ENVIADO ESPECIAL A MEDIA E NORRISTOWN, PENSILVÂNIA — A cidade de Media, nos subúrbios da Filadélfia, parece saída diretamente de uma comédia romântica de Hollywood. A rua principal tem diversas lojinhas, restaurantes e salões de beleza.
Aqui neste canto da Pensilvânia, na costa leste dos Estados Unidos, concessionárias de carro, escolas primárias com o característico ônibus amarelo e preto e, claro, as casas de subúrbio coloniais de dois ou três andares — com a decoração já pronta para o Dia das Bruxas —completam o cenário, junto com uma lanchonete típica de um filme de sessão da tarde.
Na cidade inteira, o começo de outono se faz presente, com as folhas amareladas das árvores tomando as calçadas. Garoa, mas o frio ainda não chegou por aqui.
“Costumamos dizer que Media se parece com a cidade natal de todo mundo aqui nos Estados Unidos”, conta a vereadora Monica Taylor, uma democrata da Câmara do Condado de Delaware, um dos quatro que compõem a região metropolitana da Filadélfia, e será decisivo para a disputa entre Kamala Harris e Donald Trump nas eleições de 5 de novembro.
A reportagem do Estadão passou um dia inteiro em Media e conversou com eleitores e políticos locais. Na eleição, esta região será fundamental para a vice-presidente, que pretende explorar a legalização do aborto para impulsionar o voto democrata e superar o ex-presidente republicano na Pensilvânia, um Estado que deve ser decisivo no colégio eleitoral.
A cidade mais comum da América
Há mais mulheres que homens nas ruas — a maioria mães e avós com seus filhos e netos. Os maridos, em sua maioria, têm empregos com bons salários na Filadélfia, a cerca de 30 minutos de carro de Media. Os comércios mais lotados no começo da manhã são os salões de beleza e um ou outro café. Conforme a hora do almoço vai chegando, o ‘diner’ local, atrai a maior parte da clientela. Ali, todos se conhecem pelo nome.
“Oi, Peggy, como você está hoje?”, pergunta a chefe das garçonetes, Pamela, a uma senhora de seus 90 anos que entra no restaurante ao lado da filha. Ela pede sua mesa usual, e o prato de sempre: sopa e macarrão.
“É uma comunidade muito unida e muito amigável”, diz Pamela. “Tentamos manter nossas diferenças políticas de lado aqui.”
Uma rápida caminhada pelas ruas de Media, no entanto, dá uma ideia de que Kamala Harris é favorita por essas bandas. Nem toda casa exibe sua preferência política com placas, no jardim. Mas entre as que o fazem, a vice-presidente supera Trump numa proporção de cinco para um.
Uma dessas placas pertence a Janet Willis, veterana da Guarda Nacional americana. Mãe e avó, ela votará em Kamala Harris. Seu vizinho da frente, é eleitor de Trump. Quando questionada sobre o que a motiva a votar, ela elenca uma série de motivos, mas o primeiro fator está na ponta da língua.
“Não quero que o meu direito, e o da minha filha, de escolher quando e como começar uma família seja ameaçado. Tenho medo de que Trump possa instituir um veto completo ao aborto se for eleito”, diz. “Além disso, não quero que esse país vire uma ditadura, e, com ele, tenho esse medo.”
Além de vereadora, Monica Taylor é codiretora do coletivo ‘Mulheres Negras por Kamala Harris’, no condado de Delaware. Segundo ela, a questão do aborto é a principal na hora de convencer os eleitores do partido e independentes a optar pela vice-presidente.
“Como vimos nos últimos anos, toda vez que temas de saúde são um tema da eleição os democratas vencem. Isso é verdade no país como um todo, mas também é verdade aqui na Pensilvânia e no condado de Delaware. Quando políticos querem legislar sobre uma questão de foro privado entre uma mulher e seu médico, mulheres, sejam jovens ou mais velhas, vão votar em massa”, disse ela ao Estadão.
Como surgiram os subúrbios
Os Estados Unidos têm uma formação demográfica peculiar por conta do surgimento dos subúrbios das grandes cidades após a 2ª Guerra. Motivados por subsídios do governo e pelo crescimento populacional e econômico americano, milhões de pessoas deixaram a vida nas grandes cidades para viver em localidades menores e mais tranquilas.
