O Muro de Berlim tinha acabado de cair e Francis Fukuyama ainda acreditava em fim da história quando a recém-criada República da Ucrânia abriu mão de seu arsenal nuclear em troca da promessa da Rússia de não agressão com a assinatura do o Memorando de Budapeste. Fechado em 1994, com garantias de americanos, britânicos, franceses e chineses, o acordo previa o desmantelamento das armas atômicas ucranianas - o segundo maior arsenal da União Soviética -, assim como o das ogivas alocadas em Belarus e no Casaquistão.
Àquela altura, a Ucrânia era um país pobre, que acabara de sair da fracassada experiência do socialismo real. Por isso, manter um arsenal nuclear daquele tamanho era caro. Além disso, o novo Kremlin de Boris Yeltsin estava enfraquecido com o colapso da URSS e não parecia uma ameaça iminente.
Logo, as prioridades eram outras. Fazia mais sentido reservar dinheiro para investir na indústria e na geração de empregos do que em defesa. Não era como se um maluco estivesse babando para anexar a Crimeia assim que a oportunidade aparecesse.
Estadão Analisa
A aliança atlântica
O sonho ucraniano fazia sentido. A Europa Ocidental tinha feito um movimento similar 50 anos antes, quando terceirizou parte de sua segurança estratégica aos EUA, sob o guarda-chuva da Otan, em troca da instalação de bases e envio de tropas do Tio Sam para a Alemanha, a Itália e outros países. Sem se preocupar com defesa, diversos países europeus criaram um Estado de bem-estar social robusto. A vida era boa.
Com o fim da Guerra Fria e a evidente fragilidade da Rússia de Ieltsin, americanos e europeus optaram por expandir a Otan e a União Europeia para o leste. Somaram-se à aliança atlântica países da antiga cortina de ferro como a Polônia, a República Checa e a Hungria, ainda no governo de Bill Clinton, e a Romênia, a Bulgária e as repúblicas do Báltico em 2004, já no governo de George W. Bush.
Sò que no começo dos anos 2000, a Rússia já não era chefiada por um alcoólatra bonachão, mas por um ex-espião da KGB com um saudosismo incurável da revolução bolchevique. Em 2007, na conferência de Munique, Vladimir Putin foi claro: não expandam a Otan para o leste, ou haverá consequências.
Ou como se diz na gíria: “Não mexam nas minhas gavetas”.

A revolta de Vladimir
A partir desse alerta, Putin achou que era melhor trancar as gavetas dentro do armário e lançou operações militares em ex-repúblicas soviéticas, como a Geórgia, em 2008, e a Ucrânia em 2014. Sem um Exército capaz, sem armas nucleares de dissuasão, e sem o apoio militar do Ocidente via Otan, a Geórgia ofereceu pouca ou nenhuma resistência, e a Ucrânia viu a Rússia anexar a Crimeia com facilidade.
Em 2022, Putin resolveu dobrar a aposta com a invasão da Ucrânia, aproveitando-se da fraqueza política da Europa e da conturbada transição de poder nos EUA. Mas desta vez, o Ocidente reagiu. Armou Volodmir Zelenski até os dentes para conter a ameaça russa. No primeiro ano da guerra, deu certo. Kiev não caiu, a Otan se expandiu para a Escandinávia e os russos foram contidos.
Mas a verdade é que, não importa quantos sistemas de defesa antiaérea, drones e caças Zelenski ganhe da Otan, a supremacia militar russa é maior que a da Ucrânia. Desde a contraofensiva de 2022, o melhor que Kiev tem conseguido no campo de batalha foi segurar os russos numa guerra de atrito que se assemelha mais a um empate que uma vitória para qualquer lado.
Por outro lado, o tempo jogou a favor de Putin. No último ano, a suspensão do envio de gás russo barato para a Europa, sobretudo na Alemanha, cobrou um alto preço econômico em Berlim. O motor da Europa engasgou, a crise veio com força e as urnas responderam punindo o governo do chanceler Olaf Schölz.
Nos Estados Unidos, o discurso republicano de que o governo democrata despejava bilhões inúteis na Ucrânia enquanto os americanos sofriam com a inflação pós-pandemia também colou junto ao eleitorado e deu uma vitória incontestável a Donald Trump.
Em termos geopolíticos, isso quer dizer que a conta da manutenção da ordem mundial pós-2ª Guerra ficou mais cara para o eleitor dos dois lados do Atlântico. Sem os empregos industriais que foram embora com a globalização, e impactados pela crise de 2008 e a pandemia, os trabalhadores brancos de baixo nível de qualificação se tornaram alvo fácil para discursos populistas dos dois lados do Atlântico.
É um fenômeno que foi observado nos EUA, com o movimento MAGA, e no Reino Unido, com o brexit, ainda em meados da década passada.
Mais recentemente, o mesmo aconteceu na Alemanha, com a ascensão da AfD, na França, com a ultradireita de Madame Le Pen, e na Itália, com os herdeiros do Movimento Social Italiano, hoje liderados por Giorgia Meloni.
Trump contra-ataca
É nesse contexto, que Trump retorna triunfante a Washington com uma agenda mais ampla, mais radical e mais personalista que, não parece, mas tem objetivos claros.
Em pouco mais de um mês no cargo, o magnata republicano, que nunca foi um fã da Otan, resolveu apoiar abertamente Putin e o Kremlin, dar uma banana para os europeus, e deixar a Ucrânia à própria sorte, sem antes fazer uma oferta que Zelenski não poderia recusar por seus minerais de terras raras em troca da ajuda militar que já foi enviada por Washington.
A rapidez com que Trump rifou os europeus e os recentes avanços da ultradireita pró-Putin na Alemanha, na França e no Reino Unido fez o alerta soar nas principais capitais europeias.
As liderança europeias entendem que por trás de toda aparente pirotecnia no que Trump diz, há uma lógica. Entre as ameaças estapafúrdias de anexar a Groenlândia, tomar o Canal do Panamá, ou transformar Gaza numa Las Vegas Mediterrânea, o presidente americano trabalha com o conceito da mercantilização das relações internacionais: para ele, o mundo é uma grande balança comercial onde os Estados Unidos precisam ganhar mais dinheiro do que gastam.
Ele acredita que uma diplomacia bem feita é aquela na qual os gastos com coisas supostamente supérfluas, como a USAID, por exemplo, são limados e ideias lucrativas como a Trump Tower Gaza ou a exploração dos minerais críticos da Ucrânia são privilegiadas, sejam elas factíveis ou não.

