A ditadura chavista do presidente venezuelano, Nicolás Maduro, organizou para este domingo, 3, um plebiscito sobre a anexação do Essequibo, um território da Guiana historicamente reivindicado pela Venezuela. A votação ampliou a tensão entre os dois vizinhos e os temores de um conflito militar na região. O timing do plebiscito, convocado após a definição da chapa opositora que desafiará Maduro das eleições no ano que vem, indica para analistas que o ditador tenta com a votação avaliar o grau de mobilização eleitoral de sua base e a adesão popular à ditadura.
Além da estratégia chavista em avaliar o status de sua base política, em baixa após anos de recessão econômica e êxodo em massa, o interesse venezuelano na Guiana é também econômico e tem crescido nos últimos anos após a descoberta de petróleo na costa do país.
O plebiscito tem cinco perguntas. A principal delas prevê a inclusão do Essequibo como o 25º Estado venezuelano. A isso, se seguiria um plano acelerado para atender a sua população,incluindo o fornecimento da cidadania venezuelana e carteiras de identidade. Cerca de 125 mil pessoas vivem na região, cerca 12% da população da Guiana. A área de 160 mil km², 75% do território guianense, é majoritariamente dominada por florestas.
Estratégia eleitoral
Para o analista político Jesús Castellanos Vásquez, a votação vai permitir ao governo monitorar diversas métricas que são importantes para a eleição de 2024. “A votação vai servir como um termômetro para medir não só a capacidade de apoio que tem o regime, mas também sua capacidade de controle”, disse o especialista ao Estadão, se referindo à mobilização da máquina chavista para buscar apoio de forma coercitiva, sobretudo no oferecimento de benefícios sociais em troca de votos.
A consultora política Eglée González-Lobato concorda com a avaliação de Castellano. “Tendo em conta as pesquisas de intenção de voto mais prestigiosas, que deixam em evidência o baixíssimo apoio da população a Maduro e colocam em dúvida que haja um acordo dentro do próprio governo para que ele seja candidato em 2024, o referendo consultivo sobre o Essequibo lhe permitirá o diagnóstico especialmente da mobilização dos eleitores a nível regional, e vai medir, de alguma forma, a lealdade ou não dos governadores e prefeitos em todas as regiões”, disse.
Mais sobre o conflito entre Venezuela e Guyana
Segundo ela, a oposição mostrou uma alta mobilização nas primárias de outubro, o que preocupa os chavistas. “ A oposição demonstrou uma forma de votar em bloco, concentrado, articulado. É uma combinação ganhadora frente a um oficialismo monolítico”, afirmou. “Por esse motivo Maduro buscará atrair para si, através de uma visão nacionalista, patriótica, o entusiasmo de um eleitorado que se afasta dele.”
Brasília e Washington preocupados
A disputa sobre o Essequibo também ganhou contornos geopolíticos. No mês passado, militares chavistas fizeram treinamentos na fronteira, o que chamou a atenção do Brasil e dos Estados Unidos. Os americanos enviaram à Guiana chefes do Comando Sul das Forças Armadas para contribuir nos planos de defesa da nação sul-americana.
O Ministério da Defesa do governo Lula intensificou a presença militar na tríplice fronteira em Roraima e afirmou que monitora a crise. O Itamaraty, por sua vez, expressou preocupação com a disputa entre os vizinhos, mas não deve se pronunciar sobre a votação promovida pela ditadura de Nicolás Maduro. “Do ponto de vista do Brasil, o referendo é um assunto interno da Venezuela”, disse nesta semana a secretária do Ministério de Relações Exteriores para América Latina e Caribe, Gisela Padovan.
Nacionalismo no TikTok
Usar ameaças externas para mobilizar sua base política não é novidade para o chavismo. Desde 1999, tanto Maduro quanto o antecessor, Hugo Chávez, denunciaram inúmeros planos de conluio da Colômbia com os Estados Unidos para derrubá-los. Agora, com a normalização das relações com Bogotá, governada pela esquerdista Gustavo Petro, a Guiana é a bola da vez da mobilização chavista.
Para isso, Maduro abusa da retórica nacionalista. Na sua estratégia para consolidar o apoio interno e promover a narrativa da soberania territorial, o regime recorreu a métodos pouco convencionais para incentivar o nacionalismo no país. Com músicas de reggaetón pró-governo, vídeos nas redes sociais, distribuições de mapas revisados meticulosamente e aulas sobre geografia nacional transmitidas pela televisão estatal, o chavismo passou a utilizar a história para tecer uma narrativa que ressoasse com a emocionalidade do público, transformando as escolas e outros centros públicos em palcos de fervor patriótico.
“Em 3 de dezembro, o referendo consultivo vai sim. Está em suas mãos, compatriotas”, disse Maduro em um vídeo publicado no TikTok, acompanhado de uma batida pop. “5 perguntas. Vote cinco vezes sim!”, diz ele.
“O governo venezuelano está tentando usar a cartilha nacionalista para fortalecer seu apoio, que é cada vez menor, e procurando evitar qualquer questionamento dentro das forças armadas e também tentando dividir as forças de oposição entre os mais pragmáticos que consideram importante participar [no referendo] (para mobilizar a população e mostrar seu patriotismo) e aqueles que questionaram a relevância desse referendo consultivo”, disse ao Estadão Kenneth Ramírez, Presidente do Conselho Venezuelano de Relações Internacionais.
