BRASÍLIA - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fará sua primeira visita de Estado ao Chile, no atual mandato, para discutir uma série de temas da agenda comum, entre eles comerciais e econômicos, com o presidente Gabriel Boric, mas sob a sombra da crise política pós-eleições na Venezuela. A visita dura dois dias.
Embora não seja um assunto da pauta bilateral, o timming do encontro em Santiago, a partir de segunda-feira, dia 5, levou a disputa presidencial da Venezuela a ser o principal assunto da agenda política regional e vai ser abordado por Lula e Boric, sobretudo por afetar diretamente ambos países.
Lula e Boric, embora de esquerda, têm nuances de posição constantemente e divergem sobre como se relacionar com Maduro. Enquanto o petista defendeu o regime chavista e já disse que o ditador Nicolás Maduro era vítima de narrativas da oposição, Boric faz questão de pontuar que não considera que exista uma democracia em Caracas. Seu governo já disse que o regime reagiu aos questionamentos do resultado anunciado como uma ditadura.
Lula não reconheceu ainda um resultado eleitoral, tampouco Boric. Ambos pedem, mas o chileno avançou e disse que era “difícil acreditar” na alegada vitória do ditador Maduro, anunciada pelo Conselho Nacional Eleitoral controlado por seus aliados. Já Lula evitou até agora dizer que reconhece um vencedor na disputa, mas endossou o teor de uma nota do PT que o faz e disse não ver nada de grave ou anormal na disputa em aberto.
Mesmo assim, a diplomacia brasileira segue cobrando a publicação de dados que atestem a existência de um vencedor. E não aceita também a contagem de votos paralela, promovida pela oposição, que dá vitória ao desafiante Edmundo González, reconhecida por Estados Unidos, Peru, Uruguai e Argentina.
O Chile, inclusive, teve diplomatas explusos de Caracas pelo regime de Maduro. O Brasil, por sua vez, permanece com ampla representação recém reativada na capital venezuelana e tem assumido a representação de interesses e a guarda de prédios e documentos de embaixadas e edifícios de países vizinhos, como Argentina e Peru, perante o governo venezuelano. O Chile, porém, não pediu auxílio ao Itamaraty.
A situação fez com que o Chile não participasse da nota conjunta assinada por Brasil, Colômbia e México, em que pese o governo Boric ser visto como um dos que tinha canais tanto com o governo quanto com a oposição venezuelana.
Assim como os demais, o governo chileno pediu que o regime seja transparente e permita a verificação dos votos. Essa checagem, para Brasil e México, deve ser imparcial em formato a ser decidido pelas forças políticas do país. Já Chile e Colômbia defenderam que era necessária a checagem por meio de observadores internacionais independentes.
O diálogo político será um dos principais na pauta, onde também há uma série de similariades de visões, apesar da clara divergência na questão venezuelana. Por isso mesmo, embora os presidentes a discutam, ela não deve estar presente no texto da declaração conjunta em negociação.
“É mais do que natural que dois presidentes conversem sobre a região, falem sobre os assuntos do dia. Principalmente no encontro privado, é o momento de falar mais livremente”, disse a embaixadora Gisela Padovan, secretária de América Latina e Caribe do Itamaraty. “O comunicado conjunto é basicamente bilateral, não inclui nada especificamente sobre Venezuela.”
O Ministério do Interior do Chile já decidiu reforçar a segurança e controles de fronteira, na expectativa de que o fluxo da diáspora venezuelana aumente em decorrência de um prolongamento da crise interna. O Chile tem especial preocupação com uma nova onda de imigrantes ingressando no país pelo norte, nas fronteiras com Peru e Bolívia e deve voltar a reforçar a presença militar. O Itamaraty não esclareceu se o Brasil também vai adotar medidas similares na fronteira.
Os dois presidentes se aproximam no que diz respeito à guerra na Faixa de Gaza, a visões sobre integração regional, à urgência climática e proteção de direitos humanos, entre outros. Mas discordam sobre a guerra na Ucrânia.
A visita a Santiago estava prevista para ocorrer em maio, mas foi adiada por causa das enchentes no Rio Grande do Sul. Além da visita de Estado, Lula e Boric pretendiam reunir novamente os 12 presidentes de países sul-americanos, reeditando um encontro realizado em 2023 e patrocinado pelo petista em Brasília, marcado pela reabilitação política de Nicolás Maduro na véspera.
