Desde a fundação de Israel, em 1948, apoiar a segurança do país e seu desenvolvimento econômico e cimentar seus laços diplomáticos com os Estados Unidos têm sido a “religião” de muitos judeus americanos não tão praticantes — em vez de estudar a Torá ou manter-se kosher. Essa missão orientou arrecadações de recursos e forjou solidariedade entre comunidades judaicas em todos os EUA.
Agora, muitos judeus americanos precisarão encontrar um novo foco para sua paixão.
Porque se o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu se sair bem-sucedido em seu putsch com objetivo de aniquilar a independência do Judiciário israelense o tema de Israel poderá fraturar todas as sinagogas e comunidades judaicas nos EUA. Para colocar de maneira simples: Israel está diante do maior rompimento interno desde sua fundação, e para cada rabino e líder judeu nos EUA hoje silenciar a respeito dessa briga significa tornar-se irrelevante.
A Agência Telegráfica Judaica acaba de publicar um artigo com um vislumbre revelador dessa realidade. O texto citou a rabina Sharon Brous, de Los Angeles, pronunciando o início de um sermão sobre Israel, no mês passado, com um alerta de conteúdo para os congregados: “Eu tenho de dizer algumas coisas hoje que, estou certa, irritarão alguns de vocês”.
Todo rabino americano sabia do que ela estava falando: Israel se tornou um assunto tão polêmico e polarizador que é impossível falar sobre o tema sem tomar partidos a favor ou contra as políticas de Netanyahu.
Conforme afirmou a rabina Brous à Agência Telegráfica Judaica, “Nós temos uma comunidade maravilhosa, todos se amam, até o momento que você se levanta e pronuncia seu discurso sobre Israel”. Ela contou que o fenômeno até recebeu um apelido: “Sermão morte por Israel”. Morte por Israel. Essa eu jamais havia escutado.
O que torna a situação ainda mais incendiária é que a falha sísmica em relação a Israel — pró ou anti-Netanyahu — com frequência se sobrepõe à falha sísmica entre democratas e republicanos, e nós sabemos quão explosiva é essa divisão.
Interesses divergentes
A realidade, contudo, é que interesses de judeus americanos e Israel têm divergido há muitos anos, mas isso era encoberto. Até o início dos anos 2000 — enquanto Israel se dedicava a absorver judeus russos e etíopes com a ajuda da comunidade judaica americana, a perseguir o processo de paz de Oslo com ajuda de presidentes americanos e a lançar startups com a ajuda de investidores americanos — os interesses das duas comunidades pareciam ser, em geral, alinhados.
Mas aproximadamente desde 2009, Netanyahu — hoje ele lidera seu sexto governo como primeiro-ministro — se aliou cada vez mais a partidos ultranacionalistas e ultrarreligiosos e passou a adotar a cartilha trumpista. Ele conseguiu vencer cada vez mais eleições radicalizando sua base, atacando a mídia e as instituições jurídicas e acadêmicas de Israel e incitando seus apoiadores contra israelenses de centro e de esquerda, assim como árabes-israelenses. Na última eleição, em novembro, Netanyahu desistiu de qualquer tentativa de construir uma coalizão ampla de centro.
Sob Netanyahu, os governos de Israel procuraram todas as maneiras possíveis de evitar o processo de paz com os palestinos e usaram todas as oportunidades possíveis para demonizar o líder palestino Mahmoud Abbas, mesmo que Netanyahu saiba que há anos a Autoridade Palestina, de Abbas, provê segurança na Cisjordânia em colaboração com Israel.
Netanyahu e sua equipe também desdenham dos judeus americanos, qualificando-os como um ramo em extinção, que dilui seu judaísmo casando-se com não judeus e ruma à irrelevância. Netanyahu e seus aliados, em vez disso, direcionaram suas energias para construir apoio a Israel entre os republicanos e sua base evangélica.
Ainda assim, os líderes das maiores instituições judaicas dos EUA se esforçaram bastante para negar a existência do desprezo implícito que Netanyahu manifesta em relação a elas publicando declarações ingênuas e simplistas sobre a necessidade de respeitar o processo democrático de Israel e julgar o governo do país “sobre suas ações” — como se o fato de Netanyahu ter nomeado dois condenados por crimes pela Justiça, nacionalistas e pregadores messiânicos para cargos importantes em seu gabinete não fosse digno de condenação.
Mas conforme o governo mais recente de Netanyahu pressiona para avançar com sua tentativa de aniquilar a independência do Judiciário de Israel, polarizando a sociedade israelense, líderes judeus nos EUA não têm outra alternativa a não ser escolher de que lado se posicionam.
Escolha diante da polarização
Pois algo que começou em Israel como um protesto contra o putsch de Netanyahu contra o Judiciário está crescendo e virando uma revolta muito mais abrangente entre os elementos mais produtivos da sociedade de Israel, que também carregam o fardo da segurança e combatem suas guerras. Esse setor está agora olhando para o gabinete de Netanyahu — e muitos de seus membros nunca serviram em combate (nenhum ultraortodoxo, somente alguns ultranacionalistas combateram) e pagam poucos impostos, ou nenhum, apesar de suas instituições religiosas devorarem orçamentos enormes — e dizendo: “Basta! Nós não vamos mais engolir isso”.
