A fonte do novo coronavírus que já levou à morte mais de 3 milhões de pessoas em todo o mundo permanece um mistério. Mas, nos últimos meses, a ideia de que o vírus surgiu do Instituto de Virologia de Wuhan (WIV, na sigla em inglês) - antes descartada como uma teoria da conspiração infundada - tem ganhado novo crédito.
Como e por que isso aconteceu? Primeiro, os esforços para descobrir uma fonte natural do vírus não tiveram sucesso. Depois, as primeiras tentativas em apontar um vazamento de laboratório frequentemente se misturaram com especulações de que o vírus foi deliberadamente criado como uma arma biológica. Isso tornou mais fácil para muitos cientistas rejeitar a teoria do vazamento e achá-la um disparate. Mas a falta de transparência por parte da China e a atenção renovada às atividades do laboratório de Wuhan levaram alguns cientistas a dizer que foram rápidos demais em desconsiderar uma possível conexão no início.
O senador republicano pelo Arkansas Tom Cotton, desde o início chamou atenção para a localização do laboratório em Wuhan, pressionando a China por respostas, de uma maneira que os livros de história o recompensarão se ele estiver certo. O governo Trump também procurou destacar a hipótese do laboratório, mas geralmente só conseguia se referir a informações vagas. As mensagens do governo Trump costumavam ser acompanhadas por uma retórica antichinesa, o que tornava mais fácil para os céticos ignorar suas afirmações.
A seguir, apresentamos uma linha do tempo dos principais eventos, incluindo artigos relevantes, que levaram a essa reavaliação. Em alguns casos, informações importantes estavam disponíveis desde o início, mas geralmente foram ignoradas. Mas em outros casos, alguns especialistas lutaram contra o senso comum e começaram a construir um caso confiável, com base na ciência, que começou a mudar a opinião das pessoas. Isso levou a novas solicitações de uma investigação real das atividades do laboratório antes do surgimento do novo coronavírus.
Especulação inicial
30 de dezembro de 2019: A Comissão Municipal de Saúde de Wuhan emite um "aviso urgente" para instituições médicas em Wuhan, dizendo que casos de pneumonia de causa desconhecida tinham surgido em pessoas que frequentaram o Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan da cidade.
5 de janeiro de 2020: O primeiro tuíte que se tem conhecimento de sugerir que a China criou o vírus é publicado. @GarboHK tuitou: "18 anos atrás, #China matou quase 300 #HongKongers ao não relatar casos de #SARS, permitindo que turistas chineses viajassem por todo o mundo, mais especificamente pela Ásia para espalhar o vírus com más intenções.
23 de janeiro: Uma matéria do Daily Mail aparece com a manchete: " China construiu um laboratório para estudar SARS e Ebola em Wuhan - e especialistas em biossegurança dos Estados Unidos alertaram em 2017 que um vírus poderia 'escapar' da instalação que se tornou a principal no combate ao surto."
26 de janeiro: O Washington Times publica uma matéria com a manchete: "Novo coronavírus pode ter se originado em laboratório ligado ao programa de guerra biológica da China." Uma nota do editor foi adicionada em 25 de março: "Desde que este texto foi publicado, cientistas de fora da China tiveram a chance de estudar o vírus SARS-CoV-2. Eles concluíram que o vírus não mostra sinais de ter sido fabricado ou propositalmente manipulado em um laboratório. "
26 de janeiro: Um estudo de pesquisadores chineses publicado na revista acadêmica The Lancet sobre os primeiros 41 pacientes hospitalizados em Wuhan, que haviam tido infecções confirmadas, descobriu que 13 dos 41 casos, incluindo o primeiro caso documentado, não tinham ligação com o mercado originalmente considerado a origem do surto.
30 de janeiro: O senador Tom Cotton, falando em uma audiência do Comitê de Serviços Armados do Senado, diz: "Esse novo coronavírus é uma catástrofe com a dimensão de Chernobyl para a China. Mas, na verdade, ele é provavelmente pior do que Chernobyl, cujos efeitos eram locais. O novo coronavírus pode resultar em uma pandemia global”. E continuou: “Eu saliento que Wuhan tem o único superlaboratório de nível quatro de biossegurança da China que trabalha com os patógenos mais mortais do mundo, incluindo, sim, o novo coronavírus. "
3 de fevereiro: Pesquisadores do WIV relatam na revista Nature que o novo coronavírus disseminado pelo mundo era um coronavírus derivado de morcego. O relatório dizia que o SARS-CoV-2 é 96,2% idêntico no nível do genoma inteiro a um coronavírus de morcego chamado RaTG13. (Isso é aproximadamente equivalente à diferença nos genomas de humanos e orangotangos.)
