Maior desafio da China é reduzir desigualdades sociais em novo momento econômico, diz economista

Isabella Weber, autora do livro ‘Como a China escapou da terapia de choque’, fala sobre o novo momento da economia chinesa após país se transformar em potência mundial

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Atualização:
Foto: Isabel Estevez
Entrevista comIsabella WeberEconomista, autora de 'Como a China escapou da terapia de choque'

A reabertura econômica da China durante o governo de Deng Xiaoping (1978-1992) na década de 1980 alterou a história contemporânea do país de maneira sem precedentes. A China saiu da pobreza extrema para a segunda maior economia mundial em 40 anos, despertando o interesse de economistas e pesquisadores do mundo inteiro sobre como o “milagre econômico” aconteceu. Não raramente, uma pergunta frequente é se a ascensão foi operada pelo livre mercado ou pelo resultado de políticas econômicas do Partido Comunista da China.

No livro “Como a China escapou da terapia de choque” (Ed. Boitempo), a economista alemã Isabella Weber traz outra perspectiva para essa pergunta e explora como essas reformas aconteceram. É fato que a China introduziu um novo modelo econômico depois de a Revolução Cultural e do colapso do estilo soviético. Mas também é fato que o modelo não se assemelha de forma absoluta ao neoliberalismo aplicado no Ocidente - e que se desejava aplicar na China.

Para Weber, o modelo chinês resulta de intensos debates ideológicos entre economistas e reformadores chineses sobre como introduzir os mecanismos de mercado. “O modelo liberal de mercado é meio que o objetivo dele em si. Na China, quero dizer de uma maneira simplificada, o mercado é uma ferramenta para objetivos políticos e econômicos específicos, e não um fim em si mesmo”, diz.

Economista Isabella Weber durante o lançamento do livro "Como a China escapou da terapia de choque", em São Paulo, no dia 4 Foto: Divulgação/Ed. Boitempo

Graças à escolha de aplicar no país o que pareceu mais adequado à própria realidade, a China conseguiu se transformar no que é hoje, defende Weber. O modelo também se adequou constantemente, ora com mais papel do Estado, ora com mais autonomia aos mercados. Mesmo com as mudanças econômicas da última década, mais focadas na demanda doméstica e consumo interno, essa mesma lógica continua a operar.

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Ao Estadão, a economista analisou como esse modelo vem sendo aplicado nas últimas quatro décadas e adaptado aos desafios recentes, incluindo a recuperação econômica lenta no pós-pandemia. Abaixo, leia a entrevista:

Como foi possível a implementação desse modelo econômico nos anos 1980 sem haver um choque com as ideias de mercado?

Antes de tudo, acho que tem a ver com a história das reformas. Antes, o papel do mercado era obviamente muito limitado. A forma que a China mercantilizou após a reforma foi liberalizar o que é essencial para o funcionamento da economia como um todo, e isso depende de que tipo de bem está sendo produzido. Foram os casos de brinquedos de plástico, lenços de papel, enfim, esse tipo de bens de escala e baixo capital intensivo. Ao mesmo tempo que você tem a introdução disso no mercado, você mantém setores chaves sob diretrizes do governo, com incentivos para você entregar, e os coloca na economia de circulação dupla. Você produz para o plano do governo, e se produzir mais do que isso essa produção pode ser para o mercado, caso em que poderiam obter um preço mais alto, o que seria bom para a empresa. Com isso, basicamente você introduz incentivos de mercado sem inicialmente privatizar a empresa, nem desistir do plano estatal.

Quero dizer, houve mercantilização, ao mesmo tempo que o Estado manteve o controle sobre as indústrias mais importantes e as partes mais estratégias do setor econômico, como energia, comércio de alimentos básicos. À medida que a reforma continuou, eventualmente participam do mercado, mas também obtêm metas do Estado. Por meio da estrutura política, você tem muitos instrumentos para trabalhar em direção a diretrizes políticas específicas do mercado, no sentido de que todas essas entidades estão basicamente canalizando as forças de mercado corretamente, mas ainda buscam objetivos específicos de política econômica.

É possível afirmar qual teria sido o desenvolvimento da China se o governo tivesse adotado o neoliberalismo durante as reformas?

Esta é uma pergunta difícil de responder porque é fazer especulação. Nunca poderemos ter certeza absoluta. Mas acho que o caso da Rússia ilustra que fazer a terapia de choque é incrivelmente perigoso. Claro, neste caso não temos apenas terapia de choque, mas também o colapso do Estado socialista acontecendo ao mesmo tempo. Então, é difícil dizer “Ok, é apenas sobre a escolha política econômica”. Mesmo assim, o que vemos é hiperinflação na década de 1990 junto com um colapso econômico que foi pior e maior e durou mais do que a Grande Depressão nos Estados Unidos. Na Rússia, você teve uma desindustrialização severa. Quero dizer, você tinha a União Soviética, que foi uma potência industrial, e se você compara hoje, a Rússia não exporta nenhum produto industrial. Então, se você olhar para a China na década de 1980, onde a China era um país muito mais pobre do que a Rússia, a terapia de choque teria causado o risco de uma inflação severa, colapso econômico e caos. Em um país pobre, isso é muito mais imoral e consequente do que em um país rico.