No sábado passado, cerca de 250 mil israelenses de todos os espectros políticos tomaram as ruas (o equivalente aproximado em população a 8,6 milhões de americanos) exigindo o fim da tentativa de Netanyahu de destruir a independência do Judiciário de Israel. Ao mesmo tempo, a maioria esmagadora dos pilotos reservistas de uma força área de elite notificou seus oficiais-comandantes que, em protesto contra a tentativa de golpe do governo no Judiciário, não participará de um treinamento.
Não surpreende que o economista e demógrafo israelense Dan Ben-David tenha ressaltado para mim que “esta é nossa segunda guerra de independência, e esse desfecho interessa a todos os judeus”.
O lobby judaico israelense nunca teve de escolher entre Netanyahu e pilotos militares que servem ao país
Mas a maioria das organizações judaicas e líderes leigos nos EUA — particularmente a liderança do AIPAC, o poderoso lobby judaico de direita — não foram construídas para lidar com esse tipo de luta existencial dentro de Israel. Por 75 anos, elas foram construídas para conviver com dignatários e posar para fotos com pilotos militares israelenses, organizar visitas à indústria de tecnologia em Israel e fazer tudo o que Netanyahu lhes dissesse. Nunca lhes foi requerido escolher ENTRE o primeiro-ministro de Israel e seus pilotos militares.
Na próxima semana, Netanyahu esfregará sua política na cara dos judeus americanos mandando seu ministro das Finanças extremista, Bezalel Smotrich, a Washington para dar palestra em uma evento Israel Bonds. Smotrich é o parceiro de coalizão que declarou publicamente que toda a cidade palestina de Huwara, na Cisjordânia, onde um atirador palestino matou dois colonos israelenses e que depois foi atacada pelos judeus — “tem de ser aniquilada” como vingança e que “o Estado de Israel deveria fazer isso”. (Posteriormente ele disse que a afirmação foi “um lapso em meio a uma tempestade de emoções”.)
A Israel Bonds, organização que negocia títulos do governo israelense para o Ministério das Finanças do país, teve de emitir um comunicado afirmando que o evento seria realizado conforme o planejado, explicando que sua função é vender os títulos para o “desenvolvimento da economia de Israel, independentemente da política”.
Mas eis a questão: Nada mais independe da política quando se trata do atual governo de Israel. Então, pela primeira vez, nós veremos um evento da Israel Bonds ao qual judeus americanos comparecerão e diante do qual judeus israelenses que vivem nos EUA protestarão.
Recentemente, três das personalidades centristas mais importantes de Israel que escrevem para o público judeu americano — o rabino Daniel Gordis, Yossi Halevi e Matti Friedman — publicaram uma carta aberta no jornal Times of Israel basicamente dizendo aos americanos que eles têm se levantar se quiserem preservar a relação EUA-Israel.
“Aos amigos de Israel na América do Norte, nós estamos dando o passo incomum de nos dirigir a vocês em um momento de crise aguda em Israel”, escreveram eles. Proteger Israel hoje “significa defender o país de uma liderança política que está solapando a coesão da nossa sociedade e seu éthos democrático, os fundamentos da história de sucesso israelense. (…) Um primeiro-ministro que atualmente é julgado por corrupção — e que nomeou ministros com registros criminais — está reivindicando legitimidade para subverter o sistema judicial.”
Como responder? Ando ouvindo umas ideias novas e radicais. Gidi Grinstein, fundador do instituto de análise israelense Reut e autor de “Flexigidity: The Secret of Jewish Adaptability” (o segredo da adaptabilidade judaica), publicou um ensaio algumas semanas atrás no Times of Israel conclamando os judeus americanos a se reimaginar como uma “diáspora robusta, resiliente e próspera”, que investe em sua própria vitalidade e instituições e contribui para a sociedade americana — deixando de aceitar o “discurso sionista dominante que considera de segunda classe o judaísmo americano”. O ruído que você está escutando é o início de uma enorme mudança de paradigma.
Em serviços de Shabat realizados aos sábados em todos os EUA, o livro-padrão de rezas inclui uma prece para os EUA e outra para Israel. A sinagoga conservadora-moderada que frequento em Maryland recentemente substituiu em seus serviços a oração por Israel pela “Prece alternativa pelo Estado de Israel”, escrita por um membro da congregação, Alan Elsner. Ela é construída em torno de linhas cruciais da Declaração de Independência de Israel — fazendo votos de que Israel deverá ser sempre um país construído sobre “liberdade, justiça e paz, conforme a visão dos profetas de Israel” e afirmando: “Rezemos para que essas palavras continuem a guiar os líderes de Israel”.
Sim, rezemos. Mas não basta apenas rezar. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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