“Veja essas pessoas vagando pelas ruas, sem destino, me disse um morador de Porto Príncipe três dias depois do terremoto de janeiro de 2010”, apontando para a janela do carro em que estávamos. “É como se fôssemos mortos insepultos.” Um vazio semelhante domina o Estado haitiano. O assassinato do presidente Jovenel Moise consumou o vácuo de poder no Haiti, o único país das Américas que ainda não recebeu vacina contra covid, embora tenha acesso ao consórcio Covax.
Depois do terremoto, que matou ao menos 100 mil pessoas e destruiu 250 mil moradias e 30 mil prédios comerciais, a comunidade internacional doou US$ 9 bilhões de dólares para a reconstrução e a Venezuela ajudou com outros US$ 2 bilhões em petróleo barato e empréstimos a juros baixos.
No ano seguinte, o ex-cantor Michel Martelly se elegeu presidente, fez um governo desastroso e foi processado por desvio de parte do dinheiro doado para a reconstrução. Voltei ao Haiti em 2012 e encontrei poucas melhorias.
Em 2015, o Parlamento foi dissolvido por falta de eleições. Naquele ano, Martelly apoiou a eleição de Moise, um exportador de bananas até então desconhecido, que também era acusado de desviar dinheiro emprestado pela Venezuela. A eleição foi anulada por fraude. Moise venceu nova votação, realizada em novembro de 2016, e assumiu em fevereiro de 2017.
Em outubro de 2019, era para ter sido eleito um novo Parlamento, mas a votação não ocorreu, em meio a violentos protestos contra o presidente. O Parlamento foi dissolvido em janeiro de 2020, e Moise passou a governar por decreto. No início deste ano a oposição considerou que o mandato de Moise tinha concluído os cinco anos. Moise argumentou que só assumiu em 2017 e, portanto, teria mais um ano para governar.
Essa foi também a interpretação da Organização dos Estados Americanos e dos EUA. Recomeçaram os protestos. Em fevereiro, Moise cassou três juízes da Corte de Cassação (corte suprema), depois que a oposição nomeou presidente da República o decano Joseph Mecene Jean Louis. Dois dias antes de morrer, Moise ainda substituiu o primeiro-ministro interino Claude Joseph pelo desconhecido neurocirurgião Ariel Henry.
No mês passado o ex-policial e chefe do crime organizado Jimmy Cherizierin incitou, numa emissora de rádio, a população a saquear os bancos e lojas, argumentando que “o dinheiro que está lá é de vocês”.
A mensagem ecoa a do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, que nos anos 90 distribuiu armas nas favelas para a população expropriar os ricos: “Peçam para lhes darem as coisas. Se não concordarem, tomem deles”. Eleito em 1990, Aristide foi deposto em menos de um ano. Exilou-se nos Estados Unidos, voltou em 1994, elegeu-se novamente e se reelegeu em 2000, para ser derrubado num levante armado em 2004.
Foi aí que a ONU criou a Missão de Estabilização do Haiti, e confiou seu comando ao Brasil. A primeira tarefa dos militares brasileiros foi justamente desarmar as milícias formadas na Cité Soleil, a maior favela de Porto Príncipe. A missão durou até 2017. Estive lá já no início, em 2004, e acompanhei a experiência dos militares brasileiros, que foi riquíssima.
Toda uma geração de oficiais brasileiros teve a carreira moldada pelo desejo de servir no Haiti, que lhe conferia um propósito, além de chance única de aperfeiçoamento, no contato com o equipamento e os padrões internacionais estabelecidos pela ONU.
Agora, o assassinato de Moise é mais uma prova de que o Haiti não tem como superar a condição de Estado falido sem uma robusta e duradoura ajuda da comunidade internacional. Essa é a função precípua da ONU: resgatar países do caos, da barbárie.
Uma nova missão da ONU, com participação brasileira, seria boa não só para o Haiti, mas para o próprio Brasil, cujos militares precisam urgentemente recuperar o contato com o que define a sua profissão, e deixar a política para os civis.
É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS
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