Dentre os latinos que apoiaram Donald Trump na eleição do ano passado, os venezuelanos estão entre os mais fervorosos. Dos quase 8 milhões que fugiram do chavismo nos últimos dez anos, cerca de 10% deles vivem nos Estados Unidos. Com ou sem direito a voto, pelo histórico traumático com os desmandos do socialismo do século 21, a maioria tem horror ao Partido Democrata e qualquer coisa que minimamente remonte à esquerda.
Com menos de um mês de governo republicano, os venezuelanos receberam um belo cartão de visitas de Trump. No começo do mês, a secretária do Interior, Kristi Noem, revogou o status de proteção temporária concedido aos venezuelanos que fugiam da ditadura de Nicolás Maduro. Da noite para o dia, 300 mil venezuelanos tornaram-se imigrantes ilegais.
Em paralelo, a decisão de Trump de extinguir a agência humanitária de ajuda americana, a USAID, deu um duro golpe à oposição venezuelana ao regime chavista. A verba de US$ 211 milhões anuais destinada a esses grupos provavelmente será extinta, e, com isso, a mobilização antichavista deve perder até 75% de seu financiamento.
Sem esse dinheiro, por exemplo, a estrutura montada por María Corina Machado para comprovar a fraude eleitoral do ano passado em Caracas, que monitorou colégios eleitorais e atestou por meio das atas de urna a vitória de Edmundo González, seria impossível.
Como se não bastasse, o governo Trump sentou com a ditadura e negociou a retomada dos voos de deportados dos EUA para a Venezuela, com direito à uma exceção de sanções concedida à estatal aérea Conviasa. Com isso, os aviões do regime pousaram em solo americano para repatriar os asilados.

Parceria autoritária
Não é de hoje que Trump afaga ditadores. Sua simpatia por autocratas vem de longa data, como atestam suas cartas trocadas com Kim Jong-un e seus elogios frequentes a Putin e Viktor Orbán, o autocrata que lidera a Hungria.
Só que em seu segundo mandato, a simpatia converteu-se em método.
Os Estados Unidos são a maior e mais bem sucedida democracia do planeta majoritariamente por dois motivos: um sistema de freios e contrapesos que garante o respeito à transição pacífica de poder e às regras do jogo político, e uma ampla burocracia estatal, que é competente, profissional e autônoma.
Entre 2017 e 2020, parte do establishment do Partido Republicano, as Cortes independentes e a maioria democrata no Congresso na segunda parte do mandato evitaram prejuízos maiores à democracia , contendo os impulsos mais autoritários do presidente.
Mas ainda assim, Trump conseguiu arranhar esse sistema de freios e contrapesos, idealizado ainda na Revolução Americana (1776-1789), ao contestar o resultado da eleição de 2020 e incitar uma turba a invadir o Capitólio e tentar impedir a posse de Joe Biden em 2021.
Ele fracassou, mas aprendeu.
Máquina pública na mira
Após sua impressionante ressurreição política em 2024, ele retornou à Casa Branca com o controle absoluto sobre o partido, com maioria nas duas Casas do Legislativo, uma oposição desarticulada e, sobretudo, com um plano, tirado diretamente do manual dos autocratas do século 21.
Em abril de 2002, Hugo Chávez enfrentava uma oposição crescente da classe média e do setor empresarial venezuelano, que se opunha a seu projeto de poder. A resposta do tenente-coronel bolivariano, após o golpe fracassado contra si, foi executar uma limpa na PDVSA, a principal empresa estatal venezuelana e galinha dos ovos de ouro do governo.
Em diversos níveis de comando, os técnicos e burocratas foram afastados e substituídos por gente da confiança do presidente. Ao longo dos anos, o padrão se repetiria na administração pública e também nas Forças Armadas não apenas por Chávez como também pelo seu sucessor, Maduro.
Um processo similar ocorreu com Orbán, na Hungria, e na Rússia, com Putin. Os primeiros alvos desses autocratas foram servidores de carreira e no serviço público, visto como ‘ameaça’. Orbán cooptou também a imprensa e universidades, enquanto Putin colocou empresários leais a ele nos principais postos de comando da economia russa.
A essa altura, surge a questão: uma coisa é fazer isso na Venezuela e na Hungria. Outra, nos Estados Unidos.
O papel de Musk
E é verdade. É como comparar um jogo da Série C do Brasileirão com um da Série A. O funcionalismo público federal americano emprega 2 milhões de pessoas. Washington tem avenidas e avenidas de prédios públicos, autarquias, departamentos e secretarias. O Departamento do Tesouro gasta US$ 5,45 trilhões (impressionantes R$ 31 trilhões) em salários para manter essa máquina girando. Seria muito difícil desmontar tudo isso em quatro anos.