6 de fevereiro: Botao Xiao, pesquisador de biomecânica molecular da Universidade de Tecnologia do Sul da China, publica um artigo afirmando que "o coronavírus assassino provavelmente se originou de um laboratório em Wuhan".Ele apontou incidentes de segurança anteriores e o tipo de pesquisa realizada no laboratório. Ele removeu o artigo da publicação algumas semanas mais tarde, depois de as autoridades chinesas insistirem que nenhum acidente havia ocorrido.
9 de fevereiro: Em resposta às críticas do embaixador da China de que os comentários de Cotton são "absolutamente loucos", o senador tuitou: "Aqui está o que não é uma conspiração, não é uma teoria: Fato: a China mentiu a respeito do vírus ter começado no mercado de alimentos de Wuhan. Fato: o superlaboratório fica a apenas alguns quilômetros daquele mercado. Onde isso começou? Nós não sabemos. Mas o ônus da prova recai sobre você e seus companheiros comunistas. Revele informações para cientistas internacionais competentes. "
16 de fevereiro: Cotton, em resposta a um artigo no Washington Post que o criticava, publica no Twitter quatro possíveis cenários para a origem do vírus: "1. Natural (ainda o mais provável, mas quase certamente não a partir do mercado de alimentos de Wuhan) 2. Boa ciência, segurança ruim (por exemplo, eles estavam pesquisando coisas como exames de diagnóstico e vacinas, mas ocorreu uma falha acidental). 3. Má ciência, má segurança (esta é a hipótese da arma biológica projetada, com uma falha acidental). 4. Liberação deliberada (muito improvável, mas não deve ser descartada até que as evidências sejam apresentadas). Novamente, nenhum deles é 'teoria' e certamente não são 'teorias da conspiração'. São hipóteses que devem ser estudadas à luz das evidências ”.
Os cientistas reagem
19 de fevereiro: Uma declaração é publicada na Lancet por um grupo de 27 cientistas: "Todos nós condenamos veementemente as teorias da conspiração que sugerem que a covid-19 não tem uma origem natural", diz o comunicado. Os cientistas "concluem de forma categórica que esse novo coronavírus se originou na vida selvagem". A declaração foi redigida e organizada por Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, que financiou pesquisas no WIV com subsídios do governo dos EUA. (Três dos signatários disseram desde então que um acidente de laboratório é plausível o suficiente para merecer consideração.)
11 de março: A revista Scientific American publica o perfil da virologista Shi Zhengli, que lidera um grupo que estuda coronavírus em morcegos no WIV. "Eu nunca esperei que esse tipo de coisa acontecesse em Wuhan, no centro da China", disse ela. Se os coronavírus fossem o culpado, ela se lembra de ter pensado: "Eles poderiam ter vindo do nosso laboratório?"O perfil dizia que depois que o vírus surgiu, Shi examinou freneticamente os registros de seu próprio laboratório nos últimos anos para verificar se havia algum manuseio incorreto de materiais experimentais, mas ela "deu um suspiro de alívio quando os resultados chegaram: nenhuma das sequências correspondia as dos vírus que sua equipe havia coletado em cavernas de morcegos. "Ela disse à revista: "Isso realmente tirou um peso da minha mente. Passei dias sem conseguir dormir."
17 de março: Uma análise publicada na revista Nature por um influente grupo de cientistas afirma: "Embora as evidências mostrem que o SARSCoV-2 não é um vírus propositadamente manipulado, atualmente é impossível provar ou refutar as outras teorias de sua origem descritas aqui. No entanto, uma vez que observamos todas as características importantes do SARS-CoV-2, incluindo o local otimizado do domínio de ligação ao receptor (RBD, na sigla em inglês) e de clivagem polibásica, em coronavírus relacionados na natureza, não acreditamos que qualquer tipo de cenário laboratorial seja plausível. "
A comunidade de inteligência se pronuncia
27 de março: Uma avaliação da Agência de Inteligência de Defesa sobre a origem do coronavírus é atualizada para incluir a possibilidade de que o novo coronavírus tenha surgido “acidentalmente” devido a “práticas laboratoriais não seguras”.
