Medellín alcança menor nível de violência em 40 anos com políticas de cidadania e paz entre gangues

Cidade que ficou conhecida no passado como a ‘mais violenta do mundo’ tem índices de homicídios iguais a Belo Horizonte; em abril, 15 homicídios foram registrados, o menor número em quatro décadas

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Foto do author Luiz Henrique Gomes

ENVIADO ESPECIAL A MEDELLÍN – Meninos dançam, ouve-se música por todo lado e as ruas estão cheias de turistas. Mais à frente, as escadas rolantes facilitam a subida ao topo do morro onde está a comunidade. É possível olhar a cidade inteira lá embaixo. “É a melhor da Colômbia”, comenta a garçonete do restaurante, e sorri. Estamos no alto da Comuna 13, o maior símbolo da transformação de Medellín, uma cidade hoje com índices de violência iguais aos de Belo Horizonte, uma das capitais menos letais do Brasil.

Em abril, a cidade teve 15 homicídios, média de um assassinato a cada dois dias e o menor número nos últimos 40 anos. Em comparação, Salvador, capital com o número de habitantes próximo ao de Medellín (2,4 milhões e 2,5 milhões, respectivamente), tem duas mortes por dia. “Um grande êxito de Medellín”, destacou o editorial do jornal El Colombiano no dia 19 de maio ao falar dos homicídios. A taxa de mortes violentas em 2023 foi de 13,9 por 100 mil habitantes.

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Nem sempre foi assim. Em 1991, no auge da guerra entre o narcotraficante Pablo Escobar e o Estado da Colômbia, a cidade foi considerada a mais violenta do mundo. Ir às comunas era um risco, dado o alto nível de pobreza e violência. Naquele ano, mais de seis mil assassinatos foram registrados. “Era um lugar abandonado, nem a polícia vinha aqui”, diz a garçonete, Laura Garcia.

Escobar foi morto dois anos depois, na mesma época em que a Colômbia entrou em negociação para desmobilizar grupos paramilitares no âmbito nacional, incluindo três milícias que atuavam em Medellín e no departamento de Antioquia, onde se localiza. Foi o primeiro processo dessa natureza para lidar com o conflito urbano da cidade.

A Comuna 13, em Medellín: comunidade era um dos locais mais violentos da cidade e hoje é frequentada por milhares de pessoas Foto: Luiz Henrique Gomes/Estadão

O efeito desses dois fenômenos foi uma queda nos homicídios nos anos subsequentes. Até 2003, no entanto, a taxa de assassinatos ainda era superior a 107 por 100 mil habitantes (em comparação, a cidade mais violenta do Brasil em 2023, Camaçari (BA), teve taxa de 90,9). O ano foi marcado por um acordo entre os líderes criminosos que ocuparam o lugar de Pablo Escobar e reverbera até hoje, mas também marca o começo de políticas públicas que transformaram a cidade.

No miolo da mudança, está o projeto urbanístico que integrou zonas mais ricas e mais pobres com trens, metrôs e teleféricos e ampliou a presença do poder municipal. A integração facilitou a circulação de pessoas dentro da cidade, causando a impressão de que está sempre povoada. No cotidiano dos moradores, ir ao trabalho em zonas centrais e às universidades se tornou mais fácil e rápido.

As comunas, como são conhecidas as favelas de Medellín, passaram a receber mais de 5% do orçamento municipal, e o investimento em escolas primárias, bibliotecas e centros de saúde cresceu. Esses locais se tornaram centrais para a prefeitura investir em programas de prevenção à violência, o que evitou o aliciamento de crianças e jovens para o crime organizado. “Eu deixei de estar sozinho na rua, porque minha mãe trabalhava e eu não tinha mais ninguém em casa, para estar na escola”, conta o rapper Dabu, de 25 anos, morador da Comuna 13. “E em uma dessas tardes na escola eu conheci a cultura hip-hop.”

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O policiamento comunitário e o investimento em inteligência policial também tornou o combate ao crime eficiente, mesmo com algumas áreas ainda controlada por criminosos.

O dinheiro também ajudou na transformação. A maior parte dos projetos de infraestrutura foram financiados pela Empresa Pública de Medellín, que vende serviços de eletricidade, gás, água, esgoto e telecomunicações para toda a Colômbia e América Latina. Um terço dos lucros da empresa é revertido para o município. Os investimentos privados também cumpriram papel importante.

