Ao comparar a criminosa campanha de Israel na Faixa de Gaza com o Holocausto, o presidente Lula não afrontou apenas os judeus, o bom-senso e a imagem do Brasil, mas os interesses dos próprios palestinos. Aparentemente, a única motivação foi buscar uma propulsão no seu voo solo para se projetar como porta-voz do Sul Global.
Qualquer adulto capaz de enxergar acima de sua trincheira tribal compreende que a comparação com o Holocausto torna qualquer atrocidade menos atroz. É para isso que serve o extremo lógico: criar uma hipérbole, uma lente de aumento, que deforma a realidade para tornar aceitável o inaceitável. Assim, alguém que condena a brutal campanha de Israel contra os palestinos equiparando-a à campanha de Adolf Hitler contra os judeus se desqualifica para o debate e fortalece a posição daqueles que procuram normalizar a carnificina na Faixa de Gaza.
Essa provavelmente não era a intenção de Lula. Como não deve ser a intenção dele resolver o problema palestino. Porque, para isso, seria preciso se debruçar sobre a complexa realidade do Oriente Médio, sobre uma história de 75 anos de erros, traumas, injustiças, oportunismos e emprego da força bruta.
Lula não parece ter tempo ou interesse nisso: ele não observou sequer o que os russos estão fazendo na Ucrânia nos últimos dois anos, pois afirma que nunca viu alguém matar mulheres e crianças indiscriminadamente, como Israel está efetivamente fazendo na Faixa de Gaza.
A indignação seletiva é, por si só, indigna, porque coloca as preferências ideológicas e os impulsos narcísicos acima da compaixão humana. Além de indigna, é ultrajante. Mas o ultraje também pode ser seletivo, e é nesse espaço de incoerências e oportunismo que a hipérbole de Lula ganha a ressonância por ele pretendida.
A comparação permite ao governo israelense um momento de heroismo, colocando-o do mesmo lado das vítimas do Holocausto; e permite ao Hamas um momento de vitimização, colocando-o do mesmo lado das vítimas na Faixa de Gaza.
No mundo real, fora da lente de aumento criada pela comparação de Lula, nem Netanyahu representa os judeus nem o Hamas representa os palestinos. Ambos, cada um ao seu modo, dentro dessa guerra assimétrica, têm causado danos irreparáveis a seus respectivos povos.
As pesquisas indicam que, se houvesse eleições em Israel, Netanyahu estaria sentado na bancada da oposição na Knesset, o Parlamento israelense. A maioria dos israelenses rejeita as falhas de segurança que possibilitaram o ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro e a condução da campanha militar, focada não em ações cirúrgicas que levem à libertação dos mais de 100 reféns e à decapitação do grupo inimigo, mas no castigo coletivo dos palestinos, que matou dezenas de milhares de inocentes e submete 2 milhões de pessoas à inanição.
Enquanto isso, o Hamas faz o que sempre fez: esconde-se covardemente de trás dos palestinos, submete-os ao máximo sofrimento, para provar sua suposta superioridade moral sobre Israel e, com isso, angariar o patrocínio do Irã e popularidade na chamada “rua árabe”.
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Apenas potências globais têm condições militares, políticas e econômicas de atuar em todas as regiões do mundo. É por isso que elas são chamadas de “globais”. O Brasil é uma potência regional, localizada não no Oriente Médio ou na Europa, mas na América Latina.
O que não significa que o Brasil não possa ajudar, como faz o presidente Lula, ao oferecer mais recursos para a agência da ONU para refugiados palestinos, a UNRWA. Os Estados Unidos e a Europa suspenderam as contribuições à agência depois da denúncia, por parte de Israel, de que 12 funcionários dela participaram das atrocidades do Hamas. A agência tem 13 mil funcionários. Mais de 1 milhão de palestinos dependem dela para sobreviver. Trata-se de mais uma punição coletiva.
A decisão de Lula de reforçar o apoio à UNRWA se encaixa no escopo do governante de um país que se desejaria justo e solidário, como o Brasil. Entretanto, ao responder a uma pergunta, em Adis-Abeba, sobre essa iniciativa, o presidente atacou os outros países que suspenderam a ajuda e fez a desastrosa declaração sobre o Holocausto.
O domínio das preferências ideológicas sobre os princípios da democracia e da ordem internacional baseada em regras têm comprometido a liderança do Brasil até mesmo sobre a região na qual ele está vocacionado a exercê-la. A Cúpula Sul-Americana, realizada em maio em Brasília, foi marcada por amplo desconforto entre os democratas presentes e pela rejeição explícita dos presidentes do Chile e do Uruguai — um de “esquerda” e outro de “direita” — à cerimônia de desagravo ao ditador venezuelano, Nicolás Maduro. Ao recebê-lo um dia antes da cúpula, Lula afirmou que a Venezuela é “vítima de uma narrativa de antidemocracia e autoritarismo”.
Como se vê, o aparente desejo do presidente de se elevar à condição de contestador da ordem mundial enfraquece sua voz até mesmo onde ela teria chances de ser ouvida.
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