Pouco mais de um mês atrás, os democratas aguardavam sua convenção em Chicago como à espera de longo um tratamento de canal. Apesar de perder a confiança de seu partido após um desastroso desempenho no debate de 27 de junho, o presidente Joe Biden, de 81 anos, estava prestes a formalizar sua candidatura aparentemente fadada ao fracasso — e talvez arrastar consigo para o buraco muitos outros democratas. Mas então, em 21 de julho, o desespero deu lugar ao êxtase quando Biden abandonou a disputa e expressou apoio a Kamala Harris, sua vice. Em 24 horas, ela se tornou a indicada de facto. A terrível provação transformou-se subitamente numa estridente sagração.
Delegados eufóricos foram saudados em festas elaboradas. Em um evento para influenciadores de redes sociais chamado “Hotties for Harris” (este correspondente ficou de fora), os convidados bebericaram água de coco, um símbolo viral da campanha de Kamala. Havia testes de gravidez, preservativos e pílulas do dia seguinte gratuitos, oferecidos juntamente com sinais que alertavam que o sexo estará em perigo se Donald Trump e JD Vance, seu colega de chapa, forem eleitos. À 1h da madrugada, rodopiantes jovens democratas lotavam o salão de dança conforme memes de Kamala e Tim Walz, seu colega de chapa, iluminavam as paredes.
É indelicado interromper uma boa festa para falar de trabalho. Kamala claramente espera que a euforia dure até o dia da eleição. Os detalhes do que ela planeja fazer com a presidência seguem raquíticos no caso da economia e totalmente enevoados na área da política externa — e ela parece não ter pressa nenhuma para se explicar. Kamala se destaca não por suas ideias, mas por não ser nem o cambaleante Biden nem o presunçoso Trump.
Graduado nessa escala, o júbilo que saúda Kamala onde quer que ela vá começa a fazer sentido. Democratas inebriados já comparam-na com Barack Obama, o mais bem-sucedido candidato presidencial do partido nos anos recentes. Suas avaliações positivas foram às alturas, ela reverteu o declínio de Biden nas pesquisas e agora desfruta de uma vantagem de 3 pontos no voto popular de acordo com o rastreador de sondagens da Economist.
Sua campanha, cuja infraestrutura ela herdou de Biden, tem arrecadado tubos: mais de US$ 300 milhões em um mês. Enquanto os púberes apoiadores do geriátrico Biden tinham pouco do que se gabar online, a juventude pró-Kamala e sua turma têm compartilhado energicamente memes alto astral sobre sua candidata — mais cocos, principalmente, ou frases aleatórias com a palavra “brat” (levada).
A cobertura que a imprensa mainstream dos Estados Unidos tem dedicado à candidata democrata tem sido um pouco menos bajuladora, mesmo que ela não tenha concedido nenhuma entrevista desde que aceitou a indicação.
Papo furado e exageros
Kamala, em suma, gostaria de disputar a eleição discutindo valores maiores em vez de propostas pormenorizadas. Ela tem uma extensa carreira na política, como promotora-chefe em San Francisco, procuradora-geral da Califórnia, senadora e vice-presidente. Mas um estudo cuidadoso sobre sua trajetória revela poucas convicções ou ideias consistentes.
Quando concorreu na eleição presidencial de 2020, ela atuou como uma porta-estandarte da esquerda que pretendia gastar US$ 10 trilhões no combate às mudanças climáticas, oferecer saúde financiada pelo Estado para todos os americanos, banir a extração de gás e petróleo de xisto e descriminalizar travessias ilegais da fronteira.
Sua campanha afirmou que, desde então, ela mudou de posição sobre todos esses temas, em linha com a política mais moderada de Biden. Mas não explicou como nem por que o pensamento dela evoluiu. Kamala tem sido deliberadamente vaga em relação a problemas contenciosos, como a guerra em Gaza e a explosão no déficit federal. O website de sua campanha, como o de Biden, não possui nenhuma página sobre políticas, enquanto o de Trump tem várias. A agenda econômica que ela anunciou é obviamente projetada para conquistar eleitores, não para estimular o crescimento.
Essa abordagem ambígua pode não resistir até novembro. Kamala, cuja plataforma própria de políticas cativou poucos admiradores em sua primeira disputa presidencial, parece satisfeita em herdar as políticas de Biden sem muitos ajustes. Os democratas estão tão eufóricos por ela conseguir pronunciar frases completas que poucos inclinam-se a pressioná-la a adotar posições que ela consideraria desconfortáveis.
