Quando você não tem nada, não tem nada a perder. Ao longo de dois anos e meio de agressões russas, as forças terrestres regulares ucranianas se abstiveram de atacar a Rússia, para não dar argumentos ao ditador Vladimir Putin de que está defendendo seu país da cobiça ocidental, e em respeito a um tabu da Otan, que vetava o uso de suas armas no solo inimigo.
Nos últimos meses, os russos fizeram avanços graduais no leste da Ucrânia. Apesar do material bélico fornecido pela Otan, a superioridade russa em número de soldados e munição de artilharia, combinada com a supremacia aérea, impunha a dominância estratégica da Rússia.
Como consequência, o ânimo de americanos e europeus de continuar custeando a defesa da Ucrânia vinha diminuindo. No dia 6, três meses antes das eleições americanas, os ucranianos invadiram a Rússia. Ataques aéreos por drones e mísseis já haviam sido realizados, assim como embarcações não tripuladas carregadas de explosivos, e incursões de milicianos, de nacionalidade russa, segundo eles próprios.
Mas um ataque terrestre de forças militares regulares foi o primeiro desde a 2.ª Guerra Mundial, quando Adolf Hitler ordenou a invasão da Rússia, em junho de 1941. Os sinais são de que o presidente Volodmir Zelenski não consultou os governos dos EUA nem da Europa. Eles não gostaram. Mas entenderam.
Hoje, os ucranianos ocupam mais de 1.200 km2, o equivalente à área da cidade do Rio de Janeiro. Alexei Smirnov, governador russo de Kursk, disse que 133 mil civis foram retirados da região e outros 20 mil permanecem. Mais de 100 soldados russos foram feitos prisioneiros, uma moeda de troca para libertar militares ucranianos.
Em golpes de propaganda, a TV ucraniana passou a transmitir telejornais de Kursk, importante terminal por onde passava o gás natural que ia para a Europa antes das sanções; equipes de jornalistas estrangeiros foram fazer reportagens na região ocupada.
Zelenski visitou as tropas na fronteira e anunciou o estabelecimento de um corredor humanitário para os moradores russos que quisessem vir para a Ucrânia, onde seriam tratados de acordo com as leis internacionais.
Na quarta-feira, 45 drones foram disparados pelos ucranianos contra várias partes da Rússia, segundo autoridades russas. Desses, 11 contra Moscou. Todos foram interceptados pelo sistema de defesa antiaéreo. Mas os três aeroportos da capital tiveram de ser fechados. Assim como no ataque com drones de maio do ano passado, mais uma vez os moscovitas, que se sentem tão distantes da guerra na Ucrânia, puderam sentir, ainda que em dose bem reduzida, o que os ucranianos vivem na pele há dois anos e meio.
Para atingir Moscou, drones têm de percorrer no mínimo 840 km, que é a distância entre a capital e a fronteira com a Ucrânia. Onde está o restante da defesa antiaérea russa? O país está desguarnecido no seu flanco oeste, onde trava uma guerra?
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Em maio do ano passado, Putin prometeu que as falhas de segurança seriam corrigidas, e isso não se repetiria. Na quarta-feira, o ditador voltava de uma visita à Chechênia, região muçulmana separatista que ele destruiu há duas décadas, hoje governada por seu aliado Ramzan Kadyrov, que fornece soldados para morrerem no front na Ucrânia.
O fato de o presidente estar se deslocando em dia de ataque aéreo mostra o quanto a inteligência militar russa não conseguiu antecipar a ação, assim como não detectou o movimento de milhares de soldados ucranianos na fronteira, antes da invasão terrestre.
Para além da mancha na principal credencial de Putin perante o povo russo, de pretenso protetor da nação, a incursão abre caminho para ganhos militares reais. Nos últimos dias, as forças ucranianas tentavam isolar um grande grupo de soldados russos emparedados entre a margem ocidental do Rio Seym e a fronteira. Se conseguirem manter e até ampliar as ocupações, os ucranianos podem criar zonas-tampão na fronteira, protegendo seu território de ataques.
Os russos tiveram de deslocar tropas para a região ocupada pelos ucranianos, mas não atenuaram a ofensiva contra as cidades de Pokrovsk, Toretsk e Niu-York, na região de Donetsk, leste da Ucrânia. Parece ser a nova dinâmica da guerra dos dois lados: priorizar a ocupação de território inimigo em detrimento da defesa do próprio território.
Liberar o próprio território de uma força inimiga concentrada é mais difícil do que invadir um território desguarnecido. Em termos políticos, a perda é para os russos, que não tinham até aqui territórios ocupados. A Ucrânia convive com essa realidade desde 2014.
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