ENVIADO ESPECIAL À FILADÉLFIA, PENSILVÂNIA - Quem vai ao mercado italiano da rua 9, na Filadélfia, na hora do almoço, querendo comer uma bela burrata ou alguns cannoli pode acabar mudando de ideia e pedir um taco ou um burrito.
A rua principal do mercado, criado em 1915, abriga açougues, cafés, lanchonetes e barracas de frutas e vegetais. A herança italiana permanece, nas cores, nas bandeiras e em parte dos negócios, mas restaurantes mexicanos e vietnamitas ajudam a compor a diversidade do bairro, conhecido por atrair imigrantes desde o fim do século 19.
Se mais de 100 anos atrás, eram os italianos que procuravam trabalho nesta parte da Pensilvânia, hoje são os latino-americanos que chegam ao Estado em números cada vez maiores e criam raízes aqui. O motorista de caminhão Hugo Lozada, de 42 anos, é um deles.
Seus pais vieram da República Dominicana nos anos 70. Nascido nos EUA, ele faz parte de uma comunidade de 1 milhão de latinos que vivem hoje na Pensilvânia, o equivalente a 7,8% da população do Estado.
Lozada tem uma vida confortável. Vive em uma casa própria na zona norte da Filadélfia, que subloca para complementar a renda e criar os quatro filhos. Ele também ajudou a família a comprar uma casa na República Dominicana.
Evangélico devoto, Lozada está insatisfeito com o governo de Joe Biden e o aumento do custo de vida, que o tem feito recorrer a bicos no fim de semana como entregador para manter o padrão de vida da família.
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“Vou com Donald Trump”, resume ele, sobre sua opção nas eleições de 5 de novembro, enquanto almoça o cheesesteak, sanduíche típico da Filadélfia, com carne e provolone no pão italiano (as cebolas são opcionais).
Lozada faz parte de um fenômeno que, à primeira vista pode parecer contraditório: o dos latinos contrários à imigração que votam num candidato que promete deportar milhões de imigrantes ilegais, muitos deles com origens similares às suas. Mas ele tem uma explicação.
Existem latinos e latinos, e imigrantes e imigrantes, conta Lozada. Hispânicos de segunda geração, como é o caso de Lozada, já estão estabelecidos e integrados à sociedade e à economia americana, e, por isso, na visão dele, não aceita qualquer oferta de trabalho.
“Eu não aceito trabalhar por menos que 15 ou 20 dólares a hora. Mas um coitado que vem desesperado pela fronteira da Venezuela ou de Honduras topa qualquer coisa por US$ 7″, explica. “Quem você acha que vão contratar? Eles precisam de mão de obra escrava.”
Além disso, existem diferenças e rivalidades culturais dentro da própria comunidade latino-americana dos Estados Unidos, diz ele. Na Pensilvânia, os porto-riquenhos são o maior grupo, e correspondem a 53% do total, seguidos pelos mexicanos, com 13%. Os dominicanos são o terceiro da lista, com quase 11%. É uma exceção diante da média nacional, na qual os mexicanos são maioria, com 60% e os porto-riquenhos estão em segundo com 9,5%.
“Colombianos e venezuelanos principalmente acham que têm direito a tudo de mão beijada porque chegaram com asilo (político)”, diz. “Não trabalharam duro como nós (dominicanos), ou vocês (brasileiros).”
O rancor de Lozada aumenta quando o aumento do custo de vida nos Estados Unidos entra em pauta. Os preços subiram nos EUA no pós pandemia, e a alta em 2022, chegou a 8%. Principalmente este ano o governo conseguiu estabilizar os índices inflacionários, mas a sensação da população é que tudo ainda está caro.
“Eu compro US$ 200 dólares de comida e não chego ao final do mês, diz ele. “Antes podia sair para comer fora, agora cozinhamos tudo em casa.”
Cerca de 600 mil latinos estão habilitados para votar nas eleições deste ano. Eles vivem principalmente em pequenas cidades ao norte da Filadélfia, como Allentown e Reading, além de bairros mais populares do norte da cidade.
Tradicionalmente, a comunidade hispânica é majoritariamente democrata desde meados do século, 20, mas essa vantagem vem diminuindo a cada eleição, no país de modo geral, e na Pensilvânia em menor escala. Com uma disputa que deve ser renhida, qualquer variação dentro de grupos demográficos, para mais ou para menos, pode ser decisiva.
Na última eleição, quando Biden venceu na Pensilvânia por uma diferença de 80 mil votos, ele vê o apoio de 78% dos latinos do Estado, contra 22% de Trump, segundo uma projeção do Council of Americas. Em 2016, quando Trump levou a Pensilvânia por uma vantagem de 44 mil votos, Hillary teve 74% do voto latino do Estado, e Trump, 26%.
