ENVIADA ESPECIAL A BUENOS AIRES - O libertário Javier Milei tomou posse neste domingo, 10, como presidente da Argentina para um mandato de quatro anos com o desafio de solucionar uma profunda crise econômica e construir alianças para garantir sua governabilidade.
Milei inovou: não falou aos congressistas após receber a faixa presidencial e discursou do lado de fora, nas escadarias do Congresso, para a população que o elegeu. Ali, o novo presidente fez um discurso realista: “não há dinheiro” disse, antes de afirmar que fará “um tratamento de choque” no país porque “não há espaço para o gradualismo”, prometer um “forte ajuste nas contas públicas”, e criticar a “herança” do governo anterior.
Seu discurso, que até então era um segredo conhecido apenas por seu círculo mais próximo, repetiu jargões de campanha e do pronunciamento de vitória em novembro. Desta vez, no entanto, o libertário focou em apontar o que será sua “herança” do governo anterior. “Muito se fala da herança que vamos receber. Nenhum governo recebeu uma herança pior do que a que está recebendo nós”.
De fato, segundo economistas, Milei receberá uma inflação três vezes maior do que os dois governos anteriores. Uma situação que se assemelha apenas a 2001, quando a crise do corralito provocou a fuga do presidente argentino Fernando de La Rua em um helicóptero da Casa Rosada, e uma sequencia de cinco presidentes em 12 dias.
“Vou dizer isso de uma vez: não há dinheiro”, afirmou Milei. “Não há alternativas ao ajuste e ao choque. Naturalmente, isso terá um impacto negativo no nível de atividade, no emprego, nos salários reais, no número de pobres e de indigentes. Haverá estagflação, mas não é muito diferente dos últimos doze anos, o PIB per capita caiu 12%, num contexto em que acumulamos uma inflação de 5000%, ou seja, vivemos em estagflação há mais de uma década, e esta é a gota d’água para começar a reconstrução da Argentina”.
“Em curto prazo, a situação vai piorar”, afirmou Milei. “Mas depois veremos os frutos dos nossos esforços, tendo criado as bases para um crescimento sólido e sustentável ao longo do tempo”, observou Milei. “Também sabemos que nem tudo está perdido, os desafios que enfrentamos são enormes, mas também o é a nossa capacidade de os ultrapassar, não será fácil, 100 anos de fracasso não se desfazem num dia, mas um dia começam e hoje é esse dia”.
“Será um ajuste ordenado que recairá sobre o Estado”, disse Milei. “Não há dúvida de que a última opção possível é o ajuste, que recai sobre o Estado e não sobre o setor privado. Sabemos que vai ser difícil”, disse o presidente.
Em seu primeiro pronunciamento ao país como chefe de Estado, Milei usou elementos importantes de suas falas como candidato, entre eles a defesa do liberalismo econômico e o combate ao que chama de “casta política”.
“Hoje começa uma nova era na Argentina; hoje termina uma longa era de declínio e começamos a reconstrução do país. Os argentinos expressaram de forma esmagadora uma vontade de mudança que não tem retorno. Não há volta atrás. Vamos enterrar décadas de fracasso e de disputas sem sentido. Está a começar uma era de paz e prosperidade, de liberdade e progresso”, disse o novo presidente.
Apesar da manutenção da retórica agressiva, Milei teve de apelar a partidos tradicionais, inclusive ao próprio peronismo. Embora sua vitória tenha sido avassaladora nas urnas, com 11 pontos de diferença de Sergio Massa em 19 de novembro, sua base de apoio é minúscula. No Congresso, seu partido, A Liberdade Avança, tem apenas 38 cadeiras, exigindo que o libertário construa alianças não só com partidos de direita, como o Proposta Republicana (PRO) de Maurício Macri e o União Cívica Radical (UCR), mas também com peronistas, especialmente os anti-kirchneristas do cordobês Juan Schiaretti.
Neste domingo, por exemplo, o libertário escolheu o ex-presidente Mauricio Macri como o primeiro a ser cumprimentado após receber a faixa presidencial. Macri é o principal aliado de Milei na busca pela governabilidade no começo de seu mandato.
Outra aliada é sua ex-adversária na eleição presidencial, a nova ministra da Segurança, Patricia Bullrich. Essas alianças provocaram irritação dentro do partido do novo presidente, La Libertad Avanza.
Cerimônia de posse e caminhada para a Casa Rosada
Javier Milei entrou no prédio do Congresso Nacional pouco antes do meio dia. Ali, assinou o livro de juramento com seu bordão, “Viva la libertad, carajo!”, que repetiu ao menos cinco vezes durante o dia (três vezes no fim de seu discurso na escadaria do Congresso).
