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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião | Acusações contra Silvio Almeida lembram choques da política identitária nos Estados Unidos

Contradições inerentes e politização de identidades permitiram que Donald Trump chegasse à Casa Branca

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Foto do author Lourival Sant'Anna

As denúncias de assédio sexual e consequente demissão do ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, causam um curto-circuito nas políticas identitárias. O episódio lembra o do ministro da Suprema Corte americana Clarence Thomas, que colocou em choque identidades de raça, gênero e ideologia.

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Negro e ao mesmo tempo conservador, Thomas foi escolhido em 1991 pelo então presidente George Bush (pai) para embaralhar os alinhamentos identitários. Durante a sabatina no Senado, Anita Hill, ex-colega de Thomas, e também negra, acusou-o de assédio sexual.

O caso dividiu os americanos, não apenas entre si, mas dentro de suas próprias consciências, obrigando-os a medir o peso que cada aspecto identitário tinha em sua escala de prioridades políticas e morais: raça, gênero e ideologia.

Juiz Clarence Thomas, da Suprema Corte dos EUA, também foi acusado de violência sexual, provocando choque entre identidades nos EUA.  Foto: Mariam Zuhaib/Associated Press

Mulheres negras tiveram de escolher o que era mais importante para elas: a proteção das mulheres contra o assédio, de um lado, e a solidariedade com as pessoas negras, de outro, passando ainda pelas decisões que afetam suas vidas, tomadas pelos juízes.

Mulheres conservadoras brancas apoiaram Thomas, por sua inclinação política e por oposição ao feminismo, observa Stuart Hall em seu livro “Questions of Cultural Identity”, de 1992 (traduzido no Brasil como “A Identidade Cultural na Pós-Modernidade”). Havia até mesmo um componente social: Thomas era membro da elite judiciária e Hill, na época uma funcionária subalterna.

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“As identidades são contraditórias”, escreveu Hall. “Elas se cruzam e se deslocam mutuamente. Nenhuma identidade singular pode alinhar todas as diferentes identidades em uma identidade mestra, única, abrangente, na qual se possa basear de forma segura uma política.”

A nova aliança entre Elon Musk e Donald Trump, que pretende indicar o empresário para chefiar um conselho econômico, é outro exemplo disso. Musk é dono da Tesla, que fabrica veículos elétricos. Joe Biden investiu em energias limpas, enquanto o slogan de Trump é “perfurar, Baby, perfurar” poços de petróleo.

A pauta conservadora de Trump e sobretudo de seu vice, J.D. Vance, no entanto, reforça a cruzada de Musk contra a cultura woke, que ele responsabiliza pelo fato de sua filha ter feito transição de gênero e rompido com o pai a ponto de retirar seu sobrenome.

O nome de Thomas foi aprovado pelo Senado, e suas fraquezas morais continuariam causando problemas. Aos 75 anos, ele acaba de ser flagrado omitindo em sua declaração anual de receitas extras e presentes, obrigatória para os juízes da Suprema Corte, duas viagens que realizou em 2019, custeadas pelo bilionário texano Harlan Crow.

Outro conservador, Brett Kavanaugh, indicado por Donald Trump em 2018 para a Corte Suprema, foi acusado durante sua sabatina de ter estuprado uma colega no ensino médio — e também foi aprovado pelo Senado. Só a política identitária é capaz de acomodar contradições tão sérias.

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A politização das identidades foi elevada à condição de estratégia por Newt Gingrich, líder republicano na Câmara dos Deputados nos anos 90. Com a queda do Muro de Berlim, a esquerda americana e europeia assimilou bandeiras econômicas da direita, como a responsabilidade fiscal, enquanto mantinha o liberalismo nos costumes.

Essa nova configuração ajudou Bill Clinton a se eleger em 1992, negando o segundo mandato a Bush. Gingrich concluiu que os republicanos não tinham chances eleitorais diante de um Partido Democrata que representava os anseios da maioria dos americanos na economia e nos costumes. Com a ajuda de emissoras de rádio do Meio Oeste americano, os republicanos passaram a exacerbar os conflitos morais e a tratar os adversários políticos como imorais e traidores da pátria.

Na cobertura da eleição de 2012, entrevistei um jovem operário negro que acabara de conseguir emprego na indústria automobilística em Detroit, graças às políticas adotadas por Barack Obama para resgatar as montadoras da crise financeira que ele herdara de George W. Bush (filho).

"Trump escolhido por Deus", diz cartaz de apoiadora na Pensilvânia.  Foto: Chip Somodevilla/Getty Images via AFP

Apesar da identidade racial e do alívio econômico, ele estava em dúvida sobre reeleger Obama, por causa de suas convicções religiosas, contrárias ao aborto, por exemplo. Como a religião é colocada em primeiro lugar por muitos, essa politização da moral deu nova vida aos republicanos e permitiu a eleição de Donald Trump em 2016.

Convicções raciais e ideológicas podem levar à complacência diante de abusos morais e sexuais. Inversamente, pessoas que não costumam priorizar a proteção das mulheres contra esses abusos podem usar essas acusações para atacar alguém de quem não gostam por razões ideológicas ou raciais. É um mundo de espelhos e hipocrisia.

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Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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