O presidente Lula elevou a “reforma da governança global” ao topo de sua política externa. A proposta é tão vazia que recebe o apoio de Estados Unidos, União Europeia, China e Rússia, que discordam em tudo que tenha consequência geopolítica. Governança não resolve conflitos. Apenas facilita o encaminhamento de soluções quando os atores envolvidos estão dispostos a resolvê-los. Não é o caso do mundo atual.
Lula e o chanceler Mauro Vieira defendem as reformas no amplo espectro dos organismos multilaterais, entre eles o Conselho de Segurança (CS) da ONU, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Lula tem denunciado a paralisia do CS diante das guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza. O Itamaraty dramatizou o pleito alegando que no ano passado houve mais de 170 conflitos armados.
Os casos concretos falam por si mesmos. Vladimir Putin invadiu a Ucrânia não por falta de gestões diplomáticas, de tentativas de atender às supostas preocupações dele com a segurança da Rússia. Ao longo de 2021, quando as tropas russas se concentravam na fronteira com a Ucrânia, os principais líderes ocidentais tentaram apaziguar Putin, oferecendo-lhe garantias de segurança.
Joe Biden promoveu uma cúpula com o autocrata russo em Genebra em junho daquele ano, quando a pandemia ainda desencorajava tais encontros. Putin já tinha decidido, por considerar que uma Ucrânia próspera e democrática integrada ao Ocidente é um contra-exemplo fatal para sua ditadura corrupta e ineficiente.
Da mesma maneira, não há governança que neutralize a radicalização do Irã a partir da ruptura do acordo nuclear, promovida por Donald Trump, o ímpeto de perpetuação da teocracia iraniana, igualmente corrupta e ineficiente, além de impopular, e o patrocínio ao Hamas, cuja razão de ser é o conflito com Israel.
A superação desses e outros conflitos só ocorre quando há uma mudança na correlação de forças, que retire o incentivo de um ou mais atores de continuar recorrendo à violência. A causa dos conflitos é a convicção das partes de que a violência é a melhor opção para elas -- ou, frequentemente, a menos ruim. A governança não tem o poder de mudar essa equação.
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Governança é um modelo de gestão que prioriza a transparência, a coerência com princípios éticos, a avaliação de desempenho, a responsabilidade corporativa ou pública, a prestação de contas, a diligência e a integridade.
Na ordem internacional, a governança é o arranjo que reflete da forma mais fiel possível a correlação de forças. Ela é a expressão atualizada dessa correlação, não a sua “correção” a partir do voluntarismo de países que não têm o poder de alterá-la. “Precisamos de instituições que reflitam como o mundo é hoje, e não como era quando foram criadas, há 80 anos”, disse o secretário de Estado americano, Antony Blinken, que veio ao Rio para a reunião de ministros do Exterior do G-20. “Precisamos de instituições que respondam aos desafios de hoje em dia. E estamos liderando os esforços para expandir o Conselho de Segurança da ONU, tanto em membros permanentes quanto não-permanentes.”
Os EUA propuseram a expansão nos anos 90, para que Alemanha e Japão ganhassem assentos permanentes e assumissem suas responsabilidades. Os dois gigantes econômicos emergiram da guerra fria como anões militares, por causa dos limites que os vencedores da 2.ª Guerra Mundial lhes haviam imposto. Como democracias sólidas aliadas do Ocidente, era hora de atualizar seu papel na segurança internacional.
A discussão abriu uma caixa de pandora. Índia, Brasil e países africanos levantaram a mão. A China bloqueou a entrada de Japão e Índia, seus rivais regionais. Os americanos, franceses e britânicos perderam interesse na questão, já que a entrada de países subdesenvolvidos apenas diluiria o seu poder no CS, sem trazer reforços econômicos e militares.
Os EUA retomaram a ideia em 2022, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, somada à perspectiva de anexação de Taiwan pela China. Russos e chineses vetaram as resoluções que condenavam a invasão e respaldavam punições contra a Rússia.
Da mesma maneira, os EUA vetaram três resoluções do CS, uma delas proposta pelo Brasil, que exigiam o fim da campanha militar de Israel na Faixa de Gaza. Na última tentativa, na terça-feira, 13 dos 15 membros votaram a favor e o Reino Unido se absteve.
Por que EUA e Rússia abririam mão desse poder? O pior é que o Brasil tem feito concessões reais em troca de promessas fictícias de apoio à expansão do CS. A China, por exemplo, enfiou goela abaixo do Brasil a expansão dos Brics, que dilui o papel brasileiro e amplia a liderança chinesa sobre o bloco.
“O Brasil não aceita um mundo em que as diferenças são resolvidas pelo uso da força militar”, discursou o chanceler Mauro Vieira na abertura da reunião do G20. “O Brasil rejeita a busca de hegemonias, antigas ou novas. Não é do nosso interesse viver em um mundo fraturado.” Ele também condenou a adoção de “sanções unilaterais”, ou seja, não aprovadas no CS.
O Brasil tem comprado mais fertilizantes e diesel da Rússia desde a invasão, e Lula prometeu ao chanceler russo, Sergei Lavrov, seguir ampliando o comércio. Para mitigar a condição de pária internacional e criminoso de guerra de Putin, Lula confirmou sua ida à reunião dos Brics na Rússia em outubro e seu convite para que ele venha à cúpula do G20 em novembro.
Essas posições tornam a defesa da soberania da Ucrânia meras palavras ao vento. Como a Rússia e sua aliada, a China, têm poder de veto, sanções e ação armada contra elas jamais serão aprovadas no CS. Na prática, Lula apoia Putin, enquanto militares russos sequestram milhares de crianças ucranianas, estupram mulheres, massacram civis propositalmente e destroem a infraestrutura da Ucrânia. Ou enquanto a miragem da “reforma da governança global” não se materializa.
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