A celebração dos 80 anos do desembarque dos aliados na Normandia foi cercada de melancolia. A sensação de que uma era pode estar chegando ao fim foi produzida pelo número reduzido dos veteranos sobreviventes, na casa dos 100 anos, pelas fraturas na solidariedade à Ucrânia e pela provável ascensão dos ultranacionalistas nas eleições do Parlamento Europeu.
Não se trata apenas de nostalgia, idealização do passado. O mundo parece normalizar a covardia e valorizar a vilania. Ser vil, mesquinho e idiota se tornou algo não só aceitável para um líder, mas até valorizado. Diante da não-provocada agressão à Ucrânia, Vladimir Putin encontra uma audiência pronta para aceitar suas distorções da realidade e justificar seus crimes.
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Eu fiz 15 coberturas de conflitos armados e tenho horror à guerra e à violência. Entretanto, se tem uma coisa que eu aprendi com as pessoas que conheci pegando em armas para lutar por justiça e liberdade é que é melhor morrer lutando do que viver sem dignidade. Muitas pessoas, incluindo políticos brasileiros de esquerda e direita, sentem-se à vontade não só para cruzar os braços diante da injustiça, mas para criticar os que ajudam as vítimas e até apoiar os agressores.
“Não estão nos pedindo para escalar essas escarpas”, disse o presidente Joe Biden, referindo-se ao que os veteranos fizeram 80 anos atrás para liberar a França do jugo nazista. “Não estão nos pedindo para doar ou arriscar nossas vidas. Estão nos pedindo para fazer nossa obrigação, proteger a liberdade em nosso tempo, defender a democracia, enfrentar a agressão e ser parte de algo maior que nós. Render-se a valentões, curvar-se a ditadores é simplesmente impensável.”
Não mais. O impensável se tornou trivial — incluindo a volta ao poder de Donald Trump, que tentou um golpe. “A democracia nunca está garantida”, continuou Biden. “Toda geração deve preservá-la, defendê-la e lutar por ela. É o teste das eras.”
Junto com a coragem e o senso de justiça, há uma nova geração desconectada da democracia e, consequentemente, da liberdade. A memória do sofrimento dos avós sob a opressão está se dissipando.
Falando em francês e usando a farda de marechal do Exército britânico, o rei Charles III ressaltou: “É nossa obrigação lembrar contra o que eles se levantaram, e o que eles alcançaram para nós não pode jamais diminuir”. O próprio Charles perdeu em anos recentes seus pais, que viveram o período da 2.ª Guerra, e luta contra o câncer, aos 75 anos.
O anfitrião, o presidente Emmanuel Macron, que por sua vez fez um trecho do discurso em inglês, agradeceu aos ucranianos pela coragem e senso de liberdade. “Estamos aqui e não recuaremos”, prometeu Macron. “Em face do retorno da guerra em nosso continente, da ameaça a tudo pelo qual eles lutaram, dos que usam a força para mudar as fronteiras, para reescrever a história, vamos ser dignos daqueles que desembarcaram aqui.”
Voltando-se para Volodmir Zelenski, Macron afirmou: “Sua presença aqui, sr. presidente, diz tudo”. Zelenski foi abraçado por um veterano, que o puxou de sua cadeira de rodas, e disse: “Você salvará todos os povos. Você é meu herói”.
Na eleição para o Parlamento Europeu, que termina neste domingo, 9, as pesquisas preveem o crescimento da direita nativista, que coloca a identidade de raça e de nação acima dos valores universais. A história da civilização é a história da luta entre o tribalismo e a ética, como critério do que deve ser defendido.
Expressão dessa ascensão é a Alternativa para a Alemanha, partido de origem nazista, que segundo as pesquisas teria a mesma porcentagem de votos que o Partido Social-Democrata, do chanceler alemão Olaf Scholz: 16%. Outro grupo que deve crescer é o de Marine Le Pen, favorita na eleição presidencial da França em 2027.
A situação é tão desesperadora que a primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, é vista como potencial força moderadora nessa eleição. Meloni comparou no passado a União Europeia (UE) à União Soviética, e cultivou admiração por Putin. Seu partido, Irmãos da Itália, tem origem fascista. Mas, ao disputar e assumir o governo, Meloni moderou o discurso e passou a apoiar a UE e a Ucrânia.
Nessa eleição, o grupo liderado pela presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen, que representa a corrente conservadora moderada, tenta uma aliança com Meloni, para neutralizar os ultranacionalistas, de Le Pen e do húngaro Viktor Orbán. Provavelmente, os alinhamentos dependerão dos resultados eleitorais. O futuro da Europa e da democracia, também.
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