ENVIADA ESPECIAL A BUENOS AIRES - Pela primeira vez desde a redemocratização, em 1983, a Argentina não será governada por um peronista ou pela oposição tradicional de centro-direita. Com a promessa de realizar cortes radicais para reduzir o tamanho do Estado argentino, o libertário Javier Milei, um neófito na política local, rompeu a bolha e será o novo presidente do país a partir de 10 de dezembro.
Milei derrotou o governista Sergio Massa com uma vantagem histórica mesmo sem contar com a máquina do governo peronista, especialmente o apoio de prefeitos e governadores espalhados pelo interior da Argentina. O resultado é a pior derrota sofrida pelo peronismo em 40 anos de democracia e, pelo kirchnerismo, desde 2003, quando se firmou na política argentina. Com 99,2% das urnas apuradas, Javier Milei teve 55,6% dos votos, e Massa teve 44,3% - a maior vantagem de um candidato a presidente nas eleições recentes na Argentina, e uma derrota histórica para os peronistas. Milei teve 14,4 milhões de votos, ante 11,5 milhões de Massa.
“Hoje começa a reconstrução da Argentina. É uma noite histórica para a Argentina”, disse Javier Milei em seu primeiro discurso como presidente. Adotando um tom sereno e centrado, sem sinais de rompantes que marcaram sua carreira política, Milei agradeceu sua irmã, Karina Milei, sua equipe, e ao ex-presidente argentino, Mauricio Macri e à sua rival no primeiro turno, Patricia Bullrich, pelo apoio. “Hoje começa o fim da decadência da Argentina. Hoje é o fim da ideia de que o Estado é um espólio a ser compartilhado entre políticos e seus amigos. Hoje voltamos a abraçar as ideias de liberdade. A decadência chegou ao fim.”
“Todos aqueles que quiserem se juntar à nova Argentina são bem-vindos. Sabemos que há pessoas que resistirão, que querem manter seus privilégios. A eles eu digo: dentro da lei, tudo, fora dela, nada”, um axioma de Juan Domingo Perón que se tornou bandeira do movimento que impulsionou seu retorno ao poer nos anos 1970.
“Hoje, uma forma de fazer política acabou. Chega do modelo empobrecedor da casta”, disse. “Quero lhes dizer que a Argentina tem um futuro, mas esse futuro existe se for liberal. Não estamos aqui para inventar nada, mas para fazer as coisas que a história já mostrou que funcionam”. Milei encerrou seu discurso dizendo: “Viva la libertad, carajo! Dios bendiga a los argentinos”.
Milei vai conversar por telefone na manhã desta segunda-feira, 20, com o atual presidente da Argentina, Alberto Fernández, para dar início ao processo de transição. O candidato do governo e ministro da Economia reconheceu a derrota antes mesmo do fim da apuração e da divulgação dos votos. “Quero dizer que obviamente os resultados não são os que esperávamos e tenho me comunicado com Javier Milei para felicitá-lo, porque é o presidente e é quem vai liderar a Argentina nos próximos 4 anos”, disse o candidato.
Mas a sensação de vitória já era palpável bem cedo, assim que as urnas foram lacradas, antes da divulgação do resultado. No Hotel Libertador, na região central da capital argentina, o libertário acompanhou a apuração cercado de aliados e reconheceu que as eleições “foram transparentes” – um contraste com a véspera da votação, quando sua campanha do havia questionado o resultado, mesmo sem apresentar evidências de fraude.
No início da noite, Massa telefonou para Milei e reconheceu a derrota. O candidato peronista acompanhou a apuração no complexo Art Media, no bairro de Chacaritas, e discursou antes mesmo da chegada dos primeiros números oficiais.
“Hoje, acaba uma etapa da minha vida”, disse. “Quero dizer que os resultados, obviamente, não são os que esperávamos e tenho me comunicado com Milei para felicitá-lo, porque ele é o presidente e é quem vai liderar a Argentina pelos próximos quatro anos.”
O pronunciamento de Massa foi a senha para explodir o bunker de Milei, onde o clima de animação e otimismo descambou rapidamente para uma festa completa, com direito a troca de abraços e rock’n roll executado por DJs. Apoiadores gritavam “Temos presidente” e se diziam orgulhosos do resultado.
