Análise | México e Brasil, democracias ameaçadas de morte?

Riscos de autoritarismo nos dois países residem em pontos distintos e até opostos: Lá, o risco é de um hiperpresidencialismo; aqui, é do parlamentarismo orçamentário o Judiciário hipertrofiado

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Por Sergio Abreu e Lima Florêncio (Interesse Nacional)

México e Brasil são países latino-americanos com muitas convergências (as maiores economias, os maiores territórios, os mais influentes no plano internacional) e muitas divergências: o México teve a primeira grande revolução do século 20, a Revolução Mexicana de 1910, o Brasil nunca viveu uma revolução no sentido pleno; no século 19, o México foi país de caudilhos e guerras civis, enquanto o Brasil teve uma monarquia durante 50 anos, com algumas rebeliões na Regência, mas estabilidade institucional; o Partido Revolucionário Institucional (PRI) dominou a política mexicana por 71 anos – a “Ditadura Perfeita”, cunhada por Vargas Llosa —, enquanto o Brasil, desde a Proclamação da República, é uma democracia, com alternância no poder, mas tutelada pelos militares.

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As divergências ideológicas se agigantaram em 2018: o México teve seu primeiro presidente de esquerda – Andrés Manuel López Obrador (AMLO), e o Brasil, seu primeiro presidente eleito de extrema-direita – Jair Bolsonaro. Cinco anos mais tarde, com Lula III e AMLO, as ideologias se aproximaram, mas outra divergência marcante surgiu, dessa vez, no modelo político – no México, hiper-presidencialismo com Congresso aliado; no Brasil, semipresidencialismo com Congresso hostil.

Esse desequilíbrio entre os Poderes nos dois países fragiliza as instituições e a eficiência das políticas públicas. A pergunta inescapável é: a democracia está ameaçada de morte? A resposta exige um exame da trajetória política do México, desde a eleição de López Obrador, e do Brasil, com a vitória de Jair Bolsonaro.

A ‘Ditadura Perfeita’ foi embora, mas abriu caminho à democracia?

López Obrador foi o verdadeiro ponto de inflexão na política mexicana, pautada até então pela hegemonia do PRI, com breve interregno de dois sexênios do Partido da Ação Nacional (PAN), de 2000 a 2012. Como reconhecido ícone do populismo latino-americano, AMLO rompeu em 2011 com seu Partido da Revolução Democrática (PRD) e fundou o Movimento de Regeneração Nacional (Morena). Eleito presidente, AMLO desenvolveu hábil política de comunicação, que consistia em conferências diárias à imprensa, às 7h da manhã, conhecidas como Mañaneras, transmitidas em redes sociais e no YouTube, com forte impacto junto à população.

Em seu mandato houve aumento real do salário mínimo de 82%, sendo de 27% o ganho no setor industrial. O efeito dessas políticas foi a retirada de 8,9 milhões de mexicanos da extrema pobreza. Outros programas sociais, ligados à promoção de cooperativas agrícolas e indígenas e à criação de universidades comunitárias no interior do país colheram forte apoio da população de renda mais baixa.

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López Obrador rompeu em 2011 com seu Partido da Revolução Democrática (PRD) e fundou o Movimento de Regeneração Nacional (Morena). Eleito presidente, desenvolveu hábil política de comunicação. Foto: Alfredo ESTRELLA/AFP

Ocorreram também reformas sociais importantes, como a reforma trabalhista de 2019, que rompeu o monopólio do movimento sindical vinculado ao Estado e o modernizou. A política econômica de AMLO teve como saldo positivo a taxa de desemprego de 3%, uma das mais baixas da América Latina, mas um crescimento médio modesto de apenas 0,8% do PIB e o maior déficit fiscal dos últimos 25 anos, de 6% do PIB.

Como tradicionalmente, a economia mexicana se beneficiou de elevadas remessas (correspondentes a 4% do PIB) oriundas da diáspora dos 10 milhões de trabalhadores que emigraram para os Estados Unidos e dos 27 milhões de descendentes que lá vivem. A imigração é sempre tema relevante. Pressionado pelo governo norte-americano, o México de AMLO procurou desempenhar o papel de filtro – impedir a passagem de hordas de imigrantes centro-americanos a caminho dos EUA – mas pouco resultado obteve.

A escalada do narcotráfico e do crime organizado foi o grande desafio de López Obrador. Como os antecessores, não conseguiu responder com êxito. Desde 2006, quando os militares entraram na guerra contra os carteis, o saldo da violência é de 450 mil mortos e 100 mil desaparecidos. AMLO militarizou ainda mais o combate ao crime organizado, com a criação de uma Guarda Nacional sem resultados concretos. Nas eleições de 2024 foram assassinados mais de 30 candidatos.

