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Opinião | Como a Venezuela de Chávez e Maduro inspira os candidatos a ditadores do século 21

Modelo que mistura clientelismo, repressão e enfraquecimento do Legislativo e Judiciário encontra similaridades na Hungria, Nicarágua e El Salvador

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Foto do author Luiz Raatz

Pode não parecer nos dias de hoje, mas a Venezuela já foi um exemplo de democracia para a América do Sul. Nos anos 60 e 70, quando ditaduras militares assolavam países como Argentina, Paraguai, Uruguai e Brasil, Caracas era uma ilha de estabilidade institucional e atraía muitos imigrantes que fugiam da repressão, principalmente de Augusto Pinochet, no Chile. Desde o fim da ditadura Marcos Pérez Jimenez, em 1958, até a ascensão do chavismo, em 1998, partidos de centro-esquerda, centro e centro-direita signatários se alternavam no poder e a exploração do petróleo permitiu que o país alcançasse um crescimento econômico elevado, mas desigual.

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Hoje, a Venezuela ainda é um exemplo, mas de autoritarismo. O modelo desenvolvido por Hugo Chávez e Nicolás Maduro, que mistura clientelismo, repressão, expansão dos poderes do Executivo, corrupção e cooptação da mídia e dos militares encontra outros exemplos, sobretudo na Hungria de Viktor Orbán, na El Salvador de Nayyb Bukele, além de, claro, dos governos bolivarianos que fizeram sucesso na Nicarágua, Bolívia e Equador.

O tenente-coronel Hugo Chávez chega ao poder nos estertores do século 20 com uma proposta radical. A chamada Quarta República Venezuelana, marcada pelo pacto de Punto Fijo entre os partidos do establishment político (Ação Democrática, Copei e URD), havia fracassado, sobretudo em razão dos altos níveis de pobreza e a má distribuição de renda, dizia ele. Era necessário refundar a república venezuelana, com uma nova Constituição, e, para geri-la, o país devia adotar o chamado socialismo do século 21.

Mais de 25 anos depois da vitória de Chávez, o socialismo do século 21 se transformou no autoritarismo do século 21. Neste quarto de século, o chavismo como movimento político implementou uma série de deformações na democracia venezuelana, ao ponto de desfigurá-la para a transformar numa ditadura.

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Um autoritarismo gradual

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva costumava dizer que o problema da Venezuela era o excesso de democracia, em referência a grande quantidade de eleições, referendos e plebiscitos organizados pelo chavismo, sobretudo quando Chávez era vivo. De fato, entre 1999 e 2012, o país realizou 14 votações. O governo só perdeu uma, que foi refeita dois anos depois, quando Chávez saiu vencedor.

O problema é que a grande lição de Chávez a seus discípulos dentro e fora da Venezuela é que é possível corroer uma democracia por dentro sem abolir o direito a voto. O truque chavista sempre foi fazer de tudo para manter a popularidade custe o que custar. E quando isso já não for mais possível apelar para manobras judiciais com o auxílio de juízes e promotores amigos.

A transformação da Venezuela em um regime autoritário foi gradual e se desenrolou em diversos eixos: econômico, político, judicial, comunicacional e militar.

Motociclista passa por mural com foto do presidente venezuelano Nicolás Maduro. Ele concorre, no domingo, ao seu terceiro mandato, que o projetaria a 18 anos no poder. Foto: Federico Parra/AFP

“O processo de controle institucional do chavismo foi lento, não foi imediato. Porque Chávez ganhou as eleições, mas não controlava as instituições judiciais, parlamentares nem a imprensa”, explica o cientista político Luis Vicente León, do Instituto Datanálisis. “Quando Chávez propõe a Constituinte, pressionando o Supremo, ele passa por cima dessas instituições, aproveita a maioria popular que tinha e coloniza as instituições de uma maneira muito diferente das ditaduras clássicas: com o poder de sua popularidade. E aí sim ele começa a tomar as instituições uma a uma.”