Essa divisão entre rural, urbano e suburbano ainda existe nos dias de hoje, e influencia o jogo eleitoral americano, que tem a seguinte lógica: As grandes cidades votam em massa pelos democratas e as pequenas, pelos republicanos. Os subúrbios costumam ser o fiel da balança em disputas geralmente decididas por dezenas de milhares de votos.
Juntos, os condados de Delaware, Montgomery, Bucks e Chester, que formam a área metropolitana da Filadélfia, têm uma população de 2,6 milhões de pessoas. No condado de Delaware, 70% da população é de brancos, 22% de negros e 4,9% de latinos. A renda familiar média é de US$ 61 mil, o equivalente a R$ 347 mil.
Três em cada dez lares do condado de Delaware têm filhos em idade escolar. Menores de idade perfazem um quarto da população. É por isso também que o alvo dos democratas aqui e nos outros condados da área metropolitana da Filadélfia são as ‘mães do subúrbio’, cujo comparecimento em massa nas urnas em 2020 ajudou Biden a levar o Estado e a presidência.
Democratas na ofensiva
A vereadora Jamila Winder é uma dessas mães. Com um filho de quatro anos, ela é a presidente do Comitê Democrata do Condado de Montgomery, vizinho ao condado de Delaware. Assim como Monica Taylor, ela acredita que a estratégia de Kamala na região será decisiva.
“Sabemos que as mulheres suburbanas serão chave para a vitória de Kamala Harris. As questões que importam para elas, sejam direitos reprodutivos, ou educação infantil, terão de ser atendidas por ela”, disse. “Acredito por falar com mulheres no condado que a questão do aborto é uma das principais nesse sentido.”
Monica Taylor vai na mesma direção. “Os condados do colar tiveram maior participação e maior votação democrata nas últimas eleições. Antes de 2019, a maioria dos governos municipais aqui eram republicanos e isso está mudando. As pessoas (que votam nos democratas) estão mais mobilizadas aqui, acrescentou.
O otimismo de Jamila e Monica é grande porque em todas as eleições americanas deste século, os democratas venceram na Pensilvânia, com exceção da vitória de Trump sobre Hillary Clinton em 2016.
A matemática eleitoral da Pensilvânia
Naquela ocasião, Trump venceu em Erie e Northampton, chamados de ‘condados roxos’ ou ‘condados-pêndulo’ por oscilar entre republicanos e democratas, e diminuiu a diferença para os democratas nos condados suburbanos da grande Filadélfia, chamados de ‘collar counties’, ou ‘condados do colar’.
Em 2020, ocorreu o contrário. Os democratas venceram em Erie e Northampton, e ampliaram a vantagem no subúrbio da Filadélfia.
Trocando em miúdos, para chegar a maioria no colégio eleitoral, os republicanos precisam perder de pouco no subúrbio e voltar a vencer em Erie e Northampton. Os democratas, por sua vez, precisam ganhar com folga no subúrbio e repetir a vitória de 2020 nesses chamados ‘condados-pêndulo’.
Para Matthew Levendusky, professor de ciência política da Universidade da Pensilvânia, a eleição será tão disputada no Estado, como as mulheres do subúrbio, que qualquer grupo demográfico pode fazer a diferença.
“Uma dimensão importante a ser observada na Pensilvânia e em outros lugares é como Harris e Trump se saem nos condados urbanos, suburbanos e rurais. Harris se sairá muito bem em cidades grandes, como a Filadélfia, e provavelmente dominará os subúrbios do interior, como o condado de Montgomery Mas como ela se sairá em condados mais mistos e, depois, nas áreas rurais?”, explica. “Trump vencerá nas áreas rurais, mas Harris precisa se certificar de que o piso de seu apoio não cairá se ela quiser vencer a eleição.”
Aborto em pauta nas urnas
Para ganhar com folga no subúrbio, é preciso que as pessoas queiram ir votar, já que o nos EUA o voto não é obrigatório. E nos subúrbios da Pensilvânia, a estratégia para a vitória passa por convencer as mulheres de que Trump é um risco para a legalização do aborto a nível estadual, já que a jurisprudência federal que garantia o aborto legal nos Estados Unidos caiu em 2022, com votos da maioria conservadora da Suprema Corte que o republicano ajudou a construir.
