Observadores externos podem ser perdoados por detectar sinais semelhantes aos da Primavera Árabe — ou até de uma revolução — nos protestos que se espalham pelas cidades chinesas.
As manifestações na China são as maiores e mais ambiciosas em anos, com alguns participantes chegando até a pedir a renúncia do líder máximo do país, Xi Jinping. Nesta quarta-feira, emergiram novos vídeos de confrontos ocorridos na noite anterior na cidade de Guangzhou, no sul chinês, que mostram cidadãos derrubando barreiras e arremessando garrafas contra policiais.
Mas se os manifestantes chineses esperam ocasionar uma transformação política significativa, eles devem perceber que enfrentam dificuldades além da temível reputação de seu governo de esmagar a dissidência — e dificuldades ainda maiores que as mais aparentes.
Três forças principais, duas delas globais em sua natureza e outra peculiar à China, estão em seu caminho.
Primeiramente, protestos com objetivo de depor líderes ou governos viram suas chances de sucesso despencar nos anos recentes, com a maioria avassaladora fracassando em meio às transformações na natureza da comunicação, da organização e da repressão — tendência na qual a China parece se enquadrar.
Em segundo lugar, o governo chinês encarna um tipo de autoritarismo conhecido como governo revolucionário, que os novos acadêmicos têm constatado ser extremamente resistente a distúrbios explosivos.
Finalmente, o governante Partido Comunista Chinês provou repetidamente sua excepcional habilidade em administrar erupções de fúria popular — que são mais comuns na China, apesar da menor escala, do que observadores internacionais podem assumir.
Protestos na China
O governo chinês também é especialmente habilidoso em manter a unidade entre a elite do país, que com frequência é fator decisivo na capacidade de manifestantes forçarem mudança de regime.
Isso não significa que os protestos na China estejam fadados ao fracasso. Movimentos populares que exigem a remoção de autocratas ainda alcançam êxito certas vezes. E há muitas versões de êxito que não incluem a partida de Xi — um relaxamento nas políticas “covid zero” do país, por exemplo.
Ainda assim, se parte da elite não romper com Xi para apoiar os manifestantes, tuitou William Hurst, acadêmico da Universidade Northwestern, “o cenário mais provável que consigo perceber é os protestos desvanecendo (como ocorre com a maioria dos movimentos desse tipo na maioria dos países)”.
“Após irromper espontaneamente durante um curto período”, previu Hurst, que estuda movimentos sociais chineses, “eles desaparecerão sem alcançar nenhum clímax ou desfecho”.
O poder dos protestos se esvai
Ao longo da maior parte do século 20, protestos em massa buscando mudança de governo ficaram mais comuns e tenderam mais ao sucesso em todo o mundo, abatendo muitos ditadores. Até o início da década de 2000, dois a cada três desses movimentos terminavam bem-sucedidos, segundo pesquisa liderada por Erica Chenoweth, da Universidade Harvard. Em retrospecto, tratou-se de uma maré cheia.
Em meados dos anos 2000, apesar desses protestos continuarem a aumentar em frequência, seu índice de sucesso começou a diminuir. No fim da década de 2010, suas chances de forçar mudança de governo caíram pela metade, para uma a cada três irrupções. Dados do início da década atual sugerem que essa taxa caiu pela metade novamente, para uma a cada seis ocorrências.
“Campanhas não violentas estão testemunhando seus índices de sucesso mais baixos em mais de um século”, escreveu Chenoweth em um artigo recente, apesar da afirmação se referir apenas a movimentos que tencionam remoção de líderes ou independência territorial.
Curiosamente, essa mudança ocorre justo no momento em que protestos se tornam mais comuns, se engendram mais rapidamente e crescem em tamanho por todo o mundo — tendência que os protestos-relâmpago da China, atingindo várias cidades, parece atender.
O que mudou?
As redes sociais, que permitem aos manifestantes reunir-se em números impensáveis anteriormente com pouca liderança formal, podem também, paradoxalmente, minar esses movimentos, de acordo com uma teoria da socióloga Zeynep Tufekci, da Universidade Columbia, colunista da seção de Opinião do The New York Times.
Em eras anteriores, ativistas poderiam levar anos para construir os laços organizacionais necessários às mobilizações nacionais. As redes sociais permitem a quem pretende se manifestar saltar esses degraus e incitar um ao outro à ação com um mero post viral
Os resultados são manifestações que colocam milhares ou milhões nas ruas da noite para o dia — mas que com frequência evaporam tão rapidamente quanto.
Sem líderes e descentralizados, os protestos conclamados por redes sociais se fraturam com mais facilidade, especialmente sob repressão. E têm dificuldades em se coordenar estrategicamente, que é um passo necessário para pressionar por demandas concretas e cultivar aliados em posições de poder.
Ao mesmo tempo, governos autocráticos, aprendendo com os levantes dos anos 2000 em ex-repúblicas soviéticas, tornaram-se mais habilidosos em superar manobras das dissidências.
Em vez de apelar para as repressões esmagadoras de eras anteriores, que com frequência lhes saíram pela culatra, os autocratas passaram a minar protestos com métodos mais sutis e graduais: espalham confusão por meio da propaganda; promovem fissuras dentro dos movimentos; contêm protestos e aguardam que se esvaziem; ou aplicam força suficiente apenas para desencorajar os manifestantes, sem provocar indignações mais amplas.