Ao contrário do esperado para um político com tradição democrática, López Obrador atacou fortemente as instituições representativas, os órgãos de controle e o Instituto Nacional Eleitoral (INE). Esse último foi vítima de redução drástica de recursos financeiros, de demissão maciça de funcionários, e de perda de atribuições. AMLO tinha o claro objetivo de desacreditar e controlar o processo eleitoral, de forma a reduzir as chances de vitória oposicionista, e por isso sofreu fortes críticas da imprensa, de entidades de direitos humanos e de ONGs.

Outra vertente da investida de AMLO contra as instituições foram ataques sistemáticos aos meios de comunicação, à mídia em geral, sobretudo à imprensa escrita e a jornalistas independentes.

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As Forças Armadas sempre tiveram papel secundário na política mexicana. Entretanto, López Obrador não só promoveu a militarização do combate ao narcotráfico e ao crime organizado, como aparelhou diversas instituições civis com aporte de oficiais militares e policiais.

México e Brasil, democracias ameaçadas?

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Como registrado no início deste texto, no México, paradoxalmente o ícone da esquerda latino-americana (López Obrador) imitou o ‘mito’ da extrema-direita no Brasil (Jair Bolsonaro), ambos com ataques calculados às instituições representativas.

O populista mexicano terminará o mandato, em outubro de 2024, com 60% de aprovação popular (o triplo da obtida pelo antecessor do PRI, Peña Nieto). Sua sucessora, a correligionária Claudia Sheinbaum, experiente política e respeitada acadêmica, poderá ou não seguir seus passos.

No Brasil, Bolsonaro perdeu a reeleição, o grande líder da esquerda condenado (Lula) resgatou seus direitos políticos, venceu a eleição com margem mínima de votos (1,8% do total) graças ao apoio do centro liberal. Mas, minoritário no Congresso, foi impelido a se aliar ao Centrão, de ampla maioria conservadora, e marginalizou os liberais, que foram decisivos em sua vitória. Até hoje usa retórica radical, destinada a agradar o PT raiz, com ataques verbais à taxa de juros, ao presidente do Banco Central, com apoio a ditaduras latino-americanas, ao invasor na guerra da Ucrânia e com arroubos verbais, ao comparar a barbárie das Forças Armadas Israelenses (FDI) na Faixa de Gaza ao Holocausto.

Diante desse quadro, os analistas se dividem quanto ao futuro da democracia. Para onde vai o México – depois de Obrador fazer sua sucessora, que terá super-maioria no Congresso, inclusive para aprovar Propostas de Emenda Constitucional (PECs) antidemocráticas? Para onde vai o Brasil – com Lula enfrentando um bolsonarismo reacionário, resiliente, com forte militância nas ruas, e um Congresso conservador, poderoso no orçamento e hostil na política?

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Candidata presidencial do México pelo partido Morena, Claudia Sheinbaum, comemora após os resultados das eleições gerais na Cidade do México, em 3 de junho.  Foto: Gerardo Luna/AFP

Duas visões do México pós-López Obrador

O analista Jorge Suárez-Vélez, no artigo Seguimos sin entender, de 6 de junho de 2024, para o jornal Reforma, revela que o clientelismo dos programas sociais de AMLO atingiu 42 milhões de pessoas, contingente muito superior aos 22 milhões que não votaram pelo partido Morena, criado pelo presidente. Além dessa ampla base popular, o partido do governo conta com o apoio de mais de dois terços dos deputados e, assim, pretende alterar a Constituição, a fim de permitir que juízes da Corte Suprema sejam eleitos por voto direto do povo. A esmagadora vitória eleitoral de Sheinbaum e a ampla maioria do novo governo no Congresso levaram Suárez-Vélez a concluir com pessimismo. “Voltamos ao PRI dos anos 70. Mas, diferentemente daquele que operava com certo pudor, diante da falta de legitimidade democrática, este (Morena) a tem. O Estado de direito com que sonhamos está cada vez mais distante.”

Jorge Zepeda Patterson, em artigo para o Milenio, de 6 de junho de 2024, intitulado Claudia y los riesgos del autoritarismo, interpreta a esmagadora vitória eleitoral de Sheinbaum como um “enorme cheque em branco” para o partido Morena. Assinala que “em qualquer cenário em que o poder carece de contrapesos, há possibilidade de exercício unilateral da autoridade”.

Apoiadores se reúnem para ouvir Andrés Manuel López Obrador proferir seu último discurso sobre o Estado da União no Zócalo, a praça principal da Cidade do México. Foto: AP Photo /Eduardo Verdugo

Patterson lembra que em 2018 o povo queria mudança, o que levou AMLO à Presidência, mas seu mandato popular não teve força suficiente para descartar a essência do jogo político, que ficou preservado pelas instituições de controle e pela chamada “guerra jurídica”. A vitória eleitoral contundente de Sheinbaum é aquele ponto de inflexão que abre a janela de oportunidade para superar as limitações jurídicas impostas a AMLO.