Os ruidosos protestos de Trump sobre sua agenda incerta e escassez de entrevistas para jornalistas alcançaram ouvidos moucos. Apesar do nosso modelo de previsão presidencial afirmar que Kamala tem uma chance — longe de confortável — de 52% de vencer a eleição de novembro, por enquanto a maré está ao seu favor. Em outras palavras, há motivo para Kamala continuar nessa toada.
A Economist examinou as transcrições de todas as declarações públicas pronunciadas por Kamala no mês que se seguiu ao anúncio de sua postulação. Várias conclusões emergiram. Sua mensagem é consistente, disciplinada e em grande medida genérica.
Sua frase favorita, usada mais do que outras, é, “Não vamos retroceder” — um contraste acentuado com a candidatura vingativa de Trump. Ela tenta o quanto possível discutir o Projeto 2025, um plano ferozmente conservador para a presidência que os democratas passaram a atacar e que acabou repudiado por Trump. Quando Kamala discute políticas, o tema é inteligentemente definido como defesas de liberdades: “a liberdade do voto”, “a liberdade de estar a salvo da violência com armas de fogo” e “a liberdade de uma mulher tomar decisões sobre seu próprio corpo”.
Igualmente notável é o que Kamala não diz. Ela quase não se refere à mudança climática, que tem sido um foco do governo Biden. Ela não define a eleição como parte de uma disputa maior entre democracia e autocracia, dentro e fora dos EUA, como Biden. A palavra “autocrata” não apareceu nenhuma vez. Também não há menções à China, a rival geopolítica de Washington, apesar de poucos assuntos serem mais prementes se ela virar presidente.
Num discurso pronunciado em Raleigh, na Carolina do Norte, em 16 de agosto, esperava-se que Kamala apresentasse sua agenda econômica. O que ela definiu foi uma “Bidenomics” com características mais populistas. A política industrial seria mantida, assim como o popular teto de preço da insulina e a ampliação da autoridade do governo federal para negociar quedas de preços de medicamentos.
Sua campanha parece estar pedindo opinião para alguns dos mais graduados conselheiros de Biden, como Brian Deese, que lutou pelas leis de subsídios à manufatura de chips e carros elétricos nos EUA atuando como diretor do Conselho Econômico Nacional.
Uma dica sobre impostos
Para atrair eleitores enfurecidos com a alta inflação nos primeiros anos de Biden, Kamala prometeu um banimento federal sobre a aumentos especulativos nos preços dos alimentos. Como tal manipulação prejudicial aos americanos seria definida permanece incerto. Kamala também propôs um crédito tributário de US$ 25 mil para compradores de sua primeira residência, o que, sem mexer em outros fatores, tende apenas a fazer os preços aumentar. Semanas após Trump anunciar uma proposta para eliminar impostos sobre gorjetas, Kamala também a endossou. (Trump acusou-a de “plágio”.)
Democratas e republicanos também estão de acordo em outros temas econômicos. Ambos concordam que gastar em benefícios (assistência médica e pensões financiadas pelo governo, principalmente) é inviolável, mesmo que cada lado acuse o outro de tramar cortes secretamente. Ambos os partidos consideram expansões no crédito tributário para famílias com filhos. E nenhum atenta para o custo de suas promessas.
As políticas de Kamala custariam US$ 1,7 trilhão ao longo da próxima década, de acordo com o Comitê para um Orçamento Federal Responsável, um grupo de defesa de direitos. Mantendo a promessa de Biden de não aumentar impostos de americanos que ganham menos de US$ 400 mil anualmente, Kamala teria dificuldades em pagar por elas. Um nebuloso compromisso para tornar o serviço de creches mais acessível aumentaria ainda mais essa conta.
A maneira que Kamala pretende lidar com política externa é ainda mais obscura. Sua longa atuação política no Estado da Califórnia dá poucas pistas. Quando foi senadora, de 2017 a 2021, ela se opôs a acordos comerciais, incluindo a Parceria Transpacífica de Obama e o Acordo EUA-México-Canadá (uma atualização do NAFTA negociada por Trump), afirmando que suas proteções para os trabalhadores e o meio ambiente eram inadequadas. Como vice-presidente, ela viajou o mundo saudando aliados. Biden pediu-lhe que ajudasse a aliviar os problemas que motivam migrações de El Salvador, Guatemala e Honduras e alinhasse com aliados regulações sobre inteligência artificial. Mas em relação aos grandes desafios de política externa do governo Biden — a retirada do Afeganistão, o esforço para apoiar a Ucrânia, a guerra entre Israel e o Hamas e a competição com a China — ela parece ter menos influência do que o conselheiro de segurança nacional, Jake Sullivan, o secretário de Estado, Antony Blinken, e o diretor da CIA, Bill Burns.