E as autocracias cada vez mais cooperam e compartilham métodos entre si, no que consideram uma luta comum.
A China é líder global nesse movimento, vendendo tecnologia de repressão digital e vigilância em todo o mundo. Seus líderes, afinal, são profundamente experientes em lidar com protestos.
Gerenciamento do dissenso
Apesar de estrangeiros poderem assumir que os controles notoriamente autoritários da China tornaram protestos algo impensável no país, especialmente desde as manifestações pró-democracia de 1989, o oposto é verdadeiro.
O país testemunha dezenas de milhares de protestos anualmente, de acordo com dados rastreados desde meados da década de 2010 pelo acadêmico chinês Sun Liping. A maioria das manifestações é local, protestando contra questões como a poluição emitida por alguma usina estatal ou autoridades corruptas.
Percebe-se que os líderes chineses toleram algum zumbido e talvez até vejam manifestações com bons olhos dentro de certos limites, com o intuito de permitir que “o descontentamento popular extravase sem desestabilizar o regime como um todo”, escreveram as acadêmicas Vivienne Shue e Patricia Thornton, especialistas em China.
Os líderes chineses sabem que não podem ser totalmente indiferentes aos desejos do povo. Mas sem eleições genuínas, restam aos cidadãos poucas maneiras de expressar suas insatisfações. Tolerar certos protestos permite aos líderes desviar do dissenso e fazer os cidadãos se sentirem ouvidos antes que a fúria transborde.
A resposta das autoridades é com frequência “muito menos rígida e mais administrativa do que frequentemente se assume”, escreveu H. Christoph Steinhardt, especialista em China, acrescentando que o Estado “ainda tolera uma quantidade considerável de contestação”.
Poucos protestos evoluíram para algo maior. Em 2002, dezenas de milhares de trabalhadores da cidade de Liaoyang protestaram exigindo a remoção de autoridades corruptas que haviam fechado suas fábricas. Em 2011, moradores do vilarejo de Wukan expulsaram todas as autoridades do partido, declarando certa autonomia e inspirando outras localidades ao mesmo.
Ambas as manifestações foram descritas inicialmente como grandes ameaças, talvez existenciais, ao controle do Partido Comunista, que pareceu pego de surpresa. Mas em ambos os casos os líderes chineses contiveram os protestos permitindo que eles se exaurissem — e por fim atenderam muitas exigências dos manifestantes, chegando a prender autoridades corruptas em Liaoyang, o que arrefeceu gradualmente os protestos. Depois os líderes das manifestações também foram presos.
Resiliência revolucionária
Por que alguns ditadores caem depois de protestos e outros não?
Em uma nova e extensa análise de todos os governos autoritários no século passado, os acadêmicos Steven Levitsky e Lucan Way chegaram a um fator preponderante: a maneira que o governo chegou ao poder.
Desde 1900, constataram os estudiosos, cerca de 20 autocracias ascenderam de grandes revoluções sociais — entre elas a União Soviética, a República Islâmica do Irã e a China comunista.
Em média, as autocracias sobreviveram cerca de 10 anos. Depois desse período, as chances dos regimes caírem aumentam a cada ano, à medida que o apoio do público se erode e fissuras dentro da elite governante se ampliam.
Mas autocracias fundadas sobre revoluções tendem a sobreviver muitas décadas. Sua duração média é impossível de medir pelo simples fato de que metade delas ainda transcorre. A União Soviética chegou aos 69 anos, superando muitas democracias. O Irã também tem se provado, até aqui, surpreendentemente resiliente ao movimento de protestos que se espalha pelo país há meses.
Isso não quer dizer que esses regimes governam melhor. Mas eles são cinco vezes mais propensos a sobreviver ao tipo de episódio que derrubaria outros governos, como agitações em massa ou disputas violentas pelo poder.
A resiliência desses regimes, argumentam estudiosos, decorre da revolução que os colocou no poder. Movimentos revolucionários costumam extirpar todos os elementos da antiga ordem, de líderes empresariais a oficiais de forças armadas, a burocracias administrativas.
Conforme a revolução preenche esses postos com seus próprios quadros, restam-lhe cada vez menos adversários internos ou ameaças — o que guarnece exatamente o tipo de fissura em alto nível que um movimento de protesto tem de abrir para forçar uma mudança na liderança.
Esses regimes também são notavelmente coesos. E discórdias ou disputas de poder ficam a cargo de revolucionários que são trazidos para o regime e trabalham para mantê-lo como é.
E as características revolucionárias que conferem resiliência, argumentam Levitsky e Way, são especialmente pronunciadas na China: burocracia partidária profundamente institucionalizada; hierarquias de poder cumpridas internamente; controle político onipresente sobre forças militares e de segurança pública; e raízes profundas do partido em todos os campos, de diretorias de empresas a assuntos locais em vilarejos. Até o governo mais forte tem seu ponto de ruptura. Mas o da China, concluem os acadêmicos, bem poderá ser “um dos regimes mais duradouros na história moderna”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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