BAMAKO - No último domingo de março antes do Ramadã, centenas de mercadores e moradores lotavam o mercado de Moura, na região central do Mali, negociando gado em um vasto curral e se abastecendo de especiarias e vegetais nos arenosos becos do vilarejo.
De repente, cinco helicópteros voando baixo trovejaram sobre suas cabeças, alguns disparando metralhadoras e atraindo disparos de alguns militantes em resposta. As pessoas corriam para salvar suas vidas. Mas não havia para onde correr: os helicópteros deixaram soldados nas imediações da localidade para bloquear todas as saídas.
Os homens estavam atrás de militantes islâmicos que operam na região há anos. Muitos dos soldados eram malineses, mas eles estavam acompanhados de estrangeiros brancos, que trajavam uniformes militares e falavam uma língua que não era inglês nem francês, disseram os locais. Segundo diplomatas, autoridades e grupos de defesa de direitos humanos, eles pertencem ao grupo paramilitar russo conhecido como Wagner.
Nos cinco dias seguintes em Moura, os soldados malineses e seus aliados russos saquearam residências, fizeram cidadãos reféns e executaram centenas de homens, segundo testemunhas de Moura, políticos e ativistas malineses, assim como autoridades militares ocidentais e diplomatas.
Execução
Tanto os soldados malineses quanto os mercenários estrangeiros mataram prisioneiros – civis e militantes desarmados – com disparos a curta distância, com frequência sem interrogá-los, com base em sua etnia ou seus trajes, disseram testemunhas.
Todas as vítimas eram de etnia fulani, segundo testemunhos coletados pela Human Rights Watch. Corinne Dukfa, diretora da entidade para o Sahel, afirmou que isso empurrará mais fulanis para os grupos armados.
Os estrangeiros saquearam todo o vilarejo, matando pessoas indiscriminadamente, roubando joias e confiscando telefones celulares para eliminar qualquer prova visual. Mas, usando imagens de satélite, o New York Times identificou as localizações de pelo menos duas covas coletivas, que correspondem aos locais descritos pelas testemunhas. Autoridades e as Forças Armadas do Mali não responderam aos pedidos de comentário.
O Mali tem combatido militantes armados há uma década, inicialmente com ajuda da França e depois com auxílio de forças europeias. Mas, à medida que se deteriorou a relação entre Paris e a junta militar malinesa, que tomou o poder no ano passado, as forças francesas saíram do país, e o Grupo Wagner entrou – uma manobra denunciada por 15 países europeus, Canadá e EUA.
O Departamento do Tesouro dos EUA classifica o Grupo Wagner como uma “força indireta” do Ministério da Defesa da Rússia. Analistas o descrevem como um braço da política externa russa exercendo atividades como uso de mercenários.
Desde que o grupo apareceu na Ucrânia, em 2014, seus operadores foram identificados atuando na Líbia, na Síria e em países da África Subsaariana, incluindo República Centro-Africana, Moçambique, Sudão e agora o Mali. Eles se aliam a líderes políticos e militares combalidos, mas capazes de pagar por seus serviços – ou remunerá-los por meio de lucrativas concessões de extração de minerais preciosos, como ouro, diamantes e urânio.
Vitória
O governo malinês elogiou o ataque em Moura, qualificando a ação como uma grande vitória na luta contra grupos extremistas, alegando ter matado 203 combatentes e detido mais de 50, mas sem nenhuma menção a mortes de civis. O governo negou a presença de operadores do Wagner, afirmando apenas que mantém um contrato com a Rússia para o envio de “instrutores”.
O chanceler russo, Serguei Lavrov, afirmou em maio na TV italiana que o Grupo Wagner estava presente no Mali “comercialmente”, fornecendo “serviços de segurança”.
Testemunhas e analistas dizem que o número de mortos em Moura foi de 300 a 400, segundo estimativas modestas, e a maioria das vítimas era civil. “De segunda-feira a quinta-feira, a matança não parou”, afirmou Hamadoun, um alfaiate que trabalhava próximo ao mercado quando os helicópteros chegaram. “Os brancos e os malineses matavam juntos.” Bara, um negociante de gado de Moura, afirmou: “Eles mataram todos os jovens daqui”.
Militares malineses colecionam massacres
O número de mortes no massacre de Moura é o mais alto em uma longa lista de abusos cometidos pelas Forças Armadas do Mali. Segundo diplomatas e observadores de direitos humanos, as execuções aumentaram desde que os militares começaram a conduzir operações conjuntas com o Grupo Wagner, em janeiro.
Na região central do Mali, cerca de 500 civis foram mortos nas operações conjuntas, incluindo em Moura, segundo relatórios da missão da ONU no Mali obtidos pelo New York Times e uma base de dados compilada por Héni Nsaibia, pesquisador do projeto Armed Conflict Location & Event Data. Alguns abusos podem ser qualificados como crimes contra a humanidade, diz a ONU.
A missão da ONU afirma que a quantidade de violações cometidas pelos militares malineses aumentou dez vezes entre o fim de 2021 e o primeiro trimestre deste ano. Em Moura, há indícios de estupros, saques e prisões arbitrárias”.
As violações de direitos humanos no Mali seguem um padrão de abusos – que incluem tortura, espancamentos e execuções sumárias – similar ao relatado em outros países em que os mercenários do Grupo Wagner foram acionados.
‘Lenda’
Acredita-se que o grupo seja liderado pelo oligarca russo Yevgeni Prigozhin, aliado do presidente Vladimir Putin. Em resposta a questões enviadas pelo Times, Prigozhin elogiou o governo do Mali e negou a presença de russos no país, afirmando que a existência do grupo é “uma lenda”.
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