Milei chegou ao Congresso acompanhado pela sua irmã e foi recebido pelos Granadeiros. Na porta, ele foi recebido por sua vice-presidente, Victoria Villarruel. Eles foram guiados por Cristina Kirchner, e pelo presidente da Câmara dos Deputados, Martín Menem, seguindo a tradição de passagem do bastão presidencial que tem 150 anos de história.
“Vamos convidar o presidente eleito a fazer o juramento de posse”, disse Cristina Kirchner alguns minutos depois, já no púlpito do Congresso Nacional. Quando entrou, os deputados apoiadores de Milei gritaram: “Liberdade, liberdade”.
De imediato, Milei prestou juramento: “Juro por estes santos evangelhos desempenhar com patriotismo o cargo de presidente da Argentina e observar fielmente o que determina a constituição da Argentina”.
Alberto Fernández colocou em Milei a faixa presidencial e entregou o bastão de comando. Depois de cumprimentar Fernández e Cristina Kirchner, Milei foi primeiro dar um abraço e um beijo em Mauricio Macri.
Depois de sair da sede do Congresso argentino em uma carreata, Milei desceu na Praça de Maio e, sempre acompanhado pela sua irmã, Karina, caminhou pela Avenida Rivadavia até à Casa Rosada, enquanto cumprimentava os seus apoiadores.
Javier e Karina Milei saíram do carro que conduziam para a Casa Rosada para acariciar um cão Golden Retriever que cruzou o caminho do presidente. No caminho, Iñaki Gutiérrez, que liderou a estratégia do presidente no TikTok durante a campanha, e a namorada do jovem, Eugenia Rolón, que também gere as redes sociais do presidente, foram dar um beijo no presidente.
Milei foi recebido na Casa Rosada pelo antigo ministro dos Negócios Estrangeiros macrista Jorge Faurie, agora membro da sua equipe, acompanhado pelo pessoal da Casa Militar. A sua ministra dos Negócios Estrangeiros, Diana Mondino, também o aguardava para uma cerimônia em que líderes internacionais cumprimentam o presidente argentino.
Líderes internacionais e políticos convidados
Na Casa Rosada, Milei recebeu os cumrpimentos de delegações estrangeiras. Volodmir Zelenski foi um dos primeiros a aparecer para a sessão de cumprimentos oficiais: foi longamente abraçado por Milei, e recebeu uma Menorá de prata, um dos principais símbolos do judaísmo (é o candelabro de 7 pontas que significa a luz da Torá). Zelenski é judeu e Milei já se declarou um “estudioso do judaísmo”.
Além de Zelenski, participaram Luis Lacalle Pou, presidente do Uruguai, Gabriel Boric, presidente do Chile, Santiago Peña, presidente do Paraguai, Daniel Noboa, presidente do Equador, Renato Florentino Pineda, vice-presidente de Honduras, Álvaro Leyva, ministro das Relações Exteriores da Colômbia e Javier González-Olaechea, ministro das Relações Exteriores do Peru.
O ex-presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, também participou do evento. Esteve no púlpito nas escadarias do Congresso durante o discurso de Milei, e na Casa Rosada, durante a cerimônia de parabenização, mas não pode tirar fotos com o presidente argentino, honraria só permitida a ocupantes de cargos públicos.
Apesar disso, Bolsonaro foi uma das primeiras pessoas que Milei convidou quando foi eleito no segundo turno das eleições argentinas em 19 de novembro. Poucas horas depois da vitória, eles fizeram uma vídeo-chamada em que o convite foi feito, antes mesmo de convidar Lula. Sob incertezas se o atual mandatário brasileiro viria a Buenos Aires depois de Milei o haver chamado de “comunista” e “corrupto” durante a campanha, além de acusá-lo de interferir no pleito argentino, Lula indicou horas depois que não participaria do evento.
Milei tentou amenizar o mal-estar gerado, enviando sua futura chanceler, Diana Mondino, para se reunir com Mauro Vieira e entregar uma carta direta do libertário para Lula, convidando-o para a posse. “Desejo que o tempo em comum como presidentes e chefes de governo seja uma etapa de trabalho frutífero e construção de laços que consolidem o papel que Argentina e Brasil podem e devem cumprir como nações”, escreveu Milei, em um movimento vistos por analistas na época como tentativa de desfazer os ditos anteriores. Lula porém, confirmou há poucos dias a sua ausência do evento.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.