Dinheiro e popularidade

Em sua primeira década no poder, Chávez usufruiu da grande alta do petróleo pós-11 de setembro, quando o combustível praticamente dobrou de preço, para injetar recursos diretamente na população mais pobre do país, além de criar programas sociais que reduziram a pobreza a níveis históricos. Isso lhe garantiu níveis de aprovação astronômico e uma força eleitoral quase imbatível.

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“No começo Chávez não precisava das instituições que colonizou para fraudar nada porque ele era muito popular. E, sabendo disso, ele manteve esse controle quando teve a oportunidade porque o futuro poderia ser diferente. Como de fato foi”, acrescenta León.

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O modelo chavista, que privilegiava a distribuição de recursos e serviços em detrimento de um investimento na infraestrutura produtiva de um país que quase sempre dependeu de exportações chegou a um teto após a primeira década de Chávez no poder.

O primeiro sinal de que a satisfação popular com o chavismo não ia bem veio no referendo de 2007. Chávez tinha sido eleito em 1998 para um mandato de cinco anos. A Constituinte de 1999, que fazia parte do plano de governo chavista, estabeleceu uma nova eleição, que seria organizada no ano 2000, para um mandato de seis anos, com direito a apenas uma reeleição. Chávez se candidatou de novo e venceu, com 60% dos votos.

Em 2004, ele venceu um referendo revogatório que poderia lhe tirar do poder com 60% dos votos, e dois anos depois, seria reeleito para um segundo mandato com 62%. Pouco depois desta última vitória, o bolivariano argumentou que precisaria de mais tempo para implementar o socialismo do século 21, e propôs um referendo para emendar a Constituição e permitir a reeleição indefinida. E perdeu, com o não vencendo por 50,7% dos votos. Chávez insistiria dois anos depois, e um novo referendo aboliu os limites de mandato, com o apoio de 55% dos votos.

Apoiador de Nicolás Maduro segura cartaz com foto de Hugo Chávez. o Chavismo implementou uma série de deformações na democracia venezuelana, ao ponto de desfigurá-la para a transformar numa ditadura. Foto: Ronald Peña/AFP

Mudanças nas regras

Mas o caudilho não iria correr novamente o risco. Em 2010, nas eleições legislativas, a oposição, que havia boicotado a votação para o Parlamento anterior, em 2005, se uniu, e ameaçou a hegemonia parlamentar chavista. A resposta do governo foi redesenhar os distritos legislativos, numa tática similar ao “gerrymandering” adotado nos EUA, que acabou impedindo a perda da maioria.

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Em paralelo, ao longo dos anos, Chávez usou a maioria legislativa total que dispunha graças aos boicotes eleitorais da oposição para nomear juízes e procuradores leais a seu projeto de poder. Ao sobreviver a um golpe em 2002, também realizou expurgos nas Forças Armadas e nas principais empresas do governo, especialmente a estatal do Petróleo, a PDVSA.

Com isso, ficou mais fácil alterar o calendário eleitoral conforme fosse politicamente conveniente e seduzir generais e coronéis com cargos e influência política e econômica. A oposição foi ficando cada vez mais estrangulada.

Em 2012, quando descobriu o câncer que o mataria, Chávez antecipou a eleição de dezembro para outubro, possivelmente temendo que seu estado de saúde não o deixasse esperar (ele acabaria morrendo em março). O bolivariano também gastou os tubos para se reeleger, ampliando benefícios sociais e o clientelismo com a população mais pobre.

As eleições de 2012 foram muito disputadas. O câncer de Chávez comoveu sua base eleitoral. Do lado opositor, Henrique Capriles, um candidato de centro, soube explorar melhor que seus antecessores as falhas chavistas no gerenciamento do país. Chávez perdeu parte do apoio histórico que sempre teve, mas ainda assim venceu, com 55% dos votos.

Cada vez mais debilitado pelo câncer, Chávez teve de escolher um sucessor. (A contragosto, diga-se, porque o coronel não gostava de concorrência). Era seu chanceler, Nicolás Maduro. Não deixa de ser irônico olhar para aquela época em que Maduro era visto como um moderado dentro do chavismo. A distância histórica mostra o quanto analistas e observadores do cenário político venezuelano estavam equivocados.

