BEIRUTE ― Sali Hafiz vestiu uma camiseta e uma calça preta e um par de tênis verde limão. Com uma máscara sob o rosto, ela invadiu um banco na capital do Líbano, Beirute, apontou uma arma para o alto e exigiu seu dinheiro - literalmente, seu próprio dinheiro.
Um tipo de crime inusitado está se tornando mais frequente em bancos libaneses nos últimos meses. Impedidos de sacar quantias em dólar por regras de retenção de moeda estrangeira impostas pelas instituições bancárias, que limitaram a retirada mensal a US$ 400 (R$ 2.092) para conter a crise econômica que derreteu o valor da moeda local, cidadãos comuns têm invadindo agências bancárias, feito reféns e exigido a retirada do próprio dinheiro.
O caso de Sali ganhou projeção nacional em setembro e a transformou em uma espécie de heroína para o país não apenas por canalizar o descontentamento da maioria da população, mas também pelo motivo. Quando foi detida pela polícia, depois de receber US$ 12 mil (R$ 62,7 mil) e uma quantia em moeda local, ela disse que precisava do dinheiro para pagar o tratamento de câncer da irmã.
“Minha irmã está morrendo diante dos meus olhos”, disse ela em entrevista a um canal local, supostamente gravada logo após o assalto. “O banco nos roubou publicamente (...). Eu não posso machucar uma formiga, mas essa pessoa que não pode machucar uma formiga está vendo uma parte dela derreter na frente dela, e a maioria das pessoas diz: ‘Que Deus a cure. Eu não poderia ficar de braços cruzados quando há um banco ao lado da minha casa no qual temos US$ 20 mil [depositados]”, acrescentou.
Mas Sali não foi a primeira. Um mês antes, em agosto, Bassam al-Sheikh Hussein entrou no Banco Federal do Líbano, no bairro de Hamra, na capital, com uma lata de gasolina, ameaçando se incendiar caso não conseguisse acessar o dinheiro em sua conta, um valor de cerca de US$ 210 mil (R$ 1,09 milhão). Mais tarde, ele ameaçou a todos com um rifle, levando a horas de tensas negociações de reféns.
Com o passar das horas, uma multidão se reuniu do lado de fora do banco para apoiá-lo. “Dê-lhe o dinheiro, dê-lhe o dinheiro”, gritaram em uníssono, pressionando uma linha de soldados.
Hussein também alegou, na época, que precisava retirar o dinheiro da conta para pagar por despesas médicas do pai, e recusou propostas para sair da a agência com valores entre US$ 5 mil e US$ 30 mil (R$ 26 mil e R$ 157 mil) feitas pelo banco enquanto mantinha oito reféns na agência. Ele finalmente se rendeu após sete horas de negociações ― e ao banco entregar US$ 35 mil (R$ 183 mil) em espécie a seu irmão, do lado de fora da agência.
Ele foi aplaudido ao se entregar às autoridades.
À medida que o Líbano afunda cada vez mais no mal-estar econômico, as pessoas estão recorrendo a medidas desesperadas. O Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas estima que 46% das famílias não têm o suficiente para comer. O Banco Mundial disse que a crise econômica e financeira pode estar entre as três crises globais mais graves desde meados do século XIX.
A falha da rede elétrica está pior do que nunca, com quase todos no país dependendo mais do que nunca de geradores, que funcionam com gás caro, expelem fumaça tóxica no ar e enchem a capital superlotada com um barulho constante. Muitos no Líbano simplesmente optaram por viver sem eletricidade, aprendendo lentamente a se adaptar à vida com apenas algumas horas de energia por dia.
Os salários não subiram e o desemprego é galopante. Em meio à desvalorização constante da libra e à inflação de três dígitos, muitas famílias não conseguem comprar mantimentos básicos ou mesmo manter a água ligada.
Dina Abou Zour, advogada do Sindicato dos Depositantes, previu que as pessoas continuariam recorrendo a medidas desesperadas se os bancos e os políticos não atendessem às suas demandas, logo após a prisão de Hussein ― que já está em liberdade enquanto responde a processo. “Estamos realmente presos. Nós somos os reféns, não os funcionários [do banco], ou como está sendo retratado, os bancos”, disse ela. “Nós somos as vítimas; nós não somos os criminosos.”/ WPOST
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