Na ocasião, Lula pretendia reativar a Unasul (União de Nações Sul-Americanas), mas não houve acordo. As divergências ideológicas - inclusive sobre como tratar a ditadura da Venezuela - prevaleceram, e os países acertaram a criação de um mecanismo de coordenação mais técnico e burocrático, chamado Consenso de Brasília. O Chile esteve à frente da plataforma de diálogos entre chancelarias e ministérios e agora transferiu a coordenação para a Colômbia.
Desde o ano passado, Boric tentava levar Lula ao país. Ele convidou o presidente para celebração de 50 anos do golpe que levou à ditadura de Augusto Pinochet, mas o petista tinha outros compromissos e enviou o então ministro da Justiça e agora ministro do Supremo Flávio Dino.
Encontros
O presidente também vai ter encontros paralelos em Santiago. São quatro previstos na agenda. Na segunda-feira, dia 5, ele conversa reservadamente com o CEO da Latam Airlines, Roberto Alvo e com o secretário executivo da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), José Manuel Salazar-Xirinachs.
Na terça-feira, dia 6, antes de decolar a Brasília, ele vai se encontrar com a prefeita de Santiago, Irací Hassler, do Partido Comunista do Chile, cuja família por parte de mãe é do Piauí. E fará uma visita à casa do amigo e ex-presidente chileno de esquerda Ricardo Lagos.
É possível que ambos participem da inauguração de um centro espacial do governo chileno e visitem o museu da Força Aérea, em Cerrillos, e discursem no encerramento de um fórum empresarial, para cerca de 600 executivos.
A comitiva brasileira deve incluir 14 ministros e cerca de 230 empresários, já inscritos, conforme o Itamaraty.
Os empresários chilenos estão presentes no Brasil nas áreas de celulose, no varejo, com lojas e supermercados, e na avião comercial. Já as empresas brasileiras exploram setores de medicamentos, cosméticos, agronegócio, tecnologia da informação e financeiro.
O presidente Lula deve desembarcar na capital chilena às 20h de domingo, dia 4, e decolar de volta a Brasília por volta das 12h30 de terça-feira, dia 6.
Gabinete de Allende
Além de uma reunião privada às 10h no Palácio La Moneda, seguida de uma ampliada com Boric e ministros, Lula vai visitar os presidentes da Câmara, Karol Cariola, do Senado, José Garcia Ruminot, e da Corte Suprema, Ricardo Blanco.
Os presidentes também vão trocar condecorações, almoçam juntos, e Lula vai depositar uma oferenda floral no monumento do libertador Bernardo O’Higgins. Lula e a primeira-dama Janja da Silva vão jantar na residência oficial do embaixador Paulo Roberto Soares Pacheco.
Boric quer, no Palácio La Moneda, levar Lula para uma passeio pela ala de memória, onde se encontra o Salão Branco, no qual existe uma reconstrução do antigo gabinete do ex-presidente Salvador Allende, deposto pela ditadura militar chilena.
Acordos
Os dois governos negociaram a assinatura de 17 acordos, em diversos temas, como saúde, cibersegurança, meio ambiente, recursos hídricos, governo digital, exploração espacial, extradição, segurança, defesa, carteira de habilitação para residentes, entre outros.
Um deles é o fomento ao turismo - o Chile é o terceiro maior emissor de turismo para o Brasil. Foram quase 1 milhão de turistas chilenos no País em 2023. Os países querem promover o intercâmbio de visitantes e também atrair turistas de outras regiões do mundo em conjunto.
Outras tratativas serão sobre infraestrutura, com vistas à conclusão de obras e ao funcionamento de aduanas de um corredor bioceânico de Capricórnio, que sai do Mato Grosso do Sul, atravessa o Paraguai e Argentina e desemboca em portos no norte do Chile - que o Brasil quer ver ampliados. A rota é estratégia para economia de recursos e competitividade de commodities do centro-oeste brasileiro, principalmente grãos, que vão ao mercado chinês.
Brasil e Chile vão ainda trocar experiências na formação acadêmica diplomática, com vistas ao fomento de políticas de gênero, a chamada política externa feminista.
Os países têm um histórico de apoio mútuo em casos de desastres naturais, como por exemplo em incêndios florestais, quando costuma ocorre envio de aviões e brigadistas de lado a lado. Um dos focos de Boric tem sido fomentar a cooperação regional em defesa civil e ambiental.
Há interesse em discutir comércio, mineração, energia, automóveis, ônibus urbanos e equipamentos de defesa. O Chile já opera 22 aviões supertucanos, e o Brasil tenta emplacar mais produtos da Embraer, como o cargueiro multiuso KC-390.
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