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Javier Milei, um presidente ‘quase judeu’ na Argentina do Papa Francisco

O mandatário publicou versos da Torá nas redes sociais, viajou para se encontrar com rabinos e disse que, se não fosse pelos desafios de observar o sábado judaico enquanto servia como presidente, ele se converteria ao judaísmo

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Por Jack Nicas (The New York Times) e Daniel Politi (The New York Times)

O presidente Javier Milei da Argentina é um católico que lidera o país natal do papa Francisco.

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Ele também estuda regularmente a Torá, participa do jantar de Shabat e disse que talvez seu conselheiro mais importante seja seu rabino. Ao longo dos anos mais recentes, Milei demonstrou um interesse intenso e, entre a maioria dos líderes mundiais, incomum pelo judaísmo.

Ele publicou versos hebraicos da Torá nas redes sociais, viajou internacionalmente para se encontrar com rabinos, chamou Moisés de inspiração e disse que, se não fosse pelos desafios de observar o sábado judaico enquanto servia como presidente, ele se converteria ao judaísmo.

O presidente da Argentina, Javier Milei, visita o cemitério de Montefiore, para uma visita ao túmulo do rabino chassidico Menachem Mendel Schneerson, em Nova York, Estados Unidos  Foto: Andres Kudacki/AP

Apoio a Israel

A sua crescente devoção à fé judaica também começou a informar a política argentina. A nação se tornou o mais feroz defensor de Israel na América Latina, declarando o Hamas, o grupo militante palestino, uma organização terrorista. Milei prometeu transferir a embaixada da Argentina em Israel para Jerusalém. E nomeou seu rabino pessoal, Shimon Axel Wahnish, como embaixador da Argentina em Israel.

Ele também prometeu esforços renovados para buscar justiça para as 85 vítimas do atentado a bomba de 1994 contra um centro comunitário judaico em Buenos Aires. O 30º aniversário desse ataque foi na quinta feira, 18.

“Não estamos aqui para fazer mais do mesmo. Estamos aqui para propor uma ruptura com o que vários governos fizeram” em resposta ao atentado, disse Milei na noite de quarta feira, 17, em um evento memorial em Buenos Aires. O ataque tem sido uma ferida aberta para a comunidade judaica argentina porque ninguém jamais foi legalmente responsabilizado por ele.

Argentinos erguem cartazes das vitimas do atentado da AMIA em Buenos Aires, que deixou 85 mortos em 1994  Foto: Tomas Cuesta/AFP

Os tribunais argentinos concluíram que o Irã estava por trás do ataque e que o grupo militante libanês Hezbollah o executou. Os tribunais nomearam pessoas específicas, mas os suspeitos permaneceram foragidos apesar dos avisos de detenção da Interpol. Os tribunais argentinos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos também concluíram que antigas autoridades argentinas dificultaram as investigações a respeito do atentado.

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Em abril, quando um tribunal superior da Argentina reafirmou as conclusões anteriores a respeito do papel do Irã, o gabinete de Milei saudou a decisão, dizendo que “pôs fim a décadas de atrasos e acobertamentos”.

Abordagem

A ligação crescente de Milei com o judaísmo como líder de uma nação esmagadoramente cristã reflete sua abordagem pouco ortodoxa para a política, que ajudou a levá-lo à presidência no ano passado.

Milei foi eleito depois de dizer aos argentinos que eles deveriam suportar mais dor para resolver a crise econômica do país. E embora isso até agora tenha se mostrado verdade – pelo menos a parte dolorosa, bom o aumento da pobreza e o colapso do peso argentino – as suas taxas de aprovação permaneceram altas, em torno de 50%.

O presidente da Argentina, Javier Milei, participa de uma cerimonia que relembra os 30 anos do atentado da AMIA, em Buenos Aires, Argentina, que deixou 85 pessoas mortas  Foto: Natacha Pisarenko/AP

Milei chegou mesmo a sugerir que o judaísmo poderia fornecer as respostas para resolver a confusão econômica da Argentina. “O rabino que me ajuda a estudar diz que eu deveria ler a Torá do ponto de vista da análise econômica”, disse ele ao El País no ano passado.

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Os argentinos se habituaram à turbulência econômica, mas não estão tão habituados a um líder que parece ter uma ligação mais forte com o judaísmo do que com o cristianismo, a fé que quase 80% do país diz seguir.

Carlos Menem, presidente da Argentina de 1989 a 1999, foi criado como muçulmano, mas se converteu ao catolicismo ao ingressar na política argentina. Milei foi criado como católico, mas chamou Francisco de “imbecil” e “esquerdista sujo”. Mais tarde, ele se desculpou.