2 de abril: David Ignatius, escrevendo no Washington Post, observa: “A principal suspeita é a transmissão ‘natural’ de morcegos para humanos, talvez no ambiente de mercados não higiênicos. Mas os cientistas não descartam que um acidente em um laboratório de pesquisa de Wuhan possa ter espalhado um vírus mortal de morcego que fora coletado para estudo científico”.
14 de abril: Josh Rogin, escrevendo no Post, revela que em 2018, funcionários do Departamento de Estado visitaram o WIV e “enviaram dois avisos oficiais a Washington sobre a segurança inadequada no laboratório, que estava conduzindo estudos arriscados sobre coronavírus de morcegos. Dentro do governo dos Estados Unidos, as mensagens alimentaram discussões sobre se este ou outro laboratório de Wuhan era a fonte do vírus – embora ainda não tenham surgido provas conclusivas”.
22 de abril: O empreendedor de biotecnologia Yuri Deigin, em uma longa e detalhada postagem no Medium, analisa a pesquisa de “ganho de função” realizada no laboratório e conclui que “do ponto de vista técnico, um virologista moderno não teria dificuldade para criar uma cepa” como o novo coronavírus. Ele acrescenta: “Vale a pena repetir o argumento oposto: a hipótese inversa sobre a origem exclusivamente natural do vírus também não tem evidências fortes ainda”.
24 de abril: Sob pressão da Casa Branca, os Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) encerram a concessão da EcoHealth Alliance que financiava o estudo de coronavírus em morcegos na WIV.
30 de abril: O presidente Donald Trump diz a repórteres: “Vocês têm a teoria do laboratório (...). Existem muitas teorias. Mas, sim, temos gente olhando para ela com muita, muita força”.
3 de maio: O secretário de Estado Mike Pompeo diz em entrevista à ABC News: “Existem enormes evidências de que foi aí que tudo começou (...). Lembrem-se de que a China tem um histórico de infectar o mundo, eles têm um histórico de funcionamento de laboratórios abaixo do padrão. Não é a primeira vez que expomos o mundo a um vírus como resultado de falhas de um laboratório chinês”.
Surgem novas evidências
4 de julho: O Times of London relata que um vírus 96% idêntico ao coronavírus que causa a covid-19 foi encontrado em 2012 em uma mina de cobre abandonada na China. A mina de cobre infestada por morcegos no sudoeste da China era o lar de um coronavírus que deixou seis homens com pneumonia, três deles mortos, depois de eles terem recebido a tarefa de retirar guano de morcego da mina. Este vírus foi coletado em 2013 e, em seguida, armazenado e estudado no WIV.
31 de julho: a revista Science publica uma entrevista com Shi Zhengli, do WIV. Ela disse que era impossível alguém no instituto ter sido infectado, afirmando: “até o momento, há ‘infecção zero’ em todos os funcionários e alunos de nosso instituto”. E acrescentou: “A afirmação do presidente Trump de que o SARS-CoV-2 vazou de nosso instituto contradiz totalmente os fatos. Isso prejudica e afeta nosso trabalho acadêmico e nossa vida pessoal. Ele nos deve um pedido de desculpas”. Na entrevista, ela admitiu que algumas pesquisas de coronavírus foram conduzidas no nível de biossegurança 2, não no mais restritivo, o BSL-4.
17 de novembro: É publicado um influente artigo escrito por Rossana Segreto e Yuri Deigin: “A estrutura genética do SARS-CoV-2 não descarta a origem laboratorial”. O artigo observou que “ainda não foi identificado um hospedeiro natural, direto ou intermediário”. Ele argumenta que certas características do coronavírus “podem ter resultado de técnicas de manipulação de laboratório, como a mutagênese sítio-dirigida. É menos provável que seja natural ou causada apenas por passagem célula/animal a aquisição mais ou menos simultânea de ambas as características únicas pelo SARS-CoV-2”. E o artigo concluiu: “Com base em nossa análise, uma origem artificial do SARS-CoV-2 não seria uma teoria da conspiração que deveria ser condenada”, referindo-se à declaração da Lancet em fevereiro.