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Tentando falar em termos econômicos, na China, a estrutura foi fundamentalmente transformada, mas as instituições estatais continuarem em vigor, tendo continuidade, tendo a base industrial que foi construída durante o período do Mao (Tsé-Tung), em vez de entrar em colapso e começar do zero. Se a China houvesse feito a terapia de choque, haveria um tipo semelhante de desafio de recomeçar do zero, como a Rússia. Esse é um aspecto determinante da reforma. Outro aspecto é: para a China nunca ter se endividado internacionalmente de forma significativa, também foi parte essencial não ter feito a terapia de choque, com uma abertura repentina.

Este é um ponto interessante porque a economia da China tem mudado na última década, com maior participação do mercado. Significa uma mudança no modelo econômico dos anos 80 ou se trata de algo menos estrutural?

Existem duas maneiras de olhar para as mudanças. Por um lado, acho que tem havido a tendência de interpretar as reformas da China como mercantilização, como se todo o papel do Estado estivesse recuando e o estilo de mercado do Ocidente estivesse sendo adotado. Mas não acho que o que aconteceu nos últimos, digamos, 10 anos ou mais, é uma reversão. Agora está muito claro que o estado não está simplesmente recuando, mas se você ver a história recente você vai perceber que o Estado permaneceu ativo. O planejamento direto foi reduzido, mas o envolvimento estatal na economia e a capacidade de orientar a economia não foram reduzidos. Possivelmente, até aumentaram de uma maneira diferente, mas ainda assim você tem um nível muito alto de capacidade estatal no engajamento com o mercado e com a economia.

Há sempre duas possibilidades de reforma econômico: mais participação do Estado ou do mercado. Você sempre tem essas duas tendências, e sempre foi um ato de equilíbrio. Eu diria que nos anos mais recentes você vê iniciativas de mercantilização, mas ao mesmo tempo está claro que a China não está em transição para uma economia de mercado no estilo ocidental. O Estado continuará a desempenhar um papel ativo, ou seja, usar e mobilizar o mercado, orientá-lo, não permitir que ele opere em seus próprios termos.

O presidente da China, Xi Jinping, participa de uma reunião na 15° cúpula do Brics, em Johannesburgo, África do Sul  Foto: Gianluigi Guercia/ AP

O crescimento do país desacelerou no último ano e há uma dificuldade na recuperação pós-pandemia. Hoje, o modelo híbrido da economia chinesa está esgotado ou ainda é o mais adequado para o crescimento da China?

Temos que reconhecer que a economia da China tem mudado constantemente. Trata-se de uma reforma contínua. Houve muita experimentação política nos últimos 40 anos. Ou seja, eles estão constantemente mudando o próprio modelo. Eu não acho que vai haver uma forma revolucionária que derrube esse modelo. Dentro da lógica chinesa, o próprio governo acha que o país está entrando em uma nova fase nos próximos seis, sete anos. Essa nova fase também terá dimensões diferentes para a economia.

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Em primeiro lugar, está muito claro que é uma nova era com relação ao comércio exterior. Não acho que querem se fechar completamente. Há um slogan de dupla circulação, que é basicamente fortalecer o consumo doméstico e manter a circulação internacional, que é basicamente o mesmo slogan da década de 80. Mas na década de 80 tratava-se de fortalecer a circulação internacional porque a economia, naquele tempo, estava muito fechada. Hoje, esse slogan indica um fortalecimento da demanda doméstica, que é algo com o qual eles lutam muito concretamente agora.

É claro que o crescimento é mais fraco do que costumava ser no passado e a China corre o risco de não atingir a meta de crescimento de 5% do PIB, e eles estão fazendo todos os tipos de estímulo para isso. Mas, estruturalmente, acho que está muito claro que eles querem fortalecer a demanda e o consumo interno. Isso não é feito de uma forma muito direta porque hoje o modelo econômico depende muito de investimentos, uma alta taxa de poupança e exportações. Trata-se de uma grande questão como vão fazer (essa mudança econômica), mas não acredito que, como dizem alguns analistas ocidentais, o país não tem mais espaço para investir. A China é um país gigantesco e ainda há uma vasta área no interior do país que são muito pobres. E isso é algo que eles falam, e acho que isso terá grandes implicações para o desenvolvimento macroeconômico.