Nos seus primeiros dias de governo, Trump ofereceu um plano de demissão voluntária a esses 2 milhões de funcionários públicos, propondo nove meses de salário e benefícios a quem quisesse se demitir. A adesão não foi das melhores, mas aí entrou em cena um camarada chamado Elon Musk e o seu Departamento de Eficiência Governamental (Doge).
Com o argumento de que é necessário cortar gastos e tornar o Estado mais eficiente, Musk e um pequeno grupo de apaniguados, Musk vem agindo cirurgicamente em pontos específicos da burocracia americana.

Após os decretos de Trump, o primeiro alvo do dono da Tesla, do X e da Space X e de sua equipe foi o sistema de pagamento do Departamento de Tesouro — aquele que maneja os R$ 31 trilhões por ano. Isso significa que Musk tem em seu poder informações de salário, contato e cargo de toda a máquina pública federal americana em servidores de fora do controle da administração federal.
Nas últimas semanas, Musk e sua equipe tiveram um acesso similar a dados da USAID — que controla milhares de programas de assistência ao redor do mundo, muitos deles cruciais para os interesses americanos, como os que financiam atividades da oposição venezuelana —, do Escritório de Gerenciamento de Pessoal e dos programas de saúde Medicare e Medicaid. Segundo a Foreign Policy, até informações parciais sobre funcionários da CIA estão nas mãos do Doge.
O que chamamos no Brasil de cargos comissionados representam nos EUA uma ínfima porção da máquina pública. No começo do governo Trump apenas 4 mil funcionários federais eram nomeados por políticos.
O enfraquecimento da superpotência
Graças ao Pendleton Act, de 1883, os EUA optaram por profissionalizar seu serviço público, que, até a Guerra Civil estava majoritariamente na mão do partido de turno. Ao longo dos últimos 150 anos, diversas regras foram criadas para fortalecer a independência do funcionalismo americano, principalmente a partir do Watergate. Historicamente, o argumento de Trump e Musk de um estado profundo dedicado a implantar a ameaça vermelha na América simplesmente não faz sentido (a oposição venezuelana que o diga).
Steven Levitsky, autor de Como as democracias morrem, escreveu na Foreign Affairs deste mês que Trump representa um risco de desenvolver nos Estados Unidos um sistema político que ele chama de “autoritarismo competitivo”, justamente inspirado no modelo húngaro e venezuelano.
Levitsky pondera que, além das instituições mais fortes, Trump carece de um componente que Chávez tinha de sobra: popularidade. No máximo, 50% da população o tem em alta conta. É pouco, e a resistência da sociedade civil é maior em democracias consolidadas.
O maior risco oferecido pelo projeto de desmonte do Estado americano patrocinado por Trump e Musk, no entanto, é estratégico. Em artigo na Foreign Policy, o professor de cibersegurança de Harvard Bruce Schneier alerta que o Doge tem ignorado diversos protocolos de segurança que envolvem a máquina pública americana, sobretudo na proteção de dados de seu pessoal. Em servidores fora dos rígidos protocolos de segurança do governo, esses dados podem cair em mãos erradas, como por exemplo de hackers chineses.
“O aspecto mais alarmante não é apenas o acesso que está sendo concedido. É o desmantelamento sistemático das medidas de segurança que detectariam e impediriam o uso indevido - incluindo protocolos padrão de resposta a incidentes, auditoria e mecanismos de rastreamento de alterações - removendo os funcionários de carreira responsáveis por essas medidas de segurança e substituindo-os por operadores inexperientes”, alertou ele.
Levitsky alerta que todos esses dados sensíveis nas mãos do Executivo são também tanto uma ameaça global quanto doméstica.
“O autoritarismo competitivo transformará a vida política nos Estados Unidos. Como a enxurrada inicial de ordens executivas duvidosamente constitucionais de Trump deixou claro, o custo da oposição pública aumentará consideravelmente: Os doadores do Partido Democrata podem ser alvo do IRS; as empresas que financiam grupos de direitos civis podem enfrentar um escrutínio fiscal e legal mais rigoroso ou ver seus empreendimentos impedidos pelos órgãos reguladores. Os meios de comunicação críticos provavelmente enfrentarão processos de difamação caros ou outras ações legais, bem como políticas de retaliação contra suas empresas controladoras”, escreve.
“Os americanos ainda poderão se opor ao governo, mas a oposição será mais difícil e arriscada, levando muitas elites e cidadãos a decidir que a luta não vale a pena. No entanto, a falta de resistência pode abrir caminho para o enraizamento autoritário - com consequências graves e duradouras para a democracia global”, acrescenta.
Toda essa fragilidade estratégica se soma à implosão do sistema de alianças que Trump tem desenhado com a guerra tarifária e à instabilidade geopolítica que ele ensaia com seus planos para Gaza, a Ucrânia, o Panamá e a Groenlândia.
O resultado disso é um cenário onde os rivais da supremacia americana, notadamente Pequim e Moscou, esfregam as mãos com sofreguidão.