ENVIADA ESPECIAL A BUENOS AIRES - Cerca de 48 horas depois que o então candidato Javier Milei havia amargado um segundo lugar no primeiro turno das eleições argentinas, ficando 6 pontos atrás de Sergio Massa, um amigo do ex-presidente Mauricio Macri ligou para o consultor político argentino radicado no Brasil Pablo Nobel pedindo por ajuda. Um mês depois, a campanha do libertário comemorava o resultado histórico no segundo turno que tornou Javier Milei o novo presidente da Argentina.
Para a estratégia vitoriosa, foi preciso pedir para Milei guardar a motosserra, falar menos alto e pensar um pouco menos na própria militância. Em outras palavras, moderar. Mas o mote final foi inspirado na campanha de Luiz Inácio Lula da Silva de 2002 na eleição contra José Serra: esperança vence o medo. Um mote de Lula para responder a outro mote de Lula, já que do outro lado, na equipe de Sergio Massa, a estratégia de marqueteiros brasileiros ligados ao PT era provocar o medo que um governo Milei poderia representar. Mesmo mote que guiou Lula em 2022 na eleição contra Jair Bolsonaro.
“Você não disputa a narrativa e o relato do medo com mais medo”, contou Nobel em uma entrevista ao Estadão. “É muito difícil você se impor discutindo quem é pior. Na nossa experiência, o antídoto para o medo é a esperança. Você se lembra de Lula 2002. Então nós resgatamos isso e trouxemos a narrativa da esperança. ‘A esperança vai vencer o medo’. Isso foi muito forte no digital e acabou de uma maneira mudando um pouco a envergadura e deixando ele mais presidenciável.”
Milei moderado
A equipe de Nobel colaborou com o marketing das propagandas televisivas. As redes sociais, conta, ficaram com outra equipe de jovens que já acompanhavam Milei desde antes. Justamente por ter chegado já no fim da corrida, o consultor rejeita o rótulo de “marqueteiro de Milei”, porque já havia uma equipe comandada por dois conhecidos Santiagos: Oría e Caputo, este último considerado o grande arquiteto da estratégia vitoriosa e a quem Milei agradeceu no discurso de vitória.
Todo este trabalho foi feito sem nunca ter visto Milei, conta. A irmã, Karina Milei, Nobel conheceu só no dia da vitória. A verdade é que o círculo íntimo do agora presidente é bastante fechado. Mais de uma pessoa que o conhece diretamente diz que o libertário confia em poucas pessoas: a irmã, Guillermo Francos e Caputo seriam estes poucos, com mais alguns nomes como Ramiro Marra e Santiago Oría conseguindo avançar um pouco neste círculo mais íntimo. Sendo assim, todo o contato dos consultores com Milei era intermediado por Caputo.
O desafio era fazer com que uma figura tão formada na televisão - Milei se fez conhecido ao fazer comentário econômicos fortes nos programas televisivos argentinos - se tornasse “palatável” para o eleitor indeciso, inseguro e, principalmente, o gigantesco eleitorado que havia ficado órfão de Patricia Bullrich, a candidata derrotada do Juntos pela Mudança no primeiro turno.
“O que trouxemos do ponto de vista brasileiro foi a moderação. Tinha uma audiência que já havia decidido votar em Milei, outra que ia votar em Massa. E tinha uma franja de 20% talvez 30% de brancos, indecisos, que não sabiam o que fazer. Essa moderação era necessária para utilizar, da melhor forma possível, o apoio da Patricia e do Mauricio Macri. Isso funcionou”, comemora.
Mais sobre Javier Milei
A intermediação de Caputo foi fundamental para manter esta moderação do candidato, o que Nobel reconhece que foi uma tarefa difícil. “Ele é assim, gosta de ser assim, quer ser assim, e o que está por trás é, ser assim me trouxe até aqui, então não me digam o que fazer”.
Da ‘casta’ para a presidência
Nobel e sua equipe desembarcaram em Ezeiza poucos dias depois do convite de Macri com uma pasta de estudos debaixo do braço. Com o tempo curtíssimo para vencer uma campanha adversária que contava com uma gigantesca máquina de militância como a peronista, além da própria máquina Estatal, Nobel sabia que a missão era gigante. “Mas é disso que eu gosto né? Falei ‘vamos’!”.
O consultor contava com uma vantagem: conhece muito bem o peronismo, já que trabalhou nas campanhas de Eduardo Duhalde, Daniel Scioli (que perdeu para Macri) e na vitória de Alberto Fernández e Cristina Kirchner (novamente contra Macri). “Entramos nós com campanha do medo contra o Macri [na campanha contra Scioli]. Ele sempre me lembra disso. Odeia essa história”, conta rindo. Ainda assim, foi Macri que o apresentou para a equipe de Milei.
No Brasil, Nobel também conhece bem as campanhas petistas, psdebistas e agora bolsonaristas. Trabalhou com Marta Suplicy (então do PT), Lula, Geraldo Alckmin, Aécio Neves e ajudou Tarcísio de Freitas e se tornar o governador de São Paulo.
Ou seja, experiência, não falta. Mas o tempo era curto, e a campanha de Milei trazia novidades: uma equipe formada quase inteiramente de jovens que nunca haviam atuado na política, mas que sabiam atuar nas redes sociais. Com esta equipe original, a estratégia sempre foi da “autenticidade”. E foi isso que deu a Milei 30% de eleitorado praticamente fiel. Mas para o segundo turno é necessário mais. De preferência, 50%.
A campanha de Milei contou com três momentos-chave, os três momentos de eleição: nas primárias, de agosto, a questão da “bronca” e da “casta” lhe garantiu um eleitorado que também estava com raiva dos políticos e viu uma empatia em Milei. Mas na hora da eleição geral, em que se definem de fato cargos, o eleitor tende a ser mais racional, e a “bronca” não é mais suficiente.