Por fim, há toda a política de prosperidade comum. Com Deng Xiaoping, o slogan era ‘deixar alguns ricos primeiros, depois distribuir’. Claro, isso criou desigualdades enormes e estruturais, e como superar isso é um grande desafio. Não sei se eles têm necessariamente a solução, mas é uma das pautas para o modelo da economia chinesa no futuro. Esses slogans costumam indicar uma agenda importante. E também há a agenda verde para as mudanças futuras da economia. Temos que reconhecer que, em contraste com os Estados Unidos, a China tem uma produção muito fraca de combustíveis fósseis. Para alcançar o tipo de padrão de vida dos EUA, eles precisam de energias renováveis. Não podem fazer isso com combustíveis fósseis sem se tornar extremamente dependente dos mercados internacionais.

Um dos objetivos de Xi Jinping ao assumir o governo foi acabar com a especulação imobiliária, que encareceu os preços na China e ajudou a criar as desigualdades estruturais citadas. No entanto, esse setor parece chave para a recuperação econômica do país agora. Como o governo lida com essa necessidade contraditória?

Acho que o mercado imobiliário é uma grande dor de cabeça para o governo e a economia chinesa. É, provavelmente, uma das reformas mais fracassadas. Por um lado, os orçamentos dos governos locais dependem em grande parte dos rendimentos do mercado imobiliário e das terras e há uma classe média extremamente focada em comprar apartamentos na China. Para haver casamento, os casais basicamente precisam ter um apartamento. Quem pode comprar um apartamento, comprou um apartamento. Então, em grandes cidades você tem preços realmente altíssimos. É muito caro. Então, isso significa que você precisa de alguma forma reduzir o preço, mas se houver redução de preço vai haver uma pressão sobre os orçamentos dos governos locais e haverá uma classe média chateada. É um problema muito, muito difícil de se solucionar.

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A China tem tido dificuldades de se recuperar economicamente no pós-pandemia. As soluções apresentadas pelo governo chinês estão de acordo com o modelo econômico adotado nas últimas décadas ou sugerem novas direções?

Na verdade, acho que a maneira como eles saíram da política da covid zero não é coerente com a ideia de gradualismo. Eu acho que isso foi realmente causou um choque muito grande. Eles também não realizaram nenhum tipo de estímulo massivo, como houve em 2008 e 2009 (durante a crise imobiliária dos EUA), o que eu acho que tem a ver com eles terem muito medo de inflação. A década de 1940, durante a guerra civil, foi um período de hiperinflação para a China. O fracasso dos nacionalistas em controlar a inflação foi algo que ajudou a Revolução Comunista. Então, eles são muito preocupados com a inflação. Na década de 1980, com a liberalização do mercado, foi uma preocupação deles também. E agora vemos isso novamente. Acho que o fato de não terem feito grandes estímulos da maneira que esperávamos tem a ver com esse controle.

(No pós-pandemia) eles conseguiram manter a inflação muito baixa. A China não tem nenhum problema de inflação. Protegeram-se dos choques globais de preços de energia e commodities, que se traduziu em alta de inflação em praticamente todo o mundo, mas não na China. Ok, pode-se dizer ‘mas eles também não têm um crescimento forte’. Mas se você olha para países como Brasil, você teve um crescimento baixo com inflação alta. Ou seja, você pode ter baixo crescimento e inflação alta.

Isso tem a ver com as maneiras pelas quais eles se protegeram ativamente dos choques econômicos. Não fizeram isso através de políticas de estabilização de preços, que dependem de estoques reguladores e todo tipo de regulamentação sobre como os preços estão sendo estabelecidos, no qual é um sistema muito complexo.

Durante a pandemia, a confiança da sociedade chinesa no governo se tornou menor devido a algumas medidas restritivas, que se refletiram em protestos, por exemplo. Isso dificulta o governo controlar a economia nesta fase pós-pandêmica?

Acho que é a isso que me referia quando falei sobre o choque da covid zero. A covid zero foi um choque em si e o grau de controle do governo sobre a vida das pessoas aconteceu de uma forma que eles não viam há décadas. Isso tem sido muito intenso, está intenso até agora. Ainda há consequências dessa política, como, por exemplo, o rastreamento muito intenso das pessoas e assim por diante. A covid zero aumentou o grau de controle do governo sobre a vida cotidiana, e esse período também foi marcado pela morte (por covid) de muitas pessoas. E há um outro grande choque que é o fim da política. Você era constantemente testado e, de repente, ficou difícil encontrar um teste. Além disso, há outro desafio para o governo que é o desemprego entre jovens. Então, realmente houve uma queda de confiança. Esses problemas são muito sérios, mas não vão derrubar o governo chinês amanhã. O governo precisa lidar com esses problemas e essa falta de confiança, mas não não haverá uma revolução. Estou dizendo isso porque às vezes alguns veículos midiáticos soam dessa forma, que não é muito realista.

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