A eleição de Javier Milei deve interromper a projeção da China na Argentina e as tentativas da Rússia de seguir o mesmo caminho. O novo governo abre espaço para maior influência dos Estados Unidos e talvez do Brasil, se os interesses nacionais falarem mais alto do que a ideologia. Será ainda um aliado de Ucrânia e Israel.
No governo de Cristina Kirchner, a China começou em 2014 a construção de uma base interplanetária em Neuquén, na Patagônia. Ocupando uma área de 200 hectares, ela inclui uma antena de 35 metros que monitora as atividades dos satélites. É uma típica instalação de uso dual — civil e militar. Na hipótese de guerra com os EUA, a China treina para derrubar satélites e cortar as comunicações e sistema de geolocalização do inimigo.
No atual governo de Alberto Fernández, os chineses assinaram a construção de usina de fertilizantes acompanhada de terminal portuário em Río Grande, na Terra do Fogo, num projeto de US$ 1,25 bilhão. O porto controlaria a passagem entre os oceanos Atlântico e Pacífico pelo Estreito de Magalhães, daria acesso direto à Antártida, cobiçada pelas potências, e ainda monitoraria as Ilhas Malvinas.
Outro acordo prevê a construção de duas hidrelétricas, uma delas chamada Néstor Kirchner, ex-presidente e marido falecido de Cristina. Situadas na província nativa do casal, Santa Cruz, também no sul do país, elas são orçadas em US$ 4,7 bilhões. Há ainda um projeto na província de Jujuy de exploração de lítio, mineral estratégico usado em baterias de veículos elétricos.
A Argentina entrou no ano passado na Nova Rota da Seda, programa trilionário de investimentos do governo chinês. Não são investimentos diretos, como fazem outros países: o modelo gera dívidas cuja garantia são as próprias obras.
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Os juros são mais altos que os de mercado. Em contrapartida, as exigências de compliance são mais frouxas, gerando oportunidades de corrupção. Dos US$ 277 bilhões de dívida externa argentina, US$ 20 bilhões são para a China.
Durante a campanha, Milei disse que não queria relações com o regime “comunista” da China, com a ressalva de que as trocas comerciais e investimentos são atribuição de empresas, não de governos.
Xi Jinping enviou a Milei uma carta calorosa em que atribui “alta importância ao vínculo sino-argentino”. Milei agradeceu a Xi em um post no X (antigo Twitter). Ele reproduziu a carta e mandou os “mais sinceros desejos de bem-estar para o povo da China”.
A fórmula foi parecida com a usada em relação ao governo Lula, que Milei também chamou de “comunista” e do qual prometeu afastar-se. À pergunta sobre se Lula seria bem-vindo caso quisesse ir à sua posse, o presidente eleito garantiu que sim e ressaltou a importância do Brasil. Ou seja, esquivou-se de falar dos presidentes que havia atacado.
Lula hesita em ir, para evitar ter sua presença ofuscada. O ex-presidente Jair Bolsonaro será recebido festivamente, dada a identificação de Milei com ele.
Assim como a China, a Rússia também tenta ampliar sua presença na Argentina. Em 2010, Cristina Kirchner selou com Vladimir Putin uma “aliança estratégica”.
A Novatek, maior produtora de gás liquefeito da Rússia, ofereceu tecnologia para montar uma usina de liquefação no campo de Vaca Muerta, mas a ideia não prosperou.
O banco da Gazprom, maior produtora de gás do mundo e maior empresa da Rússia, propôs-se a financiar US$ 180 milhões para a construção de um porto na província de Buenos Aires. O projeto foi barrado pela lei de zoneamento do município de Ramallo.
A Argentina aplicou em sua população a vacina russa Sputnik contra a Covid, sem aprovação da Organização Mundial de Saúde e rejeitada pela maioria dos países. Em sua visita a Moscou três semanas antes da invasão da Ucrânia, em fevereiro do ano passado, Fernández expressou a Putin o desejo de a Argentina se tornar “porta de entrada” da América Latina para a Rússia.
Milei disse que não queria relações com Putin tampouco. Mesmo assim, o Kremlin manifestou desejo de manter “sólidos vínculos”com a Argentina.
Volodimir Zelenski foi o primeiro governante europeu a telefonar para parabenizar Milei pela vitória. O presidente ucraniano lhe agradeceu por ter uma “ideia clara” sobre a guerra e por não ser “ambíguo sobre o bem e o mal”. Combinaram uma cúpula Ucrânia-América Latina em Buenos Aires, sob liderança argentina.
Depois disso foi a vez de Joe Biden, que falou da “importância de continuar a fortalecer a sólida relação bilateral” entre EUA e Argentina. Presidentes americanos não costumam ir a posses, e Biden enviará um representante. Já Donald Trump, como Bolsonaro um modelo para Milei, irá a Buenos Aires.
A economista Diana Mondino, que deve assumir o Ministério das Relações Exteriores, garantiu que sob Milei a Argentina manterá amplas relações internacionais, tendo o comércio como foco.
Nada mau para um presidente que se mostrava disposto a se relacionar apenas com EUA e Israel, para onde aliás ele deve ir antes da posse. Será uma visita “espiritual”, segundo ele: Milei está se convertendo ao judaísmo e promete transferir a embaixada para Jerusalém.
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