17 de novembro: Pesquisadores do WIV, entre eles Shi, publicam um adendo ao relatório da Nature de 3 de fevereiro, reconhecendo que o RaTG13, o coronavírus de morcego intimamente associado ao coronavírus, foi encontrado em uma mina depois que vários pacientes adoeceram com “grave doença respiratória” em 2012 durante a limpeza da caverna.
4 de janeiro de 2021: a revista New York publica um longo artigo de Nicholson Baker, que analisa as evidências e conclui que o cenário de vazamento em laboratório é mais instigante do que se acreditava.
15 de janeiro: Dias antes de Trump deixar o cargo, o Departamento de Estado publica um “informativo” sobre o WIV que afirma: “O governo dos Estados Unidos tem motivos para acreditar que vários pesquisadores dentro do WIV ficaram doentes no outono de 2019, antes do primeiro caso identificado do surto, com sintomas consistentes com covid-19 e doenças sazonais comuns (...). O WIV tem um registro publicado sobre realização de pesquisas de ‘ganho de função’ para desenvolver vírus quiméricos. Mas o WIV não foi transparente ou consistente sobre seu registro de estudo de vírus mais semelhantes com o vírus da covid-19, incluindo o RaTG13, cuja amostra foi retirada de uma caverna na província de Yunnan em 2013, depois que vários mineiros morreram de doenças semelhantes à SARS”.
20 de janeiro: Joe Biden assume a presidência.
9 de fevereiro: Um relatório conjunto da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da China declara: “As descobertas sugerem que é extremamente improvável que a hipótese do incidente laboratorial explique a introdução do vírus na população humana”.
11 de fevereiro: O secretário-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, recusa-se a descartar o cenário de vazamento em laboratório. “Foram levantadas algumas questões sobre o descarte de algumas hipóteses”, disse ele. “Quero esclarecer que todas as hipóteses permanecem abertas e requerem estudos mais aprofundados”.
19 de fevereiro: O conselheiro de segurança nacional Jake Sullivan emite uma declaração sobre o relatório da OMS: “Temos profundas preocupações quanto à forma como as primeiras descobertas da investigação sobre a covid-19 foram comunicadas e questionamentos sobre o processo por meio do qual se chegou até elas. É imperativo que esse relatório seja independente, com conclusões de especialistas livres de intervenção ou alteração por parte do governo chinês. Para entender melhor esta pandemia e se preparar para a próxima, a China deve disponibilizar seus dados desde os primeiros dias do surto”.
22 de março: O jornal australiano relata: “Pesquisadores do Instituto de Virologia de Wuhan (WIV) que trabalhavam com coronavírus foram hospitalizados com sintomas consistentes com covid-19 no início de novembro de 2019. Autoridades americanas suspeitam que este possa ter sido o primeiro foco”.
5 de maio: Escrevendo no Bulletin of the Atomic Scientists, Nicholas Wade, ex-repórter científico do New York Times, analisa as evidências e defende a teoria do vazamento em laboratório. Ele se concentra sobretudo no local de clivagem da furina, que aumenta a infectividade viral para células humanas. Sua análise produz esta citação de David Baltimore, virologista e ex-presidente do Instituto de Tecnologia da Califórnia: “Da primeira vez em que vi o local de clivagem da furina na sequência viral, com seus códons de arginina, disse à minha esposa que era a fumaça no cano do revólver da origem do vírus. Essas características representam um grande desafio à ideia de origem natural para o SARS2”.
14 de maio: Dezoito cientistas proeminentes publicam uma carta na revista Science, dizendo que é necessária uma nova investigação porque “as teorias de vazamento acidental de laboratório e de transbordamento zoonótico permanecem viáveis”. Um dos signatários é Ralph Baric, virologista que trabalhava em estreita colaboração com Shi.
17 de maio: Outro ex-repórter científico do New York Times, Donald G. McNeil Jr., publica no Medium o texto “Como aprendi a parar de me preocupar e amar a teoria do vazamento de laboratório”. Ele cita W. Ian Lipkin, da Universidade de Columbia – que assinou a carta de março de 2020 na Nature Medicine – dizendo que mudou de ideia à luz das novas informações./ Tradução de Romina Cácia e Renato Prelorentzou
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.