Todo o esforço reduziu pela metade o número de pessoas em extrema pobreza entre 2008 e 2016. Há pesquisas que mostram que cinco anos após a inauguração da primeira linha de teleférico, que conectou a favela local mais pobre, a Comuna 1, com as zonas mais desenvolvidas, a renda dos habitantes da favela cresceu 56%.

Segundo o cientista político e co-fundador do Instituto Igarapé, Robbert Muggah, os êxitos de Medellín resultam do foco prioritário na redução de violência. “Houve a combinação de um planejamento corajoso com a coleta cuidadosa de dados para identificar as áreas de risco e implementar programas de policiamento e bem-estar”, afirma. “A cidade entendeu no processo que o caminho para reduzir os homicídios exigia o controle de fatores de risco, como a grande desigualdade social, o fortalecimento da proteção social e a eficiência do sistema judicial.”

‘Donbernabilidad’: a organização do crime e o impacto nos homicídios

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Voltemos a 2003. A morte de Pablo Escobar completa dez anos e Medellín está sob o comando de um novo capo: Diego Fernando Murillo, vulgo Don Berna. O novo líder do narcotráfico havia reunido um exército de criminosos ao longo da década em que ascendeu ao poder. No ano anterior, ele havia vencido uma guerra contra os paramilitares do Bloque Metro que deu a ele o controle de todas as zonas onde o crime estava presente.

A partir daí, Don Berna estabeleceu um outro tipo de governança. Ele entendeu que menos mortes significava mais lucros e estabeleceu uma hierarquia: ele no topo, 19 substruturas no meio e 400 grupos locais na base. O território foi dividido entre os combos (grupos criminosos menores, como as pandillas da América Central) para evitar disputas e regras foram estabelecidas.

Imagem mostra o narcotraficante e paramilitar Don Berna (centro) após se render à Polícia Nacional da Colômbia em 2005. Don Berna continuou comandando as ruas da prisão até ser extraditado para os EUA em 2008 Foto: Felipe Caicedo/El Tiempo/via Reuters

Uma delas é, por exemplo, não roubar. “Assim, o negócio da venda de drogas tem menos problemas”, afirma o pesquisador Santiago Tobón, da Universidade EAFIT.

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A estrutura ganhou o nome de Donbernabilidad. O quanto ela é responsável pelos homicídios permanecerem baixos? “Quando Don Berna foi extraditado para os Estados Unidos, em 2008, o cartel ficou sem liderança. Uma nova guerra começou e a violência voltou a aumentar em Medellín em 2009″, responde Tobón. “Nessa guerra, um grupo venceu. Mas os líderes foram presos e extraditados. A estrutura que temos hoje permanece a estabelecida por Berna. Há 19 substruturas e 400 combos, sem que nenhuma domine o resto”.

‘El honor es eterna’: políticas facilitaram mediação de conflitos

Na movimentada avenida Carrera 70, no bairro de Laureles, uma pichação na parede diz: El honor es eterna (A honra é eterna, em português). A frase lembra que, em Medellín, a última vez que o pacto entre as gangues foi quebrado faz 15 anos.

Nos principais países da América Latina, a disputa por territórios entre facções criminosas faz parte da lógica natural do crime. Mais território significa mais dinheiro com atividades ilícitas. Mais dinheiro é mais poder. É assim no Brasil, onde as disputas entre facções elevam a violência nas diversas regiões do país; em Honduras, onde a guerra entre as pandillas (gangues) Mara Salvatrucha e Barrio 18 assolam as maiores cidades de San Pedro Sula e Tegucigalpa; e, até pouco tempo atrás, também era assim em San Salvador, em El Salvador.

Em Medellín, no entanto, há uma paz duradoura que foi facilitada pela estrutura de Don Berna, mas que também converge com as políticas de cidadania implementadas nos últimos 20 anos. O aumento da presença do poder municipal nas áreas mais pobres, onde os combos estão presentes, fortaleceu líderes comunitários e a experiência acumulada em negociações de paz resulta em mediações para evitar o derramamento de sangue. Faz parte da cultura de paz que a cidade cultua.

