Aprovada a primeira lei de Javier Milei no Congresso da Argentina, a Lei de Bases em junho, o libertário começa agora a dar os primeiros passos para conduzir as suas prometidas reformas.
Além de uma reforma econômica, tentada por praticamente todos os governos argentinos, ele aposta em uma ainda mais ambiciosa: a reforma do Estado, a fim de desregulamentar e conduzir mudanças estruturais no tamanho do Estado argentino.
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Quem recebeu esta tarefa foi o economista de carreira Federico Sturzenegger, que ganhou um ministério novinho em folha para chamar de seu: o ministério da Desregulamentação e Transformação do Estado. O novo ministro, que é o cérebro por trás dos planos de reforma de Milei, já começou os trabalhos com 27 tarefas, entre elas, desburocratização, redução de impostos e demissão de funcionários.
Reduzir o tamanho do Estado argentino, que entende-se tanto por gastos quanto por quantidade de pessoal e serviço, foi uma das grandes promessas do libertário quando era candidato. Logo de partida, seu mega DNU (Decreto de Necessidades e Urgências) lançava mão de algumas travas, mas temas mais sensíveis como privatizações precisam da chancela do Legislativo.
“Esse ministério é uma formalização de algo que já estava acontecendo na prática”, observa o economista e professor da Universidade de Buenos Aires (UBA) Fabio Rodriguez. “Sturzenegger já era uma espécie de autor ideológico de alguma maneira e agora passa a ser a pessoa que tem que materializar isso em vários aspectos”.
Qual o tamanho do Estado argentino
Uma das formas de se medir o tamanho de um Estado é pelo gasto público do governo com relação ao Produto Interno Bruto. Segundo dados do FMI, o gasto do governo argentino em 2022 foi de 37% de seu PIB. É de fato um dos mais altos da América Latina, mas perde para o Brasil, que gastou 46% de seu PIB.
O gasto argentino é semelhante ao dos EUA, por exemplo, que foi de 36%. Mas fica distante de países europeus: lá, a França lidera com 58%, seguida por Itália com 56%, Bélgica e Finlândia com 53% e a lista segue com a maioria acima dos 40%. No mapa dos menores gastos estão países da África e da Ásia.
De acordo com os dados do Ministério da Economia da Argentina, saúde, educação e assistência social correspondem ao maior montante de gastos estatais, chegando a 67,9% em 2022, com o governo nacional se responsabilizando por mais da metade desse valor. Em seguida vêm o Funcionamento do Estado (14,7%), com gastos como salários, Defesa e segurança; Serviços Econômicos (11,0%), como subsídios à energia e combustível; e, por último, a dívida pública (5,3%).
Não há um consenso entre diferentes correntes econômicas sobre qual deveria ser o tamanho ideal de um Estado. Mas a melhor medição leva em conta o dado em comparação com o crescimento econômico e o nível de eficiência desse gasto.
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Um estudo conduzido pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) em 2018, comparou os níveis de eficiência dos gastos públicos da América Latina e concluiu que a Argentina é a que registra o pior índice, ao lado de El Salvador e Bolívia. Para fazer o cálculo, o estudo, o último do gênero disponível, considerou compras do Estado (incluindo perdas com corrupção), salários de funcionários públicos e subsídios.
A taxa de ineficiência, ou seja, o desperdício da Argentina, seria de 7,2% de seu PIB naquele ano, ante 4,3% da média regional. Como em 2018 a Argentina não tinha a inflação que tem hoje e a situação monetária e financeira piorou sensivelmente, essa taxa provavelmente cresceu. Outra mudança de cenário é que a Argentina entrou, este ano, em recessão técnica, com o PIB recuando 5,1% no último trimestre.
“O objetivo deveria ser tornar o Estado mais eficiente antes de tudo, antes de uma questão de tamanho”, defende Rodriguez. “O tamanho requer essa primeira condição, e isso depende da área. Há áreas em que para ser eficiente será necessário um determinado recorte, em outras menos, mas o conceito tem que ser esse.”
Respaldo popular
O plano de Milei é defendido por grande parte da sociedade argentina atualmente. Segundo estudo do Observatório Pulsar conduzido no ano passado, antes das eleições, os argentinos se diziam cada vez mais pró-iniciativa privada e menos pró-Estado.
