A ameaça de agressão do regime venezuelano contra a Guiana desnuda dois fundamentos da geopolítica na América Latina: ditaduras são fator de desestabilização e o Brasil, para exercer sua liderança, precisa sustentar uma defesa consistente da ordem internacional baseada em regras, acompanhada de um poder militar de dissuasão robusto.
Ao tergiversar a respeito da natureza ditatorial do regime venezuelano e da ilegalidade da invasão da Ucrânia pela Rússia, o presidente Lula criou uma zona de conforto para o ditador Nicolás Maduro atropelar seus compromissos de restabelecer os direitos políticos da oposição e criar uma cortina de fumaça com sua investida contra o Essequibo. Tudo com vistas à eleição presidencial prevista para outubro de 2024.
Não significa responsabilizar o governo brasileiro pela crise. Mas, na condição de líder regional, o Brasil tem de cumprir suas obrigações, no sentido de desencorajar aventuras como essa.
Causar guerras ou simplesmente o temor em relação a elas é um expediente clássico de ditaduras. A exacerbação de tensões externas e internas serve para suprir o déficit de legitimidade que condena as ditaduras ao ocaso.
Democracias também provocam guerras. O caso mais recente foi a invasão americana do Iraque em 2003. Desde então, todos os presidentes americanos — Barack Obama, Donald Trump e Joe Biden — foram eleitos mediante o compromisso de se desengajar do Afeganistão, do Iraque e de outros conflitos armados.
A democracia tem um mecanismo de correção de erros que garante a continuidade do sistema. Com as ditaduras, é o contrário: o desejo de perpetuação incentiva a repetição dos erros.
Além disso, os conflitos são ocasionados pela falta de realismo: assessores militares e civis têm medo de contradizer ou levar más notícias para ditadores. Saddam Hussein invadiu o Kuwait em 1990 e Vladimir Putin a Ucrânia em 2022 em parte por causa disso.
A Argentina invadiu as Malvinas em 1982 numa tentativa desastrosa dos militares de se manter no poder. A Coreia do Norte vive causando tensões com seus testes de mísseis; o Irã patrocina milícias nos territórios palestinos, no Líbano, na Síria, no Iraque e no Iêmen; a Rússia invadiu a Geórgia e a Ucrânia; a China ameaça anexar Taiwan, para citar apenas alguns exemplos.
Não é coincidência que Maduro vá visitar Putin em meio à crise. O ditador venezuelano segue o roteiro de seu aliado russo. Mesmo tendo o maior território do mundo, sendo o maior produtor de petróleo e um dos maiores de alimentos, Putin considerou que precisava se apropriar de sua vizinha, a Ucrânia, ou parte dela. Mesmo tendo as maiores reservas de petróleo do mundo e quatro vezes o território da Guiana, Maduro acha que deve anexar 70% da nação vizinha, na área em que foi encontrado petróleo.
Ao longo das duas últimas décadas, Lula relativizou a natureza ditatorial do regime venezuelano argumentando que lá se realizavam mais votações do que em outros lugares. Esse tipo de ilusão serviu de incentivo para Maduro lançar a ameaça contra as Guianas a partir de um plebiscito fraudulento, como todas as votações realizadas na Venezuela desde a vitória da oposição na eleição da Assembleia Nacional em dezembro de 2015.
Agora o Brasil desperta tardiamente para o efeito desestabilizador de abrigar uma ditadura em sua fronteira, e de não ter um poder militar robusto. Antes de sucatear completamente a PDVSA, o regime chavista usou a renda do petróleo para comprar US$ 6 bilhões em armas da Rússia, incluindo 24 caças Sukhoi, 50 helicópteros, tanques, mísseis antiaéreos e 100 mil fuzis Kalashnikov.
Há muitas dúvidas sobre o estado de prontidão das Forças Armadas venezuelanas, corroídas pela corrupção, politização, falta de profissionalismo e de recursos materiais. Entretanto, se as Forças Armadas do Brasil inspirassem mais medo, teríamos mais segurança de que os venezuelanos não cogitariam seriamente cruzar os 400 km de território brasileiro pela única estrada que liga a Venezuela à Guiana.
O Orçamento deste ano destina R$ 124,4 bilhões para o setor de Defesa, o que representa mais de 1% do PIB. Não é um valor pequeno. É uma porcentagem próxima à de Canadá, Espanha e Turquia, membros da Otan. O problema é que, no Brasil, 78% disso é destinado a despesa com pessoal, o que inclui aposentadorias e pensões. As Forças Armadas precisam de uma reforma para mudar essa equação, reduzir e profissionalizar o efetivo e realocar recursos para treinamento e armamento.
Como agora se torna claro, o custo político e militar da complacência é muito mais alto do que uma atitude de firmeza e de vigilância o tempo todo.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.