“Esse eleitor, na hora de votar nas gerais, passa a olhar pra outro lugar. Pensa: ‘ele tem raiva como eu, mas será que vai ser um bom presidente?’. Aí entra outra estratégia e outra conversa. E é aí que ele não se sai tão bem. Esse é o momento que a estratégia do medo, dos nossos queridos colegas brasileiros funciona, as pessoas começam a pensar ‘meu deus, isso pode ser uma loucura’ e votam em Milei com menos força e ele termina as gerais com números praticamente iguais ao que ele vai para as PASO”.
Estudando com calma este cenário, Nobel entendeu que no segundo turno a discussão precisava sair de Milei e focar em Massa. “O segundo turno é um plebiscito”, afirma, e neste plebiscito tende-se a mostrar que o outro é pior. “Nesse momento, tiramos a lupa do Milei e jogamos no Massa. O eleitor passa a olhar se a vida dele melhorou ou não [com Massa como ministro da Economia]. Quando a lupa sai do Milei e vai pro Massa, o voto volta pro Milei, e é catapultado para esse número extraordinário e essa diferença notável. Porque o Massa perde do Massa, independente do adversário.”
O problema era que o adversário estava fazendo o mesmo. A estratégia da campanha de Sergio Massa era utilizar Milei contra ele mesmo, segundo afirmaram membros da campanha ao Estadão. Falas recentes, porém polarizantes de Milei, e até falas antigas, foram destacadas pela equipe do peronista. “Não é campanha de medo, é apenas mostrar o que Milei está dizendo”, afirmaram. O “Milei não” chegou aos terminais de trem, universidades e bancos públicos da Argentina.
Ao observar que os colegas adversários traziam questões como venda de órgãos, liberação das armas, democracia e até relações comerciais com o Brasil, a equipe de Milei evitou entrar em modo defensivo e rebateu expondo a inflação de 140%, o aumento da pobreza e a queda na qualidade de vida. Porém, o último foco havia de ser a democracia, evitando cair na dicotomia “democracia versus anti-democracia” que houve nas eleições brasileiras.
“Falamos para ele: ‘motosserra? Para com isso’, ‘fala mais suave, um tom de voz diferente, com o mesmo texto’, ‘menos palco e menos rock and roll’. Esse público já era conquistado. Falei: ‘vamos aproveitar a entrada da Patricia e conversar com as mulheres, com outra audiência’. E os meninos [da equipe] foram super abertos”.
Outro desafio foi não deixar a imagem do libertário colar tão profundamente na imagem de Bolsonaro. Durante o primeiro turno, Eduardo Bolsonaro marcou presença no bunker de Milei e protagonizou uma cena constrangedora na televisão, quando foi cortado ao vivo ao defender a posse de armas. De acordo com o marqueteiro, o tema não soou bem em uma sociedade que é historicamente contra armamento. E a campanha de Sergio Massa soube aproveitar a discussão.
“Há um momento em que o Eduardo vem para cá, e dentro da lógica conservadora, tenta trazer o armamento e legalização das armas. Mas dentro da sociedade argentina, os dois lados são contra arma. Não dá pra imaginar que o conservadorismo bolsonarista tem tudo a ver com Milei”, opina.
“O Bolsonaro tende ao Estado, o Javier Milei é 100% pró-mercado, o Bolsonaro tem questões de pauta moral sobre homossexualidade, casamento gay, aborto. O Milei é pela legalização de tudo. Ele acha que o mercado tem que se regulamentar e o Estado é o mínimo possível. Você percebe que não são a mesma coisa, parece que estão no mesmo espectro, mas quando você coloca uma lupa de cima, as diferenças são notáveis dentro desse conjunto mais conservador.”
O papel de Macri
A ajuda de Mauricio Macri não ficou restrita ao telefonema para Nobel. O ex-presidente e líder da coalizão Juntos pela Mudança declarou apoio a Milei nas primeiras horas após o primeiro turno. Com ele, trouxe um eleitorado que o confia e também todo o aparato de seu partido Proposta Republicana (PRO) para militar e fiscalizar pelo A Liberdade Avança, o partido recém-nascido de Milei.
“O apoio de Maurício Macri traz uma institucionalidade para o Javier Milei, para esse voto inseguro que está sobre a pressão do voto do medo. O Maurício diz: ‘você pode gostar ou não de mim, mas eu garanto que isso aqui não é uma loucura, isso aqui faz parte da Democracia, estamos dentro do espectro democrático’. Então para mim esse também é um viés que acaba explicando esse número violento, essa diferença que normalmente não aconteça em segundos turnos.”
O momento em que a virada de marés ficou explícito, afirma o publicitário, foi depois do último debate. Nas horas seguintes aos embates - em que Milei precisou segurar para não mostrar o lado “el loco” - a impressão que tinha era de que Massa havia saído o grande vencedor, por sua postura “presidenciável”. Mas em uma sociedade que está cansada dos políticos, ser político demais custa, e Nobel viu isso quando as pesquisas internas dos dias seguintes deixaram claro que Milei estava crescendo.
Esse fenômeno, ele reflete, vai impactar campanhas eleitorais mundo a fora. “O debate mostra o que há de mais político no extremo do pêndulo. E Milei se mostra o menos político no outro extremo. O resto é história. E isso é algo que vamos ter que estudar, entender, nas próximas campanhas, no Brasil e no mundo. O contraponto é o profissional, pessoas ‘coacheadas’, versus autenticidade. Essa é a linha que a comunicação política vai ter que encarar no Brasil ano que vem e mundo a fora daqui para frente”.
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