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É prêmio Nobel de Literatura. Escreve quinzenalmente.

Opinião|Putin está travando uma guerra hipócrita na Ucrânia; leia a coluna de Mario Vargas Llosa

Conflito mostrou a pouca disposição do Exército russo em seguir as ordens do presidente russo

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Parece brincadeira. As Forças Armadas da Ucrânia conseguiram se acertar para bombardear minimamente a ponte que, de maneira ilegítima, a Rússia mandou construir sobre sua última conquista, o lago da Crimeia, e Putin, furioso com esta insolência, bombardeou Kiev, deixando como resultado 19 mortos, que poderiam ter sido cem ou mais (não há uma medida clara sobre o alcance desses bombardeios e suas vítimas).

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Em todo caso, as forças da Otan e dos Estados Unidos não se atreveram a responder de outro modo, porque Putin, jogando com as milhares de ogivas nucleares que tem reunidas por toda a Rússia, ameaçou uma vez mais converter o mundo em um tenebroso sabá atômico.

Ao mesmo tempo, Putin mostrou que os novos convocados russos não reconhecem suas ordens, pois os novos recrutas foram vistos bêbados, fugindo para os países vizinhos para escapar das ordens de recrutamento, o que fornece um péssimo testemunho sobre o comportamento das Forças Armadas russas neste preciso momento.

Motoristas e passageiros sentam-se em carros em um engarrafamento perto de uma placa que exibe uma imagem do presidente russo Vladimir Putin em São Petersburgo Foto: Anton Vaganov/Reuters

O lamentável deste jogo sinistro é o número de vítimas ucranianas que seguem se acumulando sobre uma guerra que, viu-se no comportamento dos novos convocados, desperta muito pouco entusiasmo no país mais interessado, segundo Putin, em recuperar a condição de superpotência militar.

Militares

Claramente, o que esta guerra mostrou até agora é a pouca disposição do Exército russo em seguir as ordens do próprio Putin, que, em todos os estágios desta agressão, se viu frustrado pelo desleixo e a parcimônia de seus soldados. Poderia se dizer que Putin nem sequer percebeu que seu país é grande e moderno demais para estar travando guerras como esta, que só tem vítimas (uma das ironias do descontrole atômico é que ele torna certos países invulneráveis e converte outros exclusivamente em vítimas, ironia da qual parece se excluir somente o enlouquecido personagem que governa a Coreia do Norte).

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Tudo é disparatado na guerra da Ucrânia e, poderia se dizer, aborrecido – pois todo o mundo sabe como terminará esta tentativa da Rússia de converter a Ucrânia em um país vencido e humilhado, algo que até agora não ocorreu, sobretudo tendo em conta a valorosa resistência dos ucranianos ao que o próprio Putin acreditou que seria somente um desfile de tropas.

Poder

Algo que acabou se mostrando absolutamente inesperado é que a poderosa Rússia era muito menos poderosa do que todos nós imaginávamos, exceto, poderia se dizer, o próprio Putin, que não parará até que o Kremlin ponha um ponto final a esse contrassenso com um golpe militar, ou um esquema menos dramático.

Mas o que ocorre na antiga URSS deixa o mundo em alerta, com a perspectiva – mais que sinistra – de uma explosão atômica. Poderia ocorrer? A saúde mental de Putin permite todos os extremos, incluindo esse horror: o estouro de uma terceira guerra mundial que poderia acabar com o mundo ou convertê-lo em ruína.

Golpe

É evidente que ninguém quer isso, nem o próprio Putin, ainda que os conspiradores que supostamente o derrubariam seriam os primeiros em alegar que acabaram com ele porque estava a ponto de acabar consigo mesmo e com a Rússia ao mesmo tempo. A verdade é que o mundo dormirá mais tranquilo se a Rússia, com seu estoque de armas atômicas, deixar de se comportar como alguns países africanos ou simplesmente do aguerrido terceiro mundo.

Qual é a solução, então? Contemplar como, segundo as mudanças de humor do próprio Putin, o mundo inteiro se pergunta se a terceira guerra mundial está ou não prestes a estourar? Ou como, em função dos arroubos desse mesmo personagem, demoram a desaparecer os ucranianos neste espetáculo em que eles receberam o pior papel?

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É evidente que este caso dramático tem de terminar de alguma maneira que não pode ser o desaparecimento da própria Ucrânia, algo que parece não estar longe das loucuras estratégicas de Putin. O melhor que poderia acontecer é que os supostos colaboradores de Putin acabem com ele ou o coloquem em condição de não continuar complicando as coisas, com as quais os próprios russos não podem estar satisfeitos, exceto por um punhado de extremistas, cujas vozes já foram escutadas além da conta. Eles monopolizam os canais da Rússia, que começou a eliminar todas as publicações privadas que eram independentes do Estado.

Crimes de guerra

Os líderes do G-7, ou seja, as forças ocidentais, responsabilizarão o presidente russo pelos “crimes de guerra” perpetrados contra cidades e alvos civis na Ucrânia. A impressão dos leitores é que estas ameaças não dão em nada além de simples declarações de boas intenções. Muito mais eficaz seria, neste momento, tratar de fazer avançar uma paz verdadeira, por parte de qualquer das várias tentativas que há neste sentido até o momento.

Por que um desses países que compõem estas comissões de paz não apresenta agora mesmo uma declaração que permita à Rússia uma saída e, ao mesmo tempo, assegure a independência e a integridade da Ucrânia? Qualquer dos países que se aproximaram destas “comissões de paz” poderia cumprir esta função e receber um prêmio por isso.

As condições do momento, infelizmente, não são muito propícias para isso, pois, segundo indica um correspondente, Putin “dá ouvidos aos seus falcões” e ordenou “ataques indiscriminados” contra alvos civis, a fim de conter o moral ucraniano e as críticas internas.

Gastos

Isto está custando à Rússia uma verdadeira fortuna. Segundo o mesmo correspondente, os mísseis de cruzeiro que a Rússia emprega nestas operações de “castigo”, com os quais trata de amedrontar a opinião pública, vão acompanhados de enorme foguetes antiaéreos Iskander, que já foram usados para bombardear Zaporizhzia, um gasto que a revista americana Forbes calcula entre US$ 400 milhões e US$ 700 milhões.

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Outra forma de aproveitar o momento para apresentar um “plano de paz” para a Ucrânia seria que a iniciativa partisse de algum país amigo da Rússia, em qualquer das várias “comissões” que se formaram a esse respeito, para escapar das suscetibilidades.

Isso permitiria à Rússia salvar as aparências e cessaria os ataques e operações militares contra a Ucrânia que estão causando baixas demais na população civil e impedem seu livre desenvolvimento. Este papel parece que foi criado especialmente para a China, que pela primeira vez expressou preocupação com os bombardeios russos contra a Ucrânia.

Vítima

Enfim, é preciso acabar com esta guerra hipócrita, que está destruindo pouco a pouco a Ucrânia e semeando terror nos países vizinhos, enquanto os grandes países do Ocidente estão contentes – assim parece, pelo menos – com este desgaste sistemático de seu inimigo principal e veem com certa indiferença o castigo criminoso a que, por uma questão puramente de forma, se encontra submetida a Ucrânia, a única vítima real desta tragédia./TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Opinião por Mario Vargas Llosa

É prêmio Nobel de Literatura

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