Os contornos geopolíticos do novo governo da Organização de Libertação do Levante (HTS) não estão definidos. Mas já está claro que Turquia e Israel se beneficiam no curto prazo. Irã e Rússia perdem muito, o que significa ganho para os Estados Unidos. A China tem de rever sua estratégia.
No dia seguinte à fuga do ditador Bashar Assad para Moscou, três países bombardearam alvos na Síria: os EUA, do Estado Islâmico, para que não ocupasse vazios criados pelo avanço de seus rivais do HTS; a Turquia, da guerrilha curda; Israel, das Forças Armadas sírias.
A Turquia é, neste momento, o único país com influência direta sobre a Síria. A ofensiva do HTS teve o apoio do Exército Nacional Sírio (ENS), patrocinado pelo regime turco.
Assad se sentia firme no cargo: países árabes o haviam acolhido de volta e até europeus acenavam com a normalização de relações. Erdogan, que antes da Primavera Árabe (iniciada em 2011) era aliado de Assad, tentou uma reconciliação.
Interpretando esses gestos como sinais de fraqueza, o ditador sírio exigiu em outubro a retirada das tropas turcas da Síria e negou os pedidos de repatriação dos refugiados sírios na Turquia.
No mês passado, durante reunião em Astana (Cazaquistão), o enviado da Rússia para a Síria, Alexander Lavrentiev, negou o pedido da Turquia para que as forças russas permitissem o trânsito de suas tropas na fronteira, para atacar os guerrilheiros curdos do YPG. Eles são aliados dos separatistas curdos na Turquia.
A recusa foi a gota d’água para a Turquia autorizar a ofensiva do HTS. O grupo sunita esperava pelo cessar-fogo entre Hezbollah e Israel. A milícia xiita libanesa era aliada do regime de Assad, assim como seu patrocinador, o Irã. O HTS não queria ser acusado de colaborar com Israel.
Enquanto o HTS avançava, Israel executou 480 bombardeios contra a Síria, que destruíram a Marinha, a Força Aérea e grande parte do arsenal estratégico. Pela primeira vez em 50 anos, tropas israelenses invadiram a zona desmilitarizada entre os dois países.
O propósito não era favorecer o HTS. Um dos objetivos foi evitar que os estoques de armas químicas e biológicas caíssem “nas mãos de extremistas”, conforme o chanceler israelense, Gideon Saaar; e reduzir a ameaça do país vizinho, sem risco de retaliação de Irã, Hezbollah ou Rússia.
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Os EUA apoiam o Exército Democrático Sírio, composto por curdos e árabes seculares, e têm cerca de 900 soldados na Síria. A missão é conter o Estado Islâmico e a passagem de armas do Irã para o Hezbollah. A queda de Assad levou o secretário de Estado Antony Blinken à Jordânia e Turquia, para consultas sobre o novo regime.
As condições americanas para reconhecê-lo são: não hostilizar mulheres, cristãos, alauitas e curdos, não servir de base para terroristas e destruir as armas químicas e biológicas. O líder do HCT, Abu Mohamed al-Jolani, fundou a Frente Al-Nusra, filiada à Al-Qaeda, e rompeu com o grupo em 2007. Mas o HCT continua na lista de organizações terroristas dos EUA.
“A Síria está uma bagunça, mas não é nossa amiga”, publicou Donald Trump em sua rede, Truth Social. “Os EUA não devem ter nada a ver com ela. Essa briga não é nossa.” No primeiro mandato, Trump retirou boa parte das tropas americanas na Síria, e todo o pessoal da CIA. Ele volta comprometido com o desengajamento dos conflitos mundiais.
A queda de Assad é consequência do enfraquecimento do Hezbollah e da Rússia, que combatiam os rebeldes sírios. A Síria era a ponta de lança da Rússia para o Oriente Médio e o Mediterrâneo. Abrigava as bases russas de Tartus, naval, e de Khmeimim, aérea. Foi a primeira cliente do grupo mercenário Wagner.
A Síria aderiu à Nova Rota da Seda em 2022, mas não recebeu investimentos por causa da insegurança. Com a aparente consolidação de Assad no poder, e a debilitação da Rússia pela reação do Ocidente à invasão da Ucrânia, a China passou a ver a Síria como espaço de projeção.
Xi Jinping recebeu Assad em Hangzhou em setembro de 2023, antes da abertura dos Jogos Asiáticos. Firmaram uma “aliança estratégica”. Agora, Rússia e China estão contactando representantes do HTS. A mídia russa passou a se referir a eles como “oposição armada”, em vez de “terroristas”.
A China tem a flexibilidade ideológica para se acomodar à nova realidade síria. Há um problema: a forte presença, no HTS, de jihadistas uigures, muçulmanos separatistas da província chinesa de Xinjiang.
Como se vê, a queda de Assad mudou o tabuleiro. Binyamin Netanyahu afinal não exagerou, quando falou na “nova ordem do Oriente Médio”.