“Em princípio, acredito que o que está sendo proposto é uma emulação tardia do que a Argentina fez ao incorporar administrativamente as Ilhas Malvinas à Província da Terra do Fogo, à Antártica e às Ilhas do Atlântico Sul por meio da Lei 23775, em 26 de abril de 1990, o que causou desconforto no Reino Unido, mas não mudou a situação no local além do simbolismo da medida”, disse em entrevista ao Estadão o cientista político venezuelano José Castillo Molleda.
No ano passado, a Rússia de Vladimir Putin usou uma estratégia similar quando tentou anexar províncias de etnia russa do leste da Ucrânia em meio à guerra: plebiscitos e uma campanha em massa para formalizar a cidadania russa dos habitantes dessa região.
Oposição denuncia ‘jogo político’
Para a oposição venezuelana, o referendo anunciado por Maduro apenas um dia após a vitória de Maria Corina Machado nas eleições primárias opositoras independentes, é parte de um jogo político para manter o chavismo no poder. A líder da oposição venezuelana rejeitou nesta quarta-feira, 29, a decisão do governo de convocar um referendo sobre a disputa territorial da Venezuela com a Guiana, em vez de defender os interesses do país perante os tribunais internacionais.
Para ela, o governo deveria suspender o referendo e focar no caso perante a CIJ. “O Estado venezuelano tem que apresentar, de forma impecável, nossa defesa” perante a CIJ até 8 de abril de 2024, disse a candidata. “Portanto, não há espaço aqui para mais mentiras, nem desculpas”, afirmou Machado em suas redes sociais.
Reação da Guiana
Embora este referendo não tenha consequências legais no cenário internacional, tanto a Guiana quanto seus aliados e países vizinhos temem o agravamento do conflito, que pode ser reforçado depois da votação.
O ministro das Relações Exteriores da Guiana, Hugh Todd, afirmou recentemente que sua nação se mantém “unida” para mostrar ao mundo que está “do lado certo da lei internacional” na disputa, e acusou a Venezuela de ameaçar a paz e a segurança regionais.
Na Assembleia Nacional da Guiana, Todd denunciou o “expansionismo venezuelano”, argumentando que a Venezuela já havia garantido um território quatro vezes maior que o da Guiana, chamando posteriormente o referendo deste domingo de “provocativo e ilegal”.
O presidente da Guiana, Mohamed Irfaan Ali, visitou recentemente um acampamento militar na Serra de Pacaraíma, no território do Essequibo, próximo à fronteira com a Venezuela, e hasteou a bandeira de seu país em um ato que Maduro classificou como uma “provocação”.
Além disso, o vice-presidente da Guiana, Bharrat Jagdeo, disse na semana anterior que o seu país está buscando uma cooperação internacional em questões de defesa, e que também está sendo considerada a construção de bases militares de potências estrangeiras na Guiana.
“Estamos interessados em manter a paz em nosso país e em nossas fronteiras, mas trabalharemos com nossos aliados para garantir que nos planejemos para todas as eventualidades”, disse ele. “Nunca tivemos interesse em bases militares, mas temos que proteger nosso interesse nacional”.
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O papel do petróleo
A exploração de petróleo na plataforma marítima do Essequibo começou após a crise global de 2008., quando a Guiana abriu as portas para parcerias com a iniciativa privada. Em 2015, a Exxon anunciou a descoberta de petróleo em quantidades surpreendentes, que ultrapassavam os 10 bilhões de barris. Tratava-se de um petróleo leve, caro e fácil de refinar.
A descoberta emergiu como um catalisador capaz de impulsionar o desenvolvimento econômico em uma das nações menos desenvolvidas da América do Sul. O consórcio liderado pela Exxon planeja produzir 750 mil barris por dia até 2025 a partir da exploração no território do país.
A descoberta ocorreu paralelamente ao sucateamento da indústria petrolífera venezuelana, afundada em casos de corrupção e mau gerenciamento. As sanções impostas pelos Estados Unidos em 2017 agravaram a situação do setor. A PDVSA, que em 2008 produzia mais de 3 milhões de barris por dia, hoje, produz apenas 800 mil, segundo a Reuters.
Disputa centenária
A disputa territorial que tem origem no século 19, quando a Inglaterra reclamou a região que pertencia à Venezuela, recém-separada da Espanha, como parte de sua Guiana. Uma arbitragem internacional patrocinada pelos EUA lhe deu razão. O resultado foi contestado pela Venezuela e nova discussão ocorreu em 1966, quando a Guiana se tornou independente.
Os países assinaram o Acordo de Genebra, para buscar uma solução para o conflito fronteiriço, reconhecendo a existência de uma controvérsia decorrente da sentença de 1899.Contudo, as tratativas associadas a esse acordo continuaram a se desdobrar ao longo do tempo, sem que se alcançassem resultados concretos.
Após a exaustão de todas as vias de procedimento, a Organização das Nações Unidas (ONU), atendendo a uma solicitação da Guiana, encaminhou o caso para a Corte Internacional de Justiça (CIJ), agravando a crise entre os países.
Em 2018, a Guiana solicitou à Corte Internacional de Justiça em 2018 que a decisão de 1899 sobre a fronteira fosse considerada válida e vinculante. Os juízes aceitaram o caso em abril deste ano, rejeitando o argumento da Venezuela.
Nesta sexta-feira, 1, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) emitiu sua decisão parcialmente a favor da Guiana e ordenou que o regime de Maduro se abstivesse de tomar medidas que agravassem a disputa sobre o Essequibo.
“Por unanimidade, enquanto se aguarda uma decisão final sobre o caso, a República Bolivariana da Venezuela se absterá de tomar qualquer medida que altere a situação que prevalece atualmente no território, onde a República Cooperativa da Guiana administra e exerce controle sobre essa área”, disse a presidente do CIJ, a juíza Joan E. Donoghue.
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