Filósofo e ex-ministro da Educação da França, Luc Ferry encontrou o Brasil em meio a campanha eleitoral polarizada entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro, que se desenvolveu sob o receio de uma escalada da violência após dois assassinatos por razões políticas: um no Paraná e outro em Mato Grosso. Ele esteve há dez dias no País para conferências no evento Fronteiras do Pensamento, em São Paulo e em Porto Alegre, ao mesmo tempo em que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou pesquisa na qual 67% dos eleitores disseram ter medo de serem ameaçados em razão de suas posições políticas.
Para o filósofo, é preciso recuperar o equilíbrio no debate público para enfrentar o medo e exercer a cidadania diante dos avanços da extrema direita no Brasil e na Europa e dos erros da esquerda, que deixou de ser “social para se tornar societária”. Ferry dialoga aqui com intelectuais como Raymond Aron e Jean-Paul Sartre. Ele é conhecido por não poupar em suas intervenções no debate público o senso comum. Era ministro quando o uso de véu islâmico foi proibido nas escolas públicas da França. Queria, então, reafirmar a laicidade do Estado. Estava em São Paulo, quando, em um almoço, pediu à reportagem que encaminhasse as perguntas por escrito, a fim de que pudesse elaborar suas respostas. Ei-las.
Refletindo sobre o princípio de um governo autoritário em Democracia e Totalitarismo, Raymond Aron afirma ter encontrado dois sentimentos: medo e fé. ‘Aqueles que não acreditam na doutrina oficial devem estar convencidos de sua impotência.’ No Brasil, uma pesquisa recente mostrou que 67% da população tem medo de ser ameaçada por causa de posições políticas. Qual é a consequência desta situação para a democracia? É possível manter a democracia quando as pessoas têm medo de exercer sua cidadania?
A resposta está na pergunta. O problema é mais saber baixar o nível de medo ou, como outra maneira de ver as coisas, aumentar o nível de coragem. Em uma sociedade onde a violência é endêmica, é necessário que a mídia assuma a responsabilidade. É essencial que ela tenha a coragem de organizar debates com o contraditório, mas bem argumentado. Cabe a ela escolher convidados que, embora em desacordo entre eles, sejam razoáveis o suficiente para dar ao debate democrático uma imagem pacífica, porque centrado em conceito e argumentos.
Raymond Aron também dizia que os cidadãos em um regime constitucional-pluralista devem ter três qualidades: “respeitar as leis e, em particular, a norma constitucional; eles devem provar as paixões partidárias para animar o regime e impedir o sonho da uniformidade e, finalmente, eles não devem levar as paixões partidárias até o ponto onde desaparece a possibilidade de entendimento, isso quer dizer, eles devem ter o senso do compromisso”, que não se confunde com o acordo espúrio. O que deve ser feito para formar esse tipo de cidadão em nossas sociedades?
O problema com as paixões é que elas são difíceis de restringir. Por definição, um debate acalorado é apenas muito dificilmente um debate fundamentado. Aron está certo, temos de reconciliar ambos: sem paixão, o debate é fraco, mas sem a discussão, volta-se para o boxe, para a violência. Aqui, novamente, é antes de mais nada para os grandes meios de comunicação, em particular para a televisão, a tarefa de fazer de tudo para que uma imagem desta aliança entre paixão e razão seja dada ao público em geral. É possível escolher inteligentemente os palestrantes em um programa de debate político. O problema é que muitas vezes a lógica da mídia é a do Ibope e, o que infelizmente acontece, é que o pugilato se vende melhor do que a discussão argumentada.
Em que medida é importante resistir aos desafios da nova extrema direita? E qual é o papel da nova esquerda nesse debate?
Acho que ainda não medimos todos os efeitos e todas as consequências do colapso da União Soviética e, em geral, do comunismo. A verdade é que a queda do comunismo acabou trazendo consigo a queda do socialismo e, em última análise, de todas as formas de social-democracia. Na Europa, a extrema direita continua ganhando terreno, chega ao poder na Suécia e na Itália e, na França, está muito próxima. Aos olhos de um jovem tentado pelo radicalismo, a esquerda parece fraca e sem ideias afiadas em comparação com o extremismo de direita. A esquerda deve hoje repensar seu software intelectual de cima para baixo, deve repensá-lo fora do comunismo em relação ao qual sempre se posicionou como simplesmente reformista e não revolucionária. Hoje, o reformismo se situa no centro, mais à esquerda, e, para muitas pessoas, é a extrema direita que melhor encarna, senão a ideia revolucionária, pelo menos a de radicalismo.
Em 1945, logo após a derrota do nazi-fascismo, Jean-Paul Sartre escreveu O Que é um Colaborador? Sartre disse, então, que a democracia sempre foi um terreno fértil para os fascistas porque tolera, por sua natureza, todas as opiniões; no final das contas, ‘leis restritivas devem ser feitas: não deve haver liberdade contra liberdade’. Diante do recrudescimento de movimentos extremistas de direita e de esquerda no mundo, esse seria o caminho que devemos seguir?
De jeito nenhum. A tese de Sartre é, como muitas vezes, totalitária e draconiana. Simone de Beauvoir teve a coragem de escrever isso no início de seu livro sobre moral: ‘A verdade é uma, só o erro é múltiplo, por isso a direita é pluralista!’ Com esse tipo de raciocínio, vai-se direto ao partido único e ao totalitarismo. Sejamos honestos: se a extrema direita chega ao poder é porque a esquerda entrou em colapso e não conseguiu resolver os problemas do povo, especialmente os da classe trabalhadora. Na França, são esmagadoramente os trabalhadores que votam na extrema direita, que devem fazer pensar a esquerda, que abandonou o social pelo societário, a classe trabalhadora pelas lutas de identidade...
Sartre disse, também no mesmo texto de 1945, que a tese favorita do colaborador – bem como do fascista – era a do realismo. Ele conclui que, em face dele, a resistência, que acabou triunfando, ‘mostra que o papel do homem é saber dizer não aos fatos mesmo quando parece que temos que nos submeter a isso’. E, hoje, como podemos resistir e defender o democracia? Seria necessária a coragem de um novo manifesto de 18 de junho de 1940, como fez o general De Gaulle?
Mais uma vez Sartre está errado. O realismo não consiste em se submeter ao real, o realismo não é resignação, mas aceitar compreender o real para poder, se necessário, mudá-lo. A tese de Freud sempre me pareceu sobre esse assunto mais convincente: a utopia é o ‘princípio do prazer’, que reivindica a felicidade sem esperar, aqui e agora. É o princípio que rege o mundo da infância. O ‘princípio de realidade’ obedece a outra lógica sem, contudo, opor-se de maneira absoluta ao princípio do prazer. Para dizer a verdade, como diz Freud, ele não é jamais que uma ‘modalidade’, uma variante que, simplesmente, leva em conta os limites que nos coloca o real. Seu objetivo continua sendo a realização de desejos, mas o indivíduo adulto agora sabe que devemos levar em conta os obstáculos que geralmente povoam o mundo real. A utopia sempre tem sempre alguma coisa de infantil e, além disso, no mundo real, leva sempre ao desastre. A Revolução Cultural Chinesa, à qual Sartre aderiu, fez mais de 60 milhões de mortes! Então, sejamos realistas, vamos lutar contra o medo e a opressão que sempre desperta, mas levando em conta a realidade, não fugindo dela e, novamente, volto a isso, a responsabilidade da mídia é crucial: em democracia, o “quarto poder” é muitas vezes o primeiro!
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