ENVIADO ESPECIAL A WASHINGTON — O estrategista democrata James Carville ganhou fama de guru político em 1992 ao liderar a campanha de Bill Clinton à Casa Branca com um lema e uma estratégia bastante simples. À época, George Bush (o pai) era presidente dos Estados Unidos e tinha um respeitável currículo em política exterior: liderou o país no fim da Guerra Fria, após a queda do Muro de Berlim e o fim da URSS e derrotou o Iraque na Guerra do Golfo.
Mas àquela altura, os EUA se recuperavam de uma pequena recessão e Carville soube captar a insatisfação do eleitorado com o lema “é a economia, estúpido”.
A história é bastante conhecida e a estratégia de Carville funciona na maioria das eleições. Afinal, o bolso dita o voto em condições normais de temperatura e pressão. Nos Estados Unidos, foi assim em 84, quando Reagan se reelegeu em meio ao escândalo Irã-Contras e em 96, quando Clinton obteve um segundo mandato graças ao bom momento econômico do país e nas três reeleições de Franklin Delano Roosevelt, após a Grande Depressão.
Mas e quando a situação não é normal?
Em 1968, no auge da era de ouro do capitalismo americano, Lyndon Johnson teve de desistir da reeleição por conta do atoleiro em que se meteu no Vietnã. Richard Nixon foi eleito. Em 2020, o gerenciamento desastroso da pandemia de covid-19, com um milhão de mortos e um em cada três americanos contaminados pela doença, custou a Donald Trump sua reeleição.
Nas eleições desta terça-feira, 5, a economia, mais uma vez, parece ser o tema central da eleição. Não que os dados macroeconômicos estejam ruins, como a recessão de Bush pai anos anos 90. Não estão. O desemprego está baixo, a inflação, controlada, e há uma tendência de melhora nos próximos anos.
Mas a perda do poder de compra da população, cuja a renda não cresceu o suficiente para superar as perdas inflacionárias, e a falta de vagas com bons salários no setor de manufatura provocam ansiedade na classe média americana.
Com essa sensação de mal estar econômico — aliás, que de certa maneira lembra 92, quando a economia não estava tão ruim, mas as pessoas se sentiam desamparadas —, é natural que o partido no poder seja punido nas urnas.
Nenhum partido conseguiu vencer uma eleição presidencial quando o presidente no poder estava como uma popularidade tão baixa quanto a de Biden, atualmente na casa dos 38%. Logo, uma vitória de Trump hoje seria esperada.
Mas há sinais de que a candidatura de Kamala Harris pode vencer. E esses sinais não têm a ver com a economia — tema no qual ela tem dificuldades em se distanciar da agenda de Biden e propõe soluções controvertidas, como controle de preços —, mas com a legalização do aborto.
Desde que em 2021 a Suprema Corte derrubou a jurisprudência que garantia a nível federal a legalidade da interrupção da gravidez nos EUA, o tema tem mobilizado cada vez mais o eleitorado feminino, especialmente, mas não só, as mulheres democratas. Foi assim nas eleições de meio de mandato, quando o partido conseguiu manter o controle do Senado e diminuiu a ampla derrota que se esperava para os republicanos na Câmara.
Na campanha presidencial, sobretudo na última semana, uma combinação de erros de Trump e o foco dos democratas na questão do aborto parece ter colocado Kamala de novo no páreo. Uma pesquisa do diário Des Moines Register soou o alerta no sábado, ao apontar Kamala três pontos à frente de Trump em Iowa, um Estado que parecia solidamente republicano e não vota nos democratas há 12 anos em uma eleição presidencial.
A vantagem na pesquisa se deve ao eleitorado feminino, sobretudo às mulheres com mais de 65 anos, que viveram a época anterior à jurisprudência Roe x Wade, de 1973. Tendências similares foram observadas, em menor escala, em outros Estados republicanos, como Ohio e Kansas.
Desde 2021, regras mais duras contra a interrupção da gravidez foram implementadas em Estados como Iowa, Texas, Missouri e outros. Há relatos, no Texas, por exemplo, de abortos negados mesmo em casos em que a vida da mãe está em perigo, como numa gestaçãoo ectópica.
O aborto também é uma questão crucial para mobilizar o eleitorado feminino os Estado-pêndulo, como a Pensilvânia, como mostra esta reportagem do Estadão.
Na reta final da campanha, declarações de Donald Trump sobre as mulheres também jogaram luz sobre seu histórico de denúncias de abuso sexual. Trump, que depois da queda da legalização federal do aborto se gabou de ter indicado três juízes conservadores à Suprema Corte que votaram contra Roe x Wade, disse que “vai proteger as mulheres, quer elas queiram ou não”.
Diante disso, os estrategistas de Kamala apostaram contra o slogan de Carville.
Sai o “é economia, estúpido” e entra o “nós não vamos retroceder”.
Teremos a resposta em breve se essa nova máxima irá funcionar.
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