capital, Adis Abeba. Segundo servidores, o plano somente foi abortado depois que o governo etíope avisou que não teria como garantir a segurança dela. Janja visitou um centro de distribuição de comida, uma escola e um orfanato. Discursou na Organização das Primeiras Damas da África para o Desenvolvimento.
Em 2023, ela foi a única esposa de presidentes e premiês a entrar no tapete vermelho estendido na Cúpula de Líderes do G-20, em Nova Délhi. A chegada de Lula foi cercada de cuidados e até seus passos foram contados, por causa de dores no quadril. Ele passou por uma cirurgia logo depois.
Pedido formalizado
Ao contrário do que ocorreu no ano passado, desta vez a diplomacia brasileira foi instruída a pedir a inscrição de Janja para falar na CSW e seu credenciamento como chefe da comitiva. Um despacho telegráfico chegou a NY sem que a equipe do Ministério das Mulheres fosse previamente informada.
Por ordem de Brasília, a Missão do Brasil perante a ONU deveria pressionar nos bastidores - o termo diplomático é “fazer gestões” - para que ela conseguisse estar bem posicionada ao discursar na plenária principal da CSW.
A tentativa era considerada delicada por diplomatas, porque implicaria em provável exceção a normas. Pelas regras de cerimonial da ONU, cônjuges de chefes de Estado têm direito a receber passes VIP para acessar eventos, porém, caso decidam discursar, correm o risco de ficar para o final da fila na lista de oradores.
Existe uma ordem de precedência a ser observada, encabeçada pelos próprios chefes de Estado e de governo, ministros de Estado e mesmo autoridades de âmbito estadual ou municipal, até embaixadores representantes na ONU, entre outros. Não há lugar privilegiado para cônjuges.

Neste tipo de evento multilateral, a ordem do discurso e o momento em que um país pede inscrição para discursar são relevantes porque podem evitar que uma autoridade discurse para uma plenária esvaziada. Ser um dos primeiros a falar tende a garantir maior repercussão e que o chefe da delegação discurse na presença de representantes de mais países e da própria ONU e CSW.
Um impasse poderia ocorrer de novo. No ano passado, por causa dessas restrições, o discurso principal do Brasil na CSW foi lido pela ministra Cida Gonçalves - chefe da delegação. Cida também falou como representante da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Janja sentou-se ao lado dela na plenária. Ela reclamou nas redes sociais logo na abertura dos discursos.
“Abertura da CSW - Comissão para Situação da Mulher. Três homens já falaram, nenhuma mulher. Difícil. Esse é o desafio que enfrentamos. Por mais mulheres nos espaços de decisão e poder!“, protestou Janja, em publicação no X. ”Já o quinto homem falando e nenhuma mulher.”
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A primeira-dama discursou apenas em sessões de debates paralelas ou de menor relavância política. Registros mostram, por exemplo, que ela falou em nome do Brasil na sede da ONU durante uma mesa temática sobre financiamento para igualdade de gênero e eliminação da pobreza de mulheres e meninas; outra mesa organizada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud); e um café da manhã com ministras da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), realizado na missão do México.
Nas redes sociais, Janja disse ter cumprido cerca de 20 compromissos, entre eles encontros com autoridades estrangeiras e reuniões promovidas pelo Ministério das Mulheres e pela Missão Permanente do Brasil junto à ONU.
“Fui a única primeira-dama a estar presente e participar ativamente da programação da CSW, entre os 193 países que compõem as Nações Unidas. Um dado que me orgulha e ao mesmo tempo demonstra o quanto precisamos avançar. As cônjuges de chefes de Estado precisam usar suas vozes e visibilidade para reverberar mensagens importantes e construir uma realidade com cada vez mais mulheres nos espaços de decisão e poder”, expressou Janja, também no X.
Em 2023, primeiro ano do governo Lula, a delegação foi chefiada pela então secretária nacional de Articulação Institucional, Ações Temáticas e Participação Política Carmen Foro.
Como o Estadão mostrou, a demissão de Carmen Foro, no ano passado, motivou uma leva de denúncias formais contra Cida Gonçalves e Maria Helena Guarezi, entre outras autoridades do ministério, por situações de assédio moral, possível xenofobia e até uma suposta ofensa racial. As vítimas seriam a ex-secretária e sua antiga equipe. Os casos foram arquivados na Controladoria-Geral da União (CGU) e na Comissão de Ética Pública (CEP) da Presidência, por falta de “materialidade” - quando as denúncias não apresentam elementos de prova suficientes para abrir um processo ético ou disciplinar.
Gravações mostram que, em busca de uma saída negociada, a ministra chegou a oferecer a ela um cargo na COP-30, repasse de recursos para entidades sociais na base política de Carmen Foro, o Pará, e buscar “dinheiro fora do País” para um grupo que apoiaria nova campanha eleitoral dela. A ministra negou ao jornal ter feito essas contrapartidas. O teor dessas falas dela não foi analisado na decisão da CEP, embora a gravação tenha sido enviada à comissão.