“Considero seguro assumir que ela compartilha muitos valores e prioridades do presidente Biden”, afirma Chris Murphy, democrata de Connecticut e membro da Comissão de Relações Exteriores do Senado. “Não há dúvida de que ela deixará sua marca própria. Não considero nada útil adivinhar onde ocorreriam desvios”, acrescenta ele, também sublinhando que Kamala demonstrou “uma preocupação elevada com a catástrofe humanitária em Gaza”.
Kamala não compareceu ao recente discurso do primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, no Congresso; numa reunião posterior, na Casa Branca, ela fez questão de dizer a repórteres: “Israel tem direito de se defender, e a maneira que o país faz isso é importante”. Kamala lamentou “as imagens de crianças mortas e pessoas desesperadas e famintas fugindo para se salvar”, e insistiu que não silenciará nem se insensibilizará em relação ao sofrimento.
Saiba mais
Alguns atlanticistas que podem ter temido que uma presidente nascida e criada na Califórnia se interessasse menos pela Europa se tranquilizaram ao saber que seu conselheiro de segurança nacional na Casa Branca seria Philip Gordon, um diplomata que escreveu vários livros sobre segurança europeia e a Otan — e até traduziu pessoalmente uma obra do ex-presidente francês Nicolas Sarkozy. O livro mais recente de Gordon, “Losing the Long Game”, é uma extensa crítica à obsessão dos EUA com mudanças de regime, que envolve “ameaças exageradas, desejos ilusórios, intervenções militares custosas e fracassadas, declarações prematuras de vitória e, com frequência, resultados desastrosos a longo prazo”.
Muitos diplomatas em Washington assumem que Kamala se ateria às estratégias de Biden até que novas crises se apresentassem. Apesar da opacidade de sua agenda, os democratas argumentam que Kamala seria uma líder mais estável que Trump. “As campanhas apresentam visões distintas para a competição com a China”, afirma Murphy, o senador de Connecticut. “A única maneira de lidar com a ascensão da China é junto a aliados.”
Antes de se retirar da corrida, Biden esboçou uma estratégia de campanha que ignorava planos específicos para um segundo mandato que não fossem “concluir o trabalho” e se dedicava à inaptidão de Trump para a função e à impopular anulação da Suprema Corte aos direitos ao aborto, de 2022, quando o tribunal reverteu a decisão crucial no caso Roe versus Wade. O presidente deu poucas entrevistas mais profundas, preferindo suaves conversas com influenciadores de redes sociais bajuladores.
Kamala que manteve a maioria dos funcionários da campanha de Biden, parece seguir com essa estratégia, inclusive evitando a imprensa. Kamala desempenha melhor pronunciando discursos retumbantes e otimistas e partindo para o ataque contra oponentes em debates do que concedendo entrevistas. E aborto é o tema em que ela fica mais à vontade. Em março, Kamala se tornou a autoridade americana mais graduada na história a visitar uma clínica de aborto, em St. Paul, Minnesota. Campanhas populares para garantir o direito ao aborto em Constituições estaduais, incluindo em Estados indefinidos, como Arizona e Nevada, indubitavelmente impulsionarão sua campanha.
Trump tem tentado se distanciar das facções mais extremistas de seu partido — que gostariam de banir as pílulas usadas para realizar abortos privadamente, impor restrições federais ao aborto e coibir até o uso de fertilização in vitro — afirmando que cada Estado deveria decidir as políticas sobre esses temas independentemente. Uma inconfortável posição defensiva para um homem acostumado ao ataque.
Trump pode ter assumido que Kamala ficaria igualmente desconfortável em defender o histórico do governo Biden sobre imigração ilegal. O número de pessoas presas tentando atravessar a fronteira ilegalmente atingiu um recorde, de aproximadamente 2,5 milhões, no ano passado.
Além disso, a missão de Kamala na América Central deu a Trump uma desculpa para rotulá-la como “czar de Biden na fronteira”, um grande exagero. Contudo, talvez inesperadamente, Kamala não está se resignando na resposta, ela está contra-atacando. Em um novo anúncio publicitário, a vice-presidente descreve a si mesma como “a promotora pública na fronteira”, que enfrentou gangues e cartéis. Kamala promete contratar milhares de agentes para a polícia de fronteira caso seja eleita presidente e fustiga Trump com frequência acusando-o de sabotar uma lei bipartidária sobre imigração, anteriormente este ano, que teria incrementado a fortificação da fronteira com o México e tornado as leis de concessão de asilo mais restritivas.