A tática é informal e não-reconhecida pela prefeitura de Medellín. Também não é exclusiva da cidade. Chamada de dissuasão focada, ela opta por desencorajar os chefes de facções de atos violentos. Um exemplo similar aconteceu em São Paulo em 2006, quando o governo estadual fez acordos com o PCC (fato negado pelas autoridades). Mais recentemente, a Cidade do México fez o mesmo.

O problema da tática, segundo analistas, acontece em longo prazo. A dissuasão reduz a violência, mas também permite as gangues se consolidarem.

Tal consolidação é evidente em Medellín. Em diversas comunas, os combos são as principais autoridades de governo, e não a prefeitura. São eles, em determinadas áreas, os responsáveis por prevenir roubos, cobrar devedores e resolver ameaças, identificou uma pesquisa dirigida por Santiago Tolón em 2020.

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O tráfico de drogas também é aceito nestas áreas sem nenhum tabu. E em troca desses serviços, os moradores precisam pagar uma taxa de extorsão – problema que a prefeitura de Medellín reconhece, mas não consegue dissuadir por completo.

Imagem mostra Comuna 13, em Medellín. Políticas de integração facilitaram paz e mediação de conflitos na cidade Foto: Luiz Henrique Gomes/Estadão

Segundo Tolón, há um outro fator que evita as guerras: a resposta do Estado. “Algo que facilita a paz é que há uma maior capacidade do Estado. Na época de Pablo Escobar, pagava-se mil ou dois mil dólares por policial morto. Hoje isso está proibido. A última vez que mataram um policial em Medellín faz cinco ou seis anos. À medida em que o crime se organiza, o Estado também se torna mais capaz de responder e de reagir”, declara. “Hoje, por exemplo, uma grande preocupação para as autoridades são os homicídios por convivência, feminicídio e outros tipos de homicídios que antes eram menos visíveis.”

Os novos desafios: prostituição infantil e mortes de turistas

Uma vez que a violência relacionada às quadrilhas urbanas continua a cair, outros problemas em Medellín ficam visíveis. A fama da cidade transformada, viva e multicultural, atraiu turistas do mundo inteiro.

Uma crítica comum nas ruas com relação aos visitantes é que chegam apenas com duas intenções: em busca de drogas e sexo. “Medellín é uma cidade linda, com muitas coisas para se conhecer, mas os estrangeiros não querem isso”, declara o recepcionista de um hotel no bairro de El Poblado, que não quis se identificar.

Entre 2010 e 2022, mais de 3 mil vítimas de exploração, abuso e outros crimes sexuais contra crianças e adolescentes foram contabilizadas em Medellín, segundo dados oficiais da prefeitura, da polícia e do Ministério Público. A maioria dos casos está concentrada em El Poblado, o bairro mais turístico da cidade, e o crime também controlado por quadrilhas.

A prostituição é legalizada quando praticada por vontade própria e a partir dos 18 anos, mas desde abril está proibida pela prefeitura na zona de El Poblado por causa do alto número de exploração infantil. O município também reduziu os horários dos estabelecimentos de venda e consumo de bebidas alcoólicas em um parque do bairro.

Cartaz da prefeitura de Medellín de prevenção à exploração sexual. Problema é novo desafio para a cidade Foto: Prefeitura de Medellín / Divulgação

Em alguns casos, a exploração sexual termina em morte de turistas. Mas essa não é a única causa: os suicídios também chamaram a atenção dos jornais em maio. De acordo com a Polícia Nacional, cinco estrangeiros se mataram em Medellín este ano. Os especialistas atribuem a principal causa ao histórico psicológico dos suicidas, não relacionados à cidade. Mas dizem que surtos podem ser facilitados pelo fácil acesso a drogas mais puras e potentes.

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Os desafios, reconhecidos pela prefeitura, mostram uma nova etapa de Medellín para o combate ao crime e a valorização da vida. Mas, ante a redução das taxas de homicídio nos últimos 40 anos, a confiança de que os novos problemas podem ser superados é alta.

Enquanto isso, a cidade deixa cada vez mais no passado o rótulo de “a mais violenta do mundo” para recuperar um outro conhecido entre os moradores. “A eterna primavera. É assim que a chamamos”, diz o rapper Dabu.

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