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A pior crise da história

Chávez morreu em março de 2013. Novas eleições foram convocadas para abril. Quase não houve campanha. Maduro se apresentou como candidato pelo governo e Capriles, pela oposição. A vitória chavista veio por pouco: 50,61% a 49,12%. O que se viu em seguida foram violentos protestos contra o resultado da eleição, que deixaram 13 mortos. Centros de monitoramento eleitoral, como o Centro Carter, denunciaram práticas de intimidação por grupos chavistas armados.

Maduro herdou um país com uma grave crise de conta corrente. Para se reeleger, Chávez praticamente acabara com as reservas em moeda forte do país. Com a PDVSA loteada politicamente, a empresa perdeu produtividade e a indústria local do petróleo entrou numa espiral de crise.

Para conter a sangria, Maduro conteve as importações em dólar, o que provocou uma alta dos preços, já que a maioria dos bens de primeira necessidade vinha de fora. Para financiar a dívida pública, imprimia-se dinheiro. O estado de negação com a ‘guerra econômica era tal’ que os índices inflacionários deixaram de ser publicados e praticamente nenhuma medida macroeconômica foi tomada.

O resultado da recusa chavista em lidar com a questão provocou uma das crises econômicas e migratórias mais graves da América do Sul. A ONU estima que 5,4 milhões de pessoas deixaram o país, mas ONGs venezuelanas dizem que esse número pode chegar a 7 milhões. A população do país em 2016 era de 30 milhões de pessoas.

A crise de escassez era tão grave que faltava de tudo. Papel higiênico, carne, manteiga, óleo de cozinha, remédios e até sabonete. Com a piora da crise, passou a faltar remédios, camisinhas, reativos para exames, peças de maquinário. Com isso, a economia e os serviços sociais entraram em colapso.

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Maduro e o endurecimento do regime

Nesse cenário, a popularidade de Maduro desabou. Para manter-se no poder, o antigo diplomata converteu-se num autocrata. Fraudou eleições. Ordenou a repressão a protestos. Prendeu opositores políticos. Cancelou candidaturas de opositores. Comprou meios de comunicação críticos e os repassou a aliados. Cedeu parte da economia e da gestão do governo a militares.

Em 2015, a oposição venceu as eleições para o Parlamento. Com a ajuda de juízes simpáticos ao regime, o chavismo conseguiu anular a eleição de três deputados, o que impediu que a coalizão antichavista virasse maioria. Posteriormente, a Suprema Corte anulou todas as decisões do Parlamento.

Em 2014 e 2017, milhares de anti-chavistas foram às ruas para protestar e foram duramente reprimidos. No total, mais de 200 pessoas morreram e centenas foram presas.

A tática desmobilizou a oposição, que boicotou a eleição de 2018, quando Maduro se reelegeu. Em 2019, com o apoio dos EUA e de outros países sul-americanos, os opositores nomearam Juan Guaidó como ‘presidente interino’, em uma tentativa de angariar apoio mundial. Maduro foi submetido a sanções e denúncias do Departamento de Justiça americano da Casa Branca de Donald Trump. Nada adiantou.

Os exemplos de Chávez e Maduro, no entanto, inspiraram. Orbán, na Hungria, por exemplo, também nomeou juízes amigos e aumentou os gastos sociais com a população mais pobre. Bukele, em El Salvador, mudou a lei para se reeleger indefinidamente. O esquerdista Daniel Ortega, na Nicarágua, prende opositores e mata manifestantes. E até mesmo o republicano Donald Trump promete substituir a competente burocracia estatal americana por gente leal a ele, caso retorne a Casa Branca em 2025, e perseguir rivais políticos.

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Mesmo que Maduro aceite algum tipo de acordo e saia de cena com as eleições de domingo, o que, no momento é improvável, a herança chavista ainda perdurará por um longo tempo.

Opinião por Luiz Raatz

É jornalista formado pela PUC-SP. Subeditor de internacional do Estadão, tem 20 anos de experiência em coberturas na América Latina e Oriente Médio.

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