A ambiguidade calculada de Kamala pode ser mais que uma estratégia eleitoral. Pode ser também uma maneira de evitar decepções caso os americanos mantenham o governo dividido (neste momento, os republicanos controlam a Câmara dos Deputados; e os democratas, o Senado). Apesar de os eleitores tenderem a reeleger incumbentes (e Kamala é o mais próximo disso), o partido que ocupa a Casa Branca não retoma o controle de ambas as Casas do Congresso desde 1948.
Os democratas estão otimistas a respeito de reconquistar a maioria na Câmara, que atualmente opera com uma tênue maioria republicana. Há mais republicanos concorrendo em distritos conquistados por Biden em 2020 do que democratas em circunscrições em que Trump venceu. Reformulações distritais decorrentes de ordens judiciais provavelmente melhoraram um pouco as chances dos democratas.
O entusiasmo, em falta quando Biden era cabeça de chapa, voltou agora que Kamala o substituiu. “Estamos vendo uma onda enorme de entusiasmo nas bases, muita gente se voluntariando e muito mais energia positiva. As pessoas estão realmente animadas com uma mulher pró-escolha como cabeça de chapa”, afirma Kirsten Engel, candidata democrata em um distrito duramente disputado no sudeste do Arizona. “Nós tivemos, enquanto mulheres, nossos direitos retirados com a anulação de Roe versus Wade. E meu oponente, (o congressista republicano) Juan Ciscomani, foi parte disso.”
Os republicanos, porém, deverão conquistar o Senado, onde os democratas detêm atualmente a maioria com margem de um assento. Somente um terço dos assentos da Câmara Alta entra em disputa a cada ciclo eleitoral. As circunscrições disputadas este ano são terrenos bastante inóspitos para os democratas. É quase certo que o partido perderá um assento na Virgínia Ocidental.
Mesmo para manter a Casa dividida igualmente, os democratas teriam de vencer todas as disputas apertadas, conquistando, numa ordem crescente aproximada de dificuldade, Pensilvânia, Nevada, Wisconsin, Michigan, Arizona, Ohio e Montana. Conquistar esses dois últimos Estados, onde a vitória de Trump é tida como certa, exigiria muitos votos divididos entre os partidos — algo que tem se tornado cada vez mais raro hoje em dia.
Mesmo assim, Kamala teria de ganhar a presidência para conceder a Walz o voto de Minerva na Casa. Somente dessa maneira os itens da lista de desejos de Kamala — reinstituir o direito ao aborto, impor controles modestos sobre armas de fogo, aumentar o salário-mínimo federal e estabelecer um caminho para a cidadania de imigrantes ilegais — teriam uma chance remota de virar lei.
Kamalama Ding-Dong
A maior parte da retórica pronunciada no palco da convenção foi entusiástica e combativa. “Eu, por exemplo, estou cansada de ouvir sobre como um destruidor de sindicatos de segunda classe se considera mais patriota do que a mulher que luta todos os dias para tirar os trabalhadores das garras da ganância que arrebentam nosso modo de vida”, trovejou Alexandria Ocasio-Cortez, uma heroína da esquerda.
Michelle Obama, a mulher do ex-presidente Obama, denunciou o “mesmo velho truque” de Trump: “Dobrar a aposta em mentiras feias, misóginas e racistas para substituir ideias e soluções reais verdadeiramente capazes de melhorar as vidas das pessoas”. O próprio Obama escarneceu: “Eis um bilionário de 78 anos que nunca parou de reclamar de seus problemas desde que desceu de sua escada rolante dourada nove anos atrás; numa torrente constante de queixas e ressentimentos que piorou agora que ele ficou com medo de perder para Kamala”.
Mas em meio a toda narrativa combativa e todos os ataques para agradar a plateia no outro lado, o casal Obama também recordou os democratas de que a eleição continua apertada e provavelmente será decidida por margens muito estreitas em uns poucos Estados indefinidos. “Nós só temos dois meses e meio, gente, para conquistar essa vitória. Apenas 11 semanas para garantir que todos os nossos conhecidos se registrem e façam planos para votar”, disse Michele. Os democratas devem seguir seu conselho. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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