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Análise | Expansão ilusória do Brics esbarra em rivalidades regionais e hegemonia do dólar

Líder russo quer se apresentar como o campeão do Sul Global na disputa geopolítica com o Ocidente, mas não tem força política para unificar interesses distintos e nem musculatura econômica para desafiar a moeda americana

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Atualização:

Vladimir Putin, de bobo, não tem nada.

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A reunião do Brics nesta semana em Kazan, na Rússia, foi montada na medida para ele fazer o que sempre faz: Mostrar uma força maior do que a que de fato o líder russo tem.

A expansão do bloco no ano passado, bem como a anunciada neste ano, tem dois objetivos principais. O primeiro deles é mostrar que a Rússia não está isolada no cenário global em meio à guerra contra a Ucrânia. O segundo é se apresentar como o campeão do Sul Global, na disputa geopolítica contra americanos e europeus, líderes da ordem mundial pós-2ª Guerra.

O primeiro objetivo foi cumprido. Putin conseguiu a foto ao lado de líderes importantes, como o indiano Narendra Modi e o chinês Xi Jinping. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva acabou escapando de uma saia justa, depois de ter cancelado a viagem, em razão de um acidente doméstico no Palácio da Alvorada.

Vladimir Putin e o secretário-geral da ONU, António Guterres Foto: Alexander Nemenov/AP

A segunda parte dos planos de Putin, no entanto, é bem mais difícil de se concretizar do que uma oportunidade de foto. Na cúpula de Kazan, Turquia, Indonésia, Argélia, Belarus, Cuba, Bolívia, Malásia, Uzbequistão, Cazaquistão, Tailândia, Vietnã, Nigéria e Uganda foram convidados a integrar o grupo como Estados parceiros.

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Em 2023, um ano depois da invasão da Ucrânia, a expansão do Brics já tinha levado ao grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul mais quatro países: Egito, Etiópia, Irã e Emirados Árabes Unidos. A Argentina, na ocasião, foi convidada e declinou. A Arábia Saudita deixou a entrada em suspenso.

Foi o cano dado por argentinos e sauditas que fizeram a organização da cúpula de Kazan pisar no freio antes de confirmar os novos membros do grupo. Agora, haverá um processo intermediário antes da inclusão dos novos países no fórum. O objetivo é evitar saias justas como as do ano passado, onde faltou combinar antes com Buenos Aires e Riad.

Na expansão deste ano, houve vetos. Os mais notórios foram os do Brasil à entrada da Venezuela e da Nicarágua, em consequência do recente distanciamento de Lula com os antigos companheiros Daniel Ortega e Nicolás Maduro.

Mas o cartão vermelho dado pelo Brasil aos bolivarianos não foi o único de Kazan. O Paquistão, o rival nuclear da Índia, também foi barrado. A própria hesitação saudita em aderir ao grupo se deve também à presença do Irã, que compete com o reino sunita por influência regional no Oriente Médio, e a recusa argentina se deve à antipatia ideológica do presidente Javier Milei pelo “globalismo” em geral, e por Lula em particular.

Ou seja: liderar o Sul Global não é tão simples assim. Fazer frente ao G-7, muito menos.

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Falta de peso político

Antes da cúpula de Kazan, o assessor de relações internacionais de Lula, Celso Amorim, disse ao Estadão que o Brics não é o ‘G-77′. “Há um excesso de nomes colocados à mesa. O Brics tem que conservar a sua essência de países expressivos e com influência nas relações internacionais. Não estou diminuindo os outros países [candidatos], mas para isso tem a ONU e o G-77″, em referência ao grupo de países em desenvolvimento criado em 1964 e reúne a maior parte do Sul Global.

De fato, o Brics original, ainda sem a África do Sul, continha países com características específicas: grandes territórios, populações significativas e economia industrializada em pleno desenvolvimento. Nada a ver, por exemplo, com a Bolívia, ou os Emirados Árabes.

A bem da verdade, mesmo dentro do próprio Brics, há dissensões. A Índia tem muito menos apetite estratégico de se indispor com os EUA. O mesmo acontece, ou melhor, deveria acontecer com o Brasil, dada a posição estratégica do País no combate à mudança climática e em seu papel como grande exportador de alimentos.

Alternativa ao controle financeiro americano?

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Durante a cúpula de Kazan, Putin defendeu a criação de um novo sistema de pagamentos global, alternativo ao Swift, o sistema de mensagens que sustenta as transações financeiras pelo mundo. Esse sistema, controlado em sua maior parte por bancos americanos e europeus, foi criado em 1975 para facilitar as transações comerciais globais, que se tornavam cada vez mais instantâneas por conta da terceira revolução industrial.

Com a invasão da Ucrânia, a Rússia foi expulsa da rede após a implementação de sanções dos EUA e da União Europeia.

O objetivo era danificar o comércio exterior russo, de onde Putin tira a maior parte de suas receitas em virtude da exportação de petróleo e gás. Deu certo, o volume de exportações russas para o exterior caiu 15,8% depois da invasão, ainda que Putin tenha conseguido substituir os clientes que tinha na UE por parceiros na Ásia, sobretudo na Índia e na China.

Falando nos chineses, outra demanda do Brics, a criação de moedas alternativas ao dólar nas transações internacionais, interessa ao maior aliado de Vladimir Putin, o presidente Xi Jinping.

Putin e o líder chinês, Xi Jinping, em Kazan Foto: Maxim Shipenkov/AP

O lastro do dólar

Desde que Richard Nixon deu uma banana para o Acordo de Bretton Woods, em 1971, e colocou fim ao padrão ouro-dólar, os Estados Unidos conquistaram uma vantagem significativa no comércio global. O dólar, desde então, não precisa estar mais lastreado ao ouro. Assim, a capacidade de o país se endividar por meio da emissão de moeda é quase infinita.

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Isso acontece porque o lastro do dólar está justamente no poder militar e financeiro da maior potência global.

Os chineses, por sinal, sabem que hegemonia militar e financeira andam juntas. O país caminha para se tornar a maior economia do mundo e, sob Xi, seus investimentos militares cresceram exponencialmente. Só que esse volume ainda é um terço do que gastam os EUA.

Por ora, o dólar ainda dita as regras. E não há nada que Putin possa fazer.

Análise por Luiz Raatz

É jornalista formado pela PUC-SP. Subeditor de internacional do Estadão, tem 20 anos de experiência em coberturas na América Latina, Estados Unidos e Oriente Médio.

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