Os mais animados eram os jovens, um segmento do eleitorado que apoiou em peso o libertário. Fermin Cabezas, de 14 anos, estava exultante, apesar de não ter sequer idade para votar. “Estou emocionado. Era triste ver a Argentina que já se foi e a economia piorar a cada dia. Mas finalmente vem uma mudança”. Após a vitória, centenas de apoiadores foram celebrar pelas ruas de Buenos Aires, aproveitando o feriado prolongado nesta segunda-feira, 20. O monumento Obelisco ficou cheio durante a madrugada
Antes de a campanha começar, Milei era um candidato improvável. Para ocupar a Casa Rosada, primeiro ele teria de derrubar a oposição tradicional, a centro-direita capitaneada pelo ex-presidente Mauricio Macri, que sempre carregou a bandeira do antiperonismo.
Desde o início, Milei se apresentou como uma figura estranha, de fora do sistema, que minimizava o impacto da ditadura militar em um país traumatizado pelo regime autoritário. Com um cabelo cuidadosamente despenteado, com as costeletas de Elvis Presley, ele empunhava uma motosserra com a qual cortaria o Estado, exterminando ministérios. Em sua lista de promessas estão ainda a dolarização da economia e o fim do Banco Central.
Para a surpresa do establishment, ele deixou para trás Patricia Bullrich, candidata do macrismo, e foi para a disputa do segundo contra Massa, o ministro da Economia de um governo impopular, chefiado por Alberto Fernández, que deixa de herança uma inflação de 140% e uma taxa de pobreza que afeta cerca de 40% da população.
Para derrotar Massa, Milei moderou seu discurso e buscou apoio de Bullrich e Macri. Na reta final, tentou se esquivar das bombas que ele mesmo montou, desdizendo algumas ideias lançadas durante a campanha. Depois de sugerir a liberação da venda de armas, disse que o tema não fazia parte de sua plataforma. Propôs liberar a venda de órgãos, mas recuou no último debate presidencial.
Agora na Casa Rosada, Milei levanta uma série de dúvidas, que não se restringem apenas à viabilidade de sua agenda econômica ultraliberal. A principal delas é o futuro da relação com o Brasil. O libertário não esconde sua antipatia pelo Mercosul e pelo presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, a quem chama de “comunista”.
O Brasil, no entanto, é o maior parceiro comercial da Argentina, uma interdependência que beneficia os dois lados da fronteira. O próprio Milei já tratou de conter os rumores de que pretende romper relações com Brasília, afirmando que prefere que os laços sejam levados adiante por empresários do setor privado.
Mas a simpatia do governo brasileiro por Massa – explícita durante a campanha – pode criar ruídos na relação. Por outro lado, o peronismo, historicamente protecionista e nacionalista, era muitas vezes um entrave à integração. O futuro agora está na habilidade de Milei governar sem olhar para o retrovisor.
Quem é Javier Milei
O libertário Javier Milei surgiu como uma terceira força política e virou o jogo eleitoral. O presidente eleito da Argentina se colocou como um outsider e disse que iria acabar com a classe dominante, reduzir o governo e fechar o banco central, cuja política monetária ruim, segundo ele, “rouba” dinheiro dos argentinos por meio da inflação.
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As palavras fortes contra os políticos e a marca registrada do cabelo desordenado - que lhe rendeu comparações com o ex-premiê britânico Boris Johnson - conquistou um público que se viu representado em seu jeito mais próximo “do povo”.
Antes de chegar à política, Milei foi goleiro do clube de futebol argentino Chacarita Juniors, mas encerrou a carreira no começo dos anos 1990. Nascido no bairro portenho de Palermo, em 22 de outubro de 1970, Milei teve uma infância marcada por polêmicas em família. Ele mesmo reconhece que não se dava bem com a família, apenas com sua irmã, Karina Milei. Ele diz que ela é a pessoa que melhor o conhece e “a grande arquiteta” de seus acontecimentos políticos. Milei disse a diferentes meios de comunicação que, caso se torne presidente, ela desempenhará o papel de primeira-dama.
A ascensão do novo integrante a Casa Rosada começou em 2018 nos principais meios de comunicação argentinos, com a divulgação de seu discurso “liberal libertário”, como costuma chamar. Suas aparições no rádio e na televisão locais geraram polêmica, seja entre seus colegas economistas, jornalistas ou apresentadores.
O grande salto em sua carreira política veio em 2020, quando anunciou sua candidatura à presidência nas eleições de 2023. Esse passo abriu caminho para que seu partido, La Libertad Avanza, conquistasse duas cadeiras na Câmara dos Deputados no ano seguinte, ocupados por ele e por sua candidata à vice-presidência, Victoria Villarruel.
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