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Análise | Como as guerras da Ucrânia e Gaza deixaram Assad sem o apoio dos aliados Rússia e Irã

Iranianos e russos perdem com queda do ditador sírio, mas vitória jihadista traz novos problemas em vez de soluções

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Foto do author Luiz Raatz
Atualização:

Vladimir Putin e Ali Khamenei eram os melhores amigos de Bashar Assad. Mas quando ficou claro em Teerã e Moscou que a queda do açougueiro de Damasco era uma questão de ‘quando’ e não ‘se’ os dois lhe viraram as costas rapidinho, para conter o tamanho do prejuízo que se avizinha para russos e iranianos.

Uma das principais bases navais russas em águas quentes não fica na Europa. Ela foi montada no porto de Tartus, na Síria, às margens do Mar Mediterrâneo. Os sírios ainda abrigam a base aérea russa de Latakia, também no litoral.

Desde a União Soviética, a aliança entre russos e sírios possibilitou ao Kremlin uma ponta de lança militar no Oriente Médio crucial para suas pretensões geopolíticas. Tartus e Latakia dão aos russos um ponto de apoio estratégico, perto tanto do Cáucaso quanto do Mar Negro.

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Desde a derrota de Saddam Hussein e o acirramento das tensões com americanos e israelenses, em meados dos anos 2000, os iranianos ampliaram sua aliança com a ditadura da família Assad, estreitando um relacionamento que cultivaram com o patriarca do regime, Hafez, ainda nos anos 80.

Essa relação próxima, aliada à queda de Saddam, possibilitou aos iranianos construir o chamado Eixo da Resistência, uma reunião de grupos e regimes inspirados e financiados pela revolução xiita, que se estendia do Irã ao Líbano, passando pelo Iraque e a Síria.

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Assad só não caiu antes, durante o auge da guerra civil, porque Moscou e Teerã bancaram a resistência aos rebeldes sunitas que tentavam há 13 anos derrubá-lo. Enquanto a Guarda Revolucionária Iraniana mandava consultores e homens de elite para lutar contra os rebeldes, Putin testava seus caças Sukhoi e os mísseis balísticos que um dia usaria na Ucrânia para defender o ditador.

Deu certo por um bom tempo, até que o Irã e a Rússia decidiram provocar as duas piores guerras da atualidade, em Gaza e na Ucrânia.

Putin comprometeu todo seu potencial econômico e bélico com o conflito na Ucrânia. Em dois anos, conseguiu ocupar o Donbas, a área oriental da Ucrânia de minoria russa. Mas a guerra de atrito é lenta e qualquer ganho é obtido a duras penas. Moscou não teria como despender recursos para ajudar Assad e não moveu um dedo para ajudar o aliado.

A rapidez com que Putin desistiu de respaldar o parceiro é um indicativo de que a guerra na Ucrânia consome mais recursos do Exército russo do que uma observação menos acurada poderia indicar. Em outras palavras, o Kremlin tem conseguido pequenos avanços na Ucrânia, mas o custo disso é cada vez maior.

Foto de Bashar Assad é pisoteada durante um protesto em frente ao consulado sírio em Istambul.  Foto: Kemal Aslan/AFP

Já o Irã financiou o ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro do ano passado, além dar apoio logístico, militar e financeiro ao Hezbollah e outros grupos. A resposta israelense não só desmontou o Hamas como aniquilou o Hezbollah e atingiu com mísseis alvos da Guarda Revolucionária e do programa de mísseis balísticos iranianos.

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Resumindo, russos e iranianos perdem um aliado importante num momento em que estão fragilizados e comprometidos com conflitos que lhes drenam recursos cruciais, com ambos regimes submetidos a sanções ocidentais. Por isso, Putin e Khamenei preferiram perder os anéis aos dedos e se retiraram da Síria.

A questão agora é saber como o Hayat Tahrir al-Sham, que nada mais é que uma nova versão da Frente Al-Nusra, uma dissidência da Al-Qaeda, vai liderar a transição na Síria.

Jihadistas sunitas, eles desprezam tanto o secularismo que Assad representa, e que ajudou a forjar a aliança do seu partido Baath com os soviéticos lá atrás, quanto o xiismo dos aiatolás iranianos. As portas de Latakia e Tartus podem se fechar para o Kremlin e tudo indica que a Guarda Revolucionária já não terá mais passe livre na Síria.

Com isso, Putin perderá um ativo importante no Mediterrâneo, e o Eixo da Resistência, que já estava enfraquecido pelas vitórias de Israel contra o Hamas e o Hezbollah, se vê sem mais um ponto de sustentação.

No cenário regional, quem mais ganha com isso são os sauditas. O Irã está enfraquecido e há um grupo radical sunita do outro lado das colinas do Golan que pode fazer pressão contra Israel.

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A nível global, o aumento da instabilidade no Oriente Médio não é bom para ninguém. O governo Biden foi pego de surpresa pelo avanço do HTS na Síria, e no clima de fim de feira em que se encontra não fez muito além de dizer que monitora a situação. O problema é que Assad detinha um considerável arsenal de armas químicas, que pode cair em mãos jihadistas.

Outro problema considerável pode surgir se a vitória rebelde na Síria inspirar ou reviver outros grupos radicais. Depois de 20 anos com o Ocidente lidando com a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, o risco de um novo Estado inspirado na sharia numa região tão estratégica pode trazer antigos pesadelos à tona.

Donald Trump já se apressou a dizer que a luta na Síria não diz respeito aos americanos. Mas ele pode estar terrivelmente enganado.

Análise por Luiz Raatz

É jornalista formado pela PUC-SP. Subeditor de internacional do Estadão, tem 20 anos de experiência em coberturas na América Latina, Estados Unidos e Oriente Médio.

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