O estorvo europeu
Neste contexto, para Trump, a Otan é um estorvo, independentemente dos acordos em vigor há 80 anos ou da importância de manter potências rivais como a Rússia na linha. Na visão dele, a Europa paga pouco por sua defesa e os EUA não precisam da Otan para se defender por estarem protegidos pelo seu vasto arsenal militar e pelo Oceano Atlântico.
Na mesma velocidade com que Trump rifou a aliança atlântica ao sentar-se com Putin e dar-lhe cobertura diplomática na ONU, os europeus entraram no modo de gestão de crise. De um lado, Emmanuel Macron e Keir Starmer tentam convencer o magnata de que a Europa pode assumir mais tarefas na gestão do conflito ucraniano, inclusive com o envio de tropas de paz, do outro, o futuro chanceler alemão Friedrich Merz reconhece que as coisas estão mudando.
“Nunca pensei que teria que dizer algo assim em um programa de TV, mas, depois dos comentários de Donald Trump na semana passada... está claro que esse governo não se importa muito com o destino da Europa”, disse ele pouco depois de sua vitória eleitoral no domingo. “Minha prioridade absoluta será fortalecer a Europa o mais rápido possível para que, passo a passo, possamos realmente alcançar a independência dos EUA.”
Não é pouca coisa. Desde a derrota do nazismo, a Alemanha abriga o maior número de tropas americanas na Europa — cerca de 35 mil homens. Mais do que isso, a base de Büchel abriga 20 bombas atômicas americanas em solo alemão como elemento de dissuasão. No total, os EUA têm na Europa, cerca de 64 mil soldados em bases na Alemanha, Itália, Bélgica e no Mar Negro (Romênia e Bulgária), além de 100 dispositivos nucleares. Tanto a força militar quanto o arsenal atômico servem como proteção perante a Rússia.
A conta que Merz, Macron e Starmer estão fazendo é a seguinte: cada vez mais, Trump dá sinais de que considera esse investimento na Defesa da Europa um gasto inútil. Logo, é preciso fazer algo. A França, por exemplo, já há alguns anos, advoga pela criação de um Exército europeu.
Desde a invasão da Ucrânia, diversos países europeus reviram suas estratégias de Defesa e ampliaram gastos militares. Os alemães, por exemplo, gastaram mais de 100 bilhões de euros em Defesa e atingiram a meta de 2% de gasto estipulada pela Otan.
O investimento é ainda maior em países que estão historicamente na mira da Rússia, como é o caso da Polônia e das repúblicas do Báltico, que gastam mais de 3% do PIB com armas.
Agora, a cúpula europeia sabe que é preciso fazer mais.

Riscos nucleares
Se Trump cair fora da defesa da Europa, a chamada dissuasão nuclear contra Putin recairá nas mãos de franceses e britânicos. A Alemanha, por tratados e por princípios não desenvolve armas nucleares e outros países não têm recursos ou a disponibilidade política e diplomática para arriscar uma proliferação nuclear.
A invasão da Ucrânia, no entanto, mostra que é um erro abrir mão desse tipo de dissuasão, sobretudo em um mundo que adentra uma nova ordem mundial.
Se Zelenski conseguisse derrotar Putin, a lição que teríamos é que as forças convencionais de um país conseguem se defender de uma nação agressiva, mesmo quando o rival tem armas nucleares. Logo, a necessidade de dissuasão seria menor.
Mas não é o que está acontecendo. No momento, a Ucrânia marcha rumo ao fracasso, sem recursos e sem aliados suficientes para se defender.
A este cenário, soma-se um fator de imprevisibilidade. A diplomacia mercantil de Trump está disposta a rasgar tratados de defesa mútua sem muita cerimônia. Uma vez que a regra do jogo é essa, o que impede países como a Polônia, por exemplo, da dar as costas a pactos de não-proliferação nuclear?