XANGAI - Eu sei, desde os anos 70, que o povo chinês é o mais livre e mais democrático do mundo. Todo ano, em minha escola elementar em Xangai, os professores mencionavam esse fato repetidamente em aulas de ética e política. Nossos manuais, fingindo inocência, nos perguntavam se a liberdade e a democracia nos países capitalistas poderiam realmente ser o que eles proclamavam que eram. Depois vinha toda sorte de lógica estranha e exemplos sem citar fontes, mas como eu sempre ficava contando em silêncio durante essas aulas em vez de prestar atenção, o projeto do governo era basicamente desperdiçado comigo. Nos cursos secundário e superior, minha mente era particularmente dura para uma lavagem cerebral. Mesmo assim, durante meus anos na universidade, ainda odiei o Japão. Sentia que os japoneses haviam matado tantos de meus concidadãos, a vasta maioria deles civis, que não bastava eles terem se rendido no fim. Foi só depois de estudar japonês e ler materiais históricos adicionais que fui compreendendo, aos poucos, a verdadeira face da história: quando os japoneses invadiram a China, em 1931, Mao Tsé-tung, naqueles tempos ainda um guerrilheiro, fez meia-volta e correu. Chiang Kai-shek, o presidente regular da China na ocasião, permaneceu para combater os japoneses em sua capital de guerra, Chingqing, mas o Partido Comunista de Mao fugiu para o norte para estabelecer uma base de resistência antijaponesa nas províncias de Shaanxi, Gansu e Ningxia, onde não havia nenhuma unidade do Exército japonês. A juventude de hoje repete a mesma experiência de crescimento que eu tive, mas, diferentemente da minha geração, cujo ódio ao Japão permaneceu no nível verbal, eles foram às ruas se manifestar. Apesar de a Constituição chinesa permitir manifestações, o governo as proíbe exceto em circunstâncias especiais. Toda pessoa familiarizada com a história chinesa sabe que quando a legislação chinesa diz uma coisa, isso pode significar o oposto. Por exemplo, a legislação chinesa diz que todos são iguais perante a lei, mas a verdade é que Hu Jintao e seus colegas são mais iguais que os outros. Sendo assim, a juventude chinesa devia agradecer ao governo japonês porque, se ele não tivesse comprado as Ilhas Diaoyu (nome chinês)/Senkaku (nome japonês), as autoridades chinesas não teriam afrouxado um pouco as malhas, permitindo que ela ganhasse as ruas na semana passada. Os manifestantes entoaram slogans monótonos e maçantes, como dizer para os japoneses caírem fora das ilhas. Policiais à paisana se misturavam aos manifestantes, mantendo contatos nervosos por seus pontos de ouvido. Havia até manifestantes carregando imagens de Mao, que morreu em 1976, embora, por mim, ele poderia ter morrido bem antes. Muitos jovens da marcha estavam terrivelmente excitados. Durante décadas, programas de TV sobre a Guerra Antijaponesa (1931-1945) haviam distorcido os fatos históricos e transformado os japoneses numa raça cruel, estúpida e agressiva de baratas que devia ser exterminada. O divertido era que os atores chineses que retratavam esses demônios japoneses só falavam chinês, curvando-se e arrastando o pé para trás descaradamente, cada movimento deles não diferente dos feitos pelas autoridades corruptas de hoje por toda a China. Agora, o governo chinês sente que não basta caluniar o inimigo pela televisão e chegou a hora de permitir que os jovens se manifestem, uma chance que os jovens saúdam porque com suas ações patrióticas eles podem provar seu valor no mundo. Muitos deles são, de ordinário, muito humildes, ganham um salário baixo e vivem com dificuldade em cidades caras. Eles não podem se dar o luxo de comprar casas, ter uma família, criar filhos ou cuidar de seus pais e ninguém lhes dá muita atenção. Agora, essas marionetes espezinhadas finalmente deram o salto para o centro da cena política, de modo que eles deliberadamente permitem que seus cordões sejam puxados. A educação com lavagem cerebral do governo chinês é mais sofisticada do que isso. Para o regime vermelho durar tanto tempo, para se equiparar aos países ocidentais em indulgência capitalista, ele precisa superar o tosco modelo soviético. E, com certeza, após os quebra-quebras e incêndios, a máquina de propaganda brandiu o slogan "patriotismo racional". São as mesmas velhas instruções para seguir o partido, mas essa é uma era diferente e o partido precisa ficar oculto, razão pela qual precisa enfatizar a palavra da moda: "racional". O Partido Comunista e seu Ministério da Propaganda sempre se mantiveram antenados para os tempos. Nessa sociedade delicadamente autoritária, "patriotismo racional" significa respeitar as regras criadas pelos totalitários. Esse tipo de racionalidade e esse tipo de patriotismo seriam familiares a Joseph Goebbels. Mas a juventude patriótica submetida à lavagem cerebral não compreende assim. Os moradores de Hong Kong que protestaram contra a "educação patriótica" imposta pelo governo continental realmente sabem protestar - diferentemente das manifestações no continente, as suas foram realmente espontâneas e não tiveram apoio do governo. Não surpreende que as agências domésticas não as tenham noticiado. Curiosamente, nos microblogs, um número surpreendente de intelectuais conhecidos apoiou fortemente o slogan do patriotismo racional. No início, isso me pareceu frustrante, mas depois entendi: quando eles frequentavam as aulas de ética na escola primária, não deviam ter o meu gosto para contar até números realmente altos. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK* É ESCRITOR COM BASE EM XANGAI
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