O Hezbollah está sofrendo a maior derrota militar desde a sua fundação há mais de quatro décadas. Essa é também a ofensiva militar israelense mais impactante desde a invasão do Líbano de 1982. Para o Irã, é a degradação política e militar de seu mais importante braço armado irregular, uma fratura inestimável em sua estratégia de guerra por procuração.
Nada disso significa que o Hezbollah esteja definitivamente aniquilado. Boa parte de seu arsenal calculado em até 150 mil foguetes e mísseis e seu contingente de até 100 mil combatentes continua intacta. Entretanto, a campanha israelense iniciada no dia 17, mas preparada há anos, golpeou severamente a milícia libanesa em sua cadeia de comando — cérebro e espinha dorsal de qualquer organização armada.
Antes de analisar como Israel conseguiu isso, é importante endereçar as duas perguntas mais consequentes dessa crise: qual o impacto sobre o Irã, e como ele reagirá? A campanha demonstrou a capacidade da inteligência militar e das Forças de Defesa de Israel (IDF) de localizar e alvejar o líder espiritual, os comandantes militares mais importantes e ativos críticos do arsenal do Hezbollah.
É claro que Israel reúne muito mais informações sobre o Líbano — país vizinho, de território exíguo, com farta oferta de espiões, e sobre o qual exerce soberania aérea — do que sobre o Irã. Entretanto, Israel já demonstrou inúmeras vezes sua capacidade de atingir alvos estratégicos da teocracia iraniana.
Desde 2010, ao menos seis cientistas nucleares iranianos foram mortos pelo Mossad, o serviço secreto israelense, ou a mando dele. Em abril, três mísseis israelenses atingiram uma base aérea em Isfahan, nas proximidades de uma importante instalação nuclear. Em julho, um explosivo contrabandeado para dentro de um complexo de segurança máxima em Teerã matou o líder político do Hamas, Ismail Haniyeh, horas depois da posse do novo presidente iraniano.
Todos esses episódios, combinados com o êxito da campanha no Líbano, são fatores de dissuasão de um envolvimento direto do Irã numa guerra com Israel. Mais importante ainda: ele arrastaria os Estados Unidos para o conflito, elevando o risco de uma derrota devastadora, que provavelmente derrubaria o regime teocrático do Irã.
Por outro lado, essa sequência de humilhações e de golpes substanciais nas capacidades políticas e militares do Irã pode levar a uma perda irreparável de credibilidade das ameaças e, consequentemente, do poder de deterrência. Isso, por sua vez, conduziria a um enfraquecimento interno do regime, odiado por grande parte da população iraniana.
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Portanto, Ali Khamenei, o líder espiritual, vive um dilema de difícil solução. Ele se torna mais intratável na medida em que Khamenei não controla todos os seus componentes. Há uma diferença entre deterrência e dissuasão. A primeira é puramente militar; a segunda envolve também o custo econômico e político do engajamento do inimigo. O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, sente-se estimulado a elevar o risco de confronto direto com o Irã, porque estreita o engajamento militar e político americano, aliviando as pressões contra a brutal e desproporcional campanha israelense na Faixa de Gaza.
Diante da intensificação nos últimos dias do conflito entre Israel e o Hezbollah, o governo americano liberou na quinta-feira mais US$ 8,7 bilhões em ajuda militar a Israel, além dos US$ 3,8 bilhões anuais. Isso sem contar o fornecimento de 14 mil bombas de 900 kg, como a que foi usada contra o quartel-general do Hezbollah, 6.500 bombas de 225 kg, 3 mil mísseis ar-terra Hellfire, mil bombas bunker-buster, 2.600 bombas aéreas de diâmetro menor e outras munições, segundo a imprensa americana.
Dois porta-aviões dos Estados Unidos, com seus grupos de batalha naval, e mais um esquadrão anfíbio, dão apoio permanente a Israel na costa mediterrânea oriental desde outubro, quando os ataques terroristas do Hamas desencadearam a atual crise.
Além do incentivo geopolítico, Netanyahu tem também um importante motivo interno para elevar a percepção de ameaça iraniana: ela atenua a contestação de sua liderança por parte da opinião pública, frustrada com o fato de ele ter priorizado a aniquilação física do Hamas em detrimento de um cessar-fogo que possibilitaria a libertarção de cerca de 100 reféns israelenses.
A ofensiva contra o Hezbollah restaura a histórica credibilidade da inteligência israelense, fraturada pelo ataque de 7 de outubro do Hamas. A operação começou bem antes de seu lançamento oficial no dia 17.
Em abril, as Forças de Defesa de Israel (IDF) anunciaram haver matado seis comandantes de brigadas do Hezbollah, que reúnem de 3 mil a 5 mil combatentes, e 30 comandantes de batalhões, que têm de algumas centenas até mil integrantes.
No mesmo dia do assassinato de Haniyeh, 31 de julho, Israel matou também o comandante militar do Hezbollah, Fuad Shukri. Nos dois primeiros dias da campanha, milhares de pagers e dezenas de walkie-talkies explodiram, comprometendo significativamente a comunicação entre os milicianos do grupo, que haviam abandonado os celulares por ordem de Nasrallah, por causa das interceptações e triangulações feitas por Israel.
Em seguida, foram mortos os comandantes Ibrahim Aqil, das forças especiais do Hezbollah, Ibrahim Qubaisi, de unidades de mísseis, e Ali Karaki, da Frente Sul, que mais ataca Israel. A IDF afirma já ter eliminado mais da metade dos comandantes do Hezbollah. Esse tipo de informação goza de credibilidade porque é frequentemente confirmada pelos fatos e pelos próprios inimigos.
É razoável supor que a inteligência sobre a localização dos arsenais do Hezbollah, que estão sob intenso bombardeio, tenha a mesma qualidade que a do paradeiro dos líderes do grupo. Os disparos de mísseis israelenses são muitas vezes seguidos de grandes explosões secundárias, que indicam que paiós de munição e silos de mísseis foram atingidos.
É improvável que Israel consiga estabelecer no Oriente Médio uma “Nova Ordem” — o grandioso nome dado à operação. Mas ela parece estar alterando substancialmente o equilíbrio de forças, em favor de Israel.
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