Este ano, uma pesquisa feita no condado de Northhampton, que reúne a maioria dos latinos do Estado, Kamala tem 60% dos votos contra 25% de Trump, com 15% de indecisos ainda em jogo, segundo um levantamento feito em setembro pelo jornal USA Today e a Universidade de Noffolk.
Essa tendência aparenta estar se repetindo a nível nacional. Um levantamento do jornal The New York Times e o Sienna College mostra que Kamala lidera Trump entre os latinos por 56% a 37%. Caso esses números se confirmem nas urnas, será o menor apoio aos democratas desde a reeleição de George W. Bush, em 2004.
Mais do que isso. Candidato nas últimas três eleições, Trump tem visto seu apoio entre a comunidade latina aumentar, de 28% em 2016, para 36% há quatro anos, e 37% agora, também de acordo com a projeção do NYT.
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Por isso, nesta reta final de campanha, democratas e republicanos disputam quase a tapa o voto latino na Pensilvânia. Kamala e seu vice, Tim Walz tem um foco: fazer com que a comunidade porto-riquenha, tradicionalmente mais alinhada ao partido vote em massa.
Trump, por sua vez, tem dois de seus principais postos de campanha em áreas de população latina. Um deles em Reading, e o outro no norte da Filadélfia.
A reportagem do Estadão visitou o comitê no fim de setembro, mas, pelo menos ali, os bons números das pesquisas não se traduzia em otimismo da militância. “Tentamos convencer as pessoas do bairro a votar falando do custo de vida, mas aqui na Filadélfia é difícil”, disse um dos voluntários de Trump, Elvis González. “Acho que meus colegas em Reading estão com mais sucesso.”
Ataques a porto-riquenhos
Na reta final da eleição, no entanto, ataques recentes da campanha de Trump contra porto-riquenhos podem pender a balança para o lado democrata, sobretudo na Pensilvânia, onde a comunidade é maior. A população inteira da ilha, que é um Estado associado dos EUA, foi atacada pelo comediante Tony Hinchcliffe em um comício no Madison Square Garden, na semana passada.
“Não sei se vocês sabem, mas há literalmente uma ilha flutuante de lixo no meio do oceano neste momento. Acho que se chama Porto Rico”, disse o comediante, que na sequência da apresentação incluiu comentários obscenos e racistas sobre latinos, judeus e negros.
Dias depois, Trump se referiu ao comício como um festival de amor, mas sua campanha tentou se distanciar rapidamente das declarações de Hinchcliffe. As declarações do comediante foram uma das poucas ao longo da campanha que fizeram a equipe de Trump se distanciar de uma polêmica. Em nota, a assessora Danielle Alvarez disse: “Essa piada não reflete as visões do presidente Trump, nem da campanha.”
As declarações fizeram com que uma onda de celebridades latinas, como a cantora Jennifer Lopez e o rapper Bad Bunny apoiassem Kamala. A expectativa da campanha democrata é que os ataques coloquem os indecisos da comunidade latina contra Trump.
Mercado de Trabalho
No mesmo mercado italiano onde Hugo Lozada havia parado para o almoço, Guadalupe Reyes vende frutas e legumes numa barraca em frente a um açougue. Ao contrário dele, ela acabou de chegar do México, e não fala inglês. Também não pode votar.
Ela trabalha por 7 dólares a hora como vendedora para um varejista que traz as frutas e o legumes para o mercado. O quilo do pêssego, por exemplo, custa US$ 4 dólares (R$ 23). Muito tímida e receosa, ela evita falar do trajeto que a trouxe até a Pensilvânia, mas tem esperanças de que aqui a vida pode melhorar.
“Preciso ajudar minha família em Chiapas”, diz.
É comum na zona do mercado, os donos mais antigos dos negócios, a maioria descendente de italianos contratar latinos para trabalharem na cozinha. Cada barraca disputa os fregueses com afinco, e anúncios de melhor cheesesteak ou pizza mais tradicional da cidade funcionam como propaganda.
Keith Vello é dono do Lorenzo’s. Exibe orgulhoso o troféu de melhor lanche da cidade, conquistado no ano passado. Sua família comprou a loja há 39 anos, e há poucos anos ele herdou o negócio do pai. Trabalha em conjunto com mais dois funcionários, e um deles é imigrante. A mão de obra barata, confessa, é atrativa.
“Eu também tenho custos. Água, luz, ingredientes... Tudo está mais caro”, explica.
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