Em abril, ao receber o prêmio de “embaixador da luz” em uma sinagoga hassídica perto de Miami, Milei disse que herdou seus “valores judaicos” de um avô que, pouco antes de morrer, descobriu que era judeu.

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O rabino Wahnish disse que conheceu Milei em 2021 para uma breve conversa que acabou durando horas. Eles falaram a respeito de textos e valores judaicos, e isso rapidamente repercutiu em Milei.

“Era como se ele já conhecesse aquilo, mas simplesmente não soubesse que era judaísmo”, disse o rabino Wahnish. Os dois agora conversam com frequência, com Milei chamando o rabino de seu “conselheiro espiritual” e levando-o em viagens internacionais, inclusive para conhecer o bilionário Elon Musk.

O presidente da Argentina, Javier Milei, ergue uma bandeira de Israel em Lomas de Zamora, Argentina  Foto: Natacha Pisarenko/AP

Milei divide comunidade judaica

A Argentina, uma nação de 46 milhões de habitantes, tem a maior população judaica da América Latina, com cerca de 200.000 pessoas no país identificadas como judias. Chegando em ondas de imigração iniciadas no final do século XIX, muitos buscaram refúgio durante a Segunda Guerra Mundial. A Argentina também se tornou um refúgio para nazistas fugitivos.

A adesão de Milei ao judaísmo foi recebida com reações diversas por parte da comunidade judaica da Argentina.

O rabino Alejandro Avruj, que lidera uma sinagoga conservadora em Buenos Aires, disse que Milei foi uma mudança bem-vinda. Quando terroristas bombardearam a Embaixada de Israel em Buenos Aires em 1992 e o centro comunitário judaico dois anos depois, disse ele, “não havia nenhum presidente que quisesse falar sobre o judaísmo e Moisés”.

Ele disse que a defesa de Israel por Milei após o ataque do Hamas em 7 de outubro o deixou “orgulhoso – não como judeu, mas como argentino”.

O presidente da Argentina, Javier Milei, discursa no Congresso Judaico Mundial em Buenos Aires, Argentina  Foto: Natacha Pisarenko/AP

Alguns outros judeus argentinos discordam. O chefe do museu de Anne Frank em Buenos Aires temeu publicamente que as críticas de Milei ao Hamas pudessem novamente tornar a Argentina um alvo. O Hamas disse que a Argentina designou o grupo como terrorista para justificar “genocídio e limpeza étnica” na Faixa de Gaza.

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Outros observam que Milei se alinhou com um setor particularmente ortodoxo do judaísmo. Em sua primeira viagem ao exterior como presidente eleito no ano passado, ele foi a Nova York para visitar o túmulo do rabino Menachem Mendel Schneerson, um influente líder hassídico conhecido como Rebe.

E alguns acusam Milei de se interessar pelo Judaísmo porque se vê na imagem de Moisés como um libertador dos oprimidos.

“O judaísmo permite a ele ver-se como alguém apoiado pelas ‘forças dos céus’, enviado para salvar a Argentina”, disse Pablo Gorodneff, líder do Apelo Judaico Argentino, um grupo judaico de esquerda.

“Forças dos céus” foi uma espécie de slogan de campanha para Milei. Ele também chamou Moisés de “o maior libertador de toda a humanidade” e uma de suas referências mais importantes.

O presidente da Argentina, Javier MIlei, abraça o papa Francisco, no Vaticano  Foto: Vatican Media/AP

Na quinta feira, Milei participou de um serviço memorial pelo 30º aniversário do atentado ao centro comunitário, a Asociación Mutual Israelita Argentina, ou AMIA. O governo de Milei está defendendo um projeto de lei que daria luz verde aos julgamentos à revelia dos cidadãos libaneses e iranianos que os tribunais argentinos disseram estarem envolvidos no ataque. Os esforços anteriores para aprovar julgamentos à revelia não conseguiram ser aprovados no Congresso da Argentina, e alguns na Argentina questionaram se esta seria a medida certa.

Amos Linetzky, atual presidente da AMIA, disse que a organização se opôs historicamente à abordagem porque preferia ver os responsáveis punidos, e não apenas condenados à revelia. No entanto, ele saudou os esforços de Milei para buscar justiça.

“Milei demonstrou total disposição e preocupação e desejo de priorizar a questão”, disse ele.

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Em fevereiro, Milei visitou o papa Francisco no Vaticano. Os dois argentinos, apesar das tensões anteriores, se abraçaram e passaram uma hora juntos. Mais tarde, o Vaticano chamou a reunião de “cordial”. Milei disse à televisão italiana: “Sou católico, embora seja quase um praticante do judaísmo”.

Milei também trouxe vários conselheiros para se encontrarem com o papa. Entre eles estava seu rabino. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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