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Opinião | Inferno astral de Biden e Macron pode se tornar o cenário dos sonhos de Vladimir Putin

Vitória de Trump em novembro e fortalecimento da direita radical na França são ótimas notícias para o Kremlin

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Foto do author Luiz Raatz

Foi uma semana de ótimas notícias para o Kremlin. Na quinta-feira, 27, o presidente americano Joe Biden teve seu momento Richard Nixon no debate contra Donald Trump e o desempenho desastroso provocou uma série de dúvidas sobre a viabilidade de sua candidatura.

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No domingo, o partido da direita radical francesa Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, foi o mais votado no primeiro turno das eleições legislativas. E, de quebra, Nigel Farage roubou parte do eleitorado do Partido Conservador nas eleições desta quarta-feira, 27, no Reino Unido.

Essa sequência de eventos deixou Vladimir Putin esfregando as mãos. Biden e Macron são os maiores responsáveis pelo fortalecimento e a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) desde a invasão da Ucrânia. Ao mesmo tempo, Trump, Le Pen e Farage são três dos principais aliados do líder russo no Ocidente. O prejuízo de uns é o lucro de outros.

Marine Le Pen e Vladimir Putin durante encontro no Kremlin em 2017 Foto: Mikhail Klimentyev/AP

Putin x EUA e UE

A Rússia de Putin representa a principal ameaça ao projeto de integração europeia, criado nos escombros da 2ª Guerra e responsável por décadas de paz no continente. Desde os protestos na Ucrânia de 2014, que levaram à queda do governo pró-Rússia de Viktor Yanukovich, o líder russo trabalha em uma ofensiva contra o modelo criado por americanos e europeus.

No Brexit e na eleição de Trump, ambas em 2016, o Kremlin usou as redes sociais para disseminar notícias falsas e ampliar as divisões sociais e políticas tanto nos EUA quanto no Reino Unido, como mostrou o escândalo da Cambridge Analytica. Na véspera da eleição francesa de 2017, Le Pen (pronuncia-se Le Pen mesmo, e não ‘Le Pã’) foi a Moscou e se reuniu com Putin. O encontro foi mais um capítulo de uma série de troca de elogios que vinham desde 2011, e incluíram a defesa da anexação da Crimeia, em 2014.

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Nos últimos anos, em algumas ocasiões tacitamente e outras nem tanto, o Kremlin tem apoiado a agenda anti-imigração, xenófoba e antieuropeia de partidos como o Reagrupamento Nacional, na França, o Partido Reformista Britânico no Reino Unido, o Alternativa para a Alemanha e legendas radicais de outros países menores, como a Hungria de Viktor Orbán e a Holanda de Geert Wilders.

Trump, antes, durante e depois da presidência, deu uma série de declarações simpáticas a Putin e no debate de quinta-feira chegou a dizer que ele se sentiu ‘livre’ para invadir a Ucrânia depois da desastrosa retirada americana do Afeganistão. “Ele me disse que (a invasão da Ucrânia) era o grande sonho dele”, afirmou.

Se sonho ou não, com a invasão da Ucrânia Putin optou por uma guerra em larga escala para desafiar a expansão da União Europeia e da Otan para as repúblicas da antiga União Soviética. Deu errado.

Pouco depois da invasão, a Europa se deu conta do tamanho perigo que representava um conflito desse tamanho em sua fronteira leste. França e Alemanha reviram suas doutrinas militares para se antecipar a uma possível ameaça russa. Além disso, os gastos militares no continente dispararam. Por fim, a Otan se expandiu e chegou à fronteira norte da Rússia, com a adesão de Finlândia e Suécia.

Biden e Macron são os principais responsáveis, juntos do chanceler alemão Olaf Scholz, por essa expansão do plano de segurança europeu. Biden advogou desde o início do mandato pelo fortalecimento da Otan. Macron, há tempos, vem batendo na tecla da necessidade de criação de um Exército europeu.

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Ambos fizeram muito na contenção da ameaça que Putin representa, mas também erraram rotundamente em seus cálculos políticos internos.

Biden, por exemplo, subestimou o impacto que o relaxamento das regras migratórias de Trump teria eleitoralmente nos Estados Unidos. A alta de preços provocada pelos gargalos de infraestrutura do pós-pandemia também contribuiu para derrubar sua popularidade, ainda que a economia americana esteja crescendo e gerando empregos.

Além disso, mesmo depois de ter prometido que seria um ‘presidente de transição’, insistiu aos 81 anos tentar a reeleição, o que alienou alguns eleitores que ansiavam por uma renovação na política americana.

Macron apostou numa reforma da previdência que era necessária para equilibrar as contas do Estado francês, mas, sem votos suficientes para aprová-la, acabou dando um jeito de forçá-la goela abaixo do Legislativo. Mais recentemente, dobrou a aposta contra a direita radical ao antecipar as eleições ao Parlamento.

Trump e Biden no debate da CNN na semana passada Foto: Gerald Herbert/AP

O sonho de Putin

O nacionalismo populista de Trump e Le Pen é uma ameaça à democracia liberal. Como notou Gideon Rachman, no Financial Times, a divisão que reinou no século 20 entre esquerda e direita foi substituída no século 21 por outra, entre o populismo nacionalista e o liberalismo internacionalista.

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Nesse cenário, Putin corteja todos que têm a pretensão de desmontar a ordem liberal pós 2ª Guerra que ele tanto odeia e trabalha contra aqueles que tentam salvá-la.

A volta de Trump à Casa Branca significaria o fim da candidatura da Ucrânia à Otan e aumentaria as chances de um acordo para o fim da guerra no qual a Rússia manteria o território já anexado.

Na quarta-feira, Le Pen a ganhou o apoio tácito do Ministério de Relações Exteriores da Rússia. “O povo da França está buscando uma política externa soberana que atenda aos seus interesses nacionais e uma ruptura com os ditames de Washington e Bruxelas”, disse o porta-voz da chancelaria Andrei Nastasin.

Le Pen negou o apoio e disse ao Le Figaro que os russos estavam se intrometendo na campanha francesa. Desde sua última derrota eleitoral ela vem tentado publicamente se mostrar mais moderada. Na reta final da campanha, no entanto, provocou polêmica ao dizer que, se chegar à chefia de governo, o RN poderia decidir sobre a estratégia militar francesa, o que, em tese engloba o apoio à Ucrânia.

Na França, o primeiro-ministro toca a agenda doméstica e o presidente cuida de questões de defesa e diplomacia. Se Le Pen conseguir viabilizar uma vitória presidencial em 2027 e mantiver a proximidade com Moscou, a aliança franco-germânica que estabiliza a Europa há 80 anos também sairia chamuscada.

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É tudo que Putin mais sonha.

Caberá aos eleitores franceses e americanos escolherem qual caminho seguir. Os britânicos, hoje, foram claros: as consequências do Brexit mostram que a rota apoiada pelos russos foi um equívoco e uma ameaça ao establishment liberal.

Opinião por Luiz Raatz

É jornalista formado pela PUC-SP. Subeditor de internacional do Estadão, tem 20 anos de experiência em coberturas na América Latina, Estados Unidos e Oriente Médio.

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