O ex-presidente conta com uma base de apoio religiosa e conservadora que rejeita o aborto como um direito, e, por ter nomeado três dos nove juízes da Suprema Corte, até recentemente ele se gabava de ter ‘matado’ a regra.
Mas desde que os democratas começaram a acusá-lo de querer transformar a proibição, que atualmente joga a decisão para os Estados, numa lei federal , ele tem amenizado sua posição.
A mobilização democrata nas eleições de meio de mandato de 2022 surtiu algum efeito em disputa cruciais pela Câmara, batendo nessa tecla de que os republicanos pretendem aprovar um veto federal ao aborto. Por isso, a estratégia de eleger o aborto como tema eleitoral indicou o caminho para a campanha deste ano.
Os democratas também colocaram os republicanos na defensiva, ressaltando que alguns deles defendem proibir o aborto mesmo em casos de incesto e estupro, ou quando a vida da mãe corre risco.
Republicanos apostam na economia
Do lado republicano, a aposta de apoiadores de Trump é que a economia vai falar mais alto nos subúrbios da Filadélfia que a questão do aborto. De fato, uma pesquisa do New York Times em parceria com o Sienna College feita em maio colocou a economia como a questão principal para eleitores da região metropolitana, com o aborto em segundo lugar. Naquela época, no entanto, Kamala ainda não era a candidata.
“As mulheres merecem um presidente que proteja as fronteiras de nossa nação, remova criminosos violentos de nossos bairros e construa uma economia que ajude nossas famílias a prosperar - e é exatamente isso que o presidente Trump fará”, disse em nota a secretária de imprensa nacional de Trump, Karoline Leavitt.
Batalha de anúncios
Na campanha de Trump na Pensilvânia, o foco é exatamente esse descrito pela porta-voz do ex-presidente: economia e imigração. Anúncios republicanos nas ruas da Filadélfia trazem slogans como “mais empregos para a Pensilvânia”. Na TV, os republicanos dizem que as políticas progressistas de Kamala são um perigo para o Estado. Sobre o aborto, a posição oficial é que é uma questão estadual e não federal.
Um estudo feito em parceria entre a start-up sueca Neo4j e a Universidade de Syracuse, no Estado de NY, obtido pelo Estadão, mostra, no entanto, que a campanha de Kamala Harris (e Joe Biden antes dela) está focando os anúncios no eleitorado feminino numa proporção de quase 2 para 1 em comparação aos homens (64% a 36%). Trump, por sua vez, tem uma estratégia mais dividida: 53% dos anúncios visam homens e 47%, mulheres. Enquanto o tema principal dos anúncios de Trump é a economia, os de Kamala são sobre saúde e legalização do aborto.
Além disso, a chapa democrata tem gastado dez vezes mais que o rival em anúncios on-line no Meta (Facebook+ Instagram). Foram US$ 50 milhões em propaganda nas redes sociais contra US$ 5 milhões de Trump. Na Pensilvânia, essa proporção é de 12 para 1. Os anúncios de Kamala obtiveram 1,5 bilhão de impressões, e os de Trump, 261 milhões.
“Olhando para os anúncios de Harris e Trump no Facebook e no Instagram descobrimos diferenças. Trump está mirando homens, em termos do dinheiro que ele gasta nas propagandas, numa taxa maior que ele está fazendo com mulheres. A estratégia de Harris é muito focada em mulheres, em todas as faixas etárias”, disse ao Estadão Jennifer Stromer-Galley, especialista em campanha política e desinformação da Universidade de Syracuse, em NY.
De qualquer forma, as eleitoras do subúrbio são um desafio para Trump. Em 2020, segundo uma projeção da Associated Press, feita com base em pesquisas no dia da eleição, Biden teve uma vantagem sobre o rival nesse grupo geodemográfico na Pensilvânia de 20 pontos porcentuais. Ou seja, de cada 10 mulheres nesses condados que margeiam a Filadélfia, seis votaram em Biden e quatro em Trump.
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