Cerca de 56% da população disse ter maior confiança nas empresas privadas, contra 39% que apontou as públicas. Além disso, 60% defenderam que sejam as empresas privadas as maiores ofertadoras de empregos, e 46% defendiam privatizações de empresas públicas. A pesquisa mostrou uma mudança na crença dos argentinos, que desde os anos 2000 se diziam pró-Estado.
Mas esse apoio a um país mais pró-iniciativa privada não é generalizado, o que pode ser uma armadilha para Milei, um presidente libertário que defende um Estado praticamente nulo. A mesma pesquisa mostrava que 80% dos argentinos defendiam um corte nos gastos do governo, mas acreditavam que as áreas de Saúde e Educação deveriam ser poupadas. Também há 54% que defendem a manutenção de programas sociais.
“Milei identificou muito bem que havia um Estado que a sociedade já não queria mais tão presente, nem um Estado salvador, como dizia o governo anterior”, aponta o economista da UBA. “Pelo contrário, queria uma motosserra, um Estado menor. Essa era a visão dos seus seguidores, e ele entendeu muito bem isso e tornou seu plano conceitual, ideológico e político, mas agora vem o plano de colocá-lo em prática”.
“Agora começa o diálogo com a realidade, com empresas que têm muita tradição ou que têm sindicatos fortes ou que são defendidas por vastos setores da sociedade. O retrocesso que ocorreu na educação foi um exemplo, ou seja, tentaram introduzir uma racionalização na educação que a sociedade barrou firmemente”, completa.
Segundo dados do governo argentino, cerca de 21 milhões de pessoas, em uma população de 47 milhões, recebem diretamente alguma assistência do Estado. Isso antes do choque de ajustes de Milei, que resultou em um crescimento da pobreza, aumento do desemprego e queda no consumo nos primeiros seis meses de gestão.
Vai dar certo?
Essa é a pergunta que muitos economistas fazem. Milei não é inovador em tentar reduzir o tamanho do Estado argentino. O ex-presidente Carlos Menem, presidente da Argentina entre 1989 e 1999, um inspirador do atual líder para pensar a proposta. Mas a ideia de tentar uma “terapia de choque” é inédita.
“Embora houvesse questões a melhorar em termos da qualidade e da eficiência da prestação dos serviços do Estado público, me parece que Milei vai adotar um estilo extremista”, opina o economista Juan Manuel Telechea, autor do livro “¡Inflación! ¿Por qué Argentina no se la puede sacar de encima?” (Inflação! Por que a Argentina não consegue se livrar dela?).
“O que Milei faz não é corrigir esses problemas, mas sim tentar desregular tudo o que for possível. Isso já foi testado na Argentina e não teve sucesso. Nos anos 90, políticas deste estilo foram implementadas e acabaram com um impacto extremamente negativo tanto no Estado quanto na sua capacidade de intervir na sociedade”, conclui.
“É verdade: há um monte de distorções, de entraves, de burocracia, que o empresariado de pequenas, médias e grandes empresas pede melhoras”, afirma Fabio Rodriguez. “Aí sim ele terá apoio. Mas vai depender também da perícia com que fazem isso, porque se a cada vez que fizer algo, seja melhorar a eficiência, remover um controle ou demitir pessoas, houver um conflito maior, no fim o remédio vai ser pior do que a doença”.
Milei já teve os seus primeiros embates neste tema. Quando tentou avançar com as privatizações de mais de 40 empresas, a lei naufragou e só retornou após acordos que retirava mais da metade delas. No fim, a Lei de Bases permitiu que apenas seis sejam privatizadas. O corte de repasse para a Educação também desencadeou os maiores protestos de seu governo.
O desafio do novo ministro, pontua Rodriguez, vai ser conseguir conduzir uma reforma tão profunda sabendo manter o diálogo com setores afetados ou interessados. ”Por mais que o ministro seja uma pessoa preparada e tecnicamente muito boa, esta tarefa também exige muita habilidade política. Para privatizar uma empresa, realizar reformas, é necessário mediar com lobbies, com atores de poder. Isso não é exatamente o forte de Sturzenegger. Eu diria que é exatamente o contrário, uma pessoa muito bruta”, diz.
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