O risco desse quadro é fazer emergir um poder absoluto destinado a “dobrar o derrotado e deixar os demais entrincheirados no ressentimento e na amargura da vitimização.” Patterson reconhece o êxito de López Obrador em melhorar a distribuição de renda em um país tão desigual, mas, ao mesmo tempo, adverte que o contrapoder para Scheinbaum consiste na realidade mesma. Isso leva o analista a concluir com lucidez que o modelo de AMLO se esgotou, sendo necessário um crescimento substantivo e que “todos os sinais apontam para uma estratégia de conciliação por parte do novo governo”. Patterson resume as propostas da “doutora” presidente como reveladoras de uma “esquerda com Excel”.

Duas visões do Brasil: Morte da democracia ou resistência das instituições?

No Brasil, a grande maioria dos analistas, como Stephen Levitsky, apontavam para a morte da democracia em 2018, caso o ‘mito’ fosse eleito. Ela se fragilizou, não morreu. Em contraste com essas análises, dois acadêmicos respeitados, como Marcus Melo e Carlos Pereira, contestaram aquele atestado de óbito e explicaram Por que a democracia brasileira não morreu, em recente livro com esse título.

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O best seller de Stephen Levitsky e Daniel Ziblat, Como as democracias morrem, embora sem analisar o caso brasileiro, teve enorme impacto em nosso país, então ameaçado de perder a democracia conquistada em lutas de 21 anos contra o regime militar e assegurada pela Constituição Cidadã de 1988. O perigo, no momento da publicação do livro, era a eleição de Bolsonaro, visto por Levitsky como mais autoritário que o turco Tayyip Erdogan, o filipino Rodrigo Duterte e o venezuelano Hugo Chávez. Com essa visão, fundamentada em numerosos exemplos históricos antigos (ascensão do nazismo) e recentes, Levitsky visitou o Brasil, participou de entrevistas e seminários sempre alertando para o risco da morte da democracia no país, com a possível vitória de Bolsonaro.

O argumento central do livro se aplicava bem ao caso brasileiro. Diferentemente do passado, quando as democracias caíam com tanques nas ruas e golpes de Estado, no presente a morte era menos visível e traumática. Passou a ocorrer por meio do aparelhamento das instituições representativas, de condenação das elites dirigentes, de ataques aos três poderes e aos políticos tradicionais. Assim, a democracia era solapada nos seus pilares, e o que sobrava eram os outsiders da política, a retórica anti-sistema e os defensores do regime militar.

Lula durante uma conferência organizada pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil) e pelo CEBRAMEX (Conselho Empresarial Brasil-México) na Cidade do México. Foto: CARL DE SOUZA / AFP

A tese de Levitsky e Ziblat se aplicava com perfeição à trajetória política brasileira dos últimos anos – revoltas populares apartidárias de 2013 ignoradas pelo poder público; dois impeachments em menos de 15 anos; 14 anos seguidos de governos do PT, sem alternância no poder; graves acusações de ilegalidade (mensalão) e de corrupção (petrolão), com forte apoio popular às investigações da Lava Jato; e condenação de Lula, impedido de candidatar-se, substituído, no pleito de 2018 por Haddad, sem o carisma do ex-presidente.

O resultado foi a eleição de Bolsonaro e um governo que preparava o atestado de óbito da democracia, nos moldes previstos por Levitsky e Ziblat: crescente desgaste das instituições representativas; ataques aos órgãos de controle; aparelhamento da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal e das polícias militares estaduais leais ao bolsonarismo; forte crescimento das milícias, associadas ao governo; mais de 6.000 militares em funções civis; proliferação de redes sociais e de fake news, com mensagens anti- democráticas defensoras do bolsonarismo.

No jogo político, o governo Bolsonaro, sem quadros próprios (ao contrário do PT de Lula e do PSDB de Fernando Henrique), sem partido político (como membro do baixo clero, Bolsonaro pertenceu a cerca de dez partidos), sem estratégia política definida, o então presidente corria o risco de sofrer impeachment. Para evitar esse desfecho, se alinhou integralmente com diversos partidos do Centrão, que passou a monopolizar as decisões políticas e a eclipsar o Executivo. O Congresso transformou-se em quase dono do orçamento público, tendo como núcleo de resistência institucional apenas o Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF) – demonizado pelo presidente, por assessores e pelas redes sociais bolsonaristas, que dominavam o universo digital.

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Para as novas eleições de 2022, Lula teve sua condenação invalidada, lançou-se como candidato e derrotou Bolsonaro. Poucos dias após sua posse, em 8 de janeiro de 2023, os três poderes foram vítimas de vandalismo, com uma série de invasões e depredações do patrimônio público. Uma horda de bolsonaristas violentos invadiu a Praça dos Três Poderes, oriundos de diversas partes do país, muitos deles ocupantes durante semanas de acampamentos em frente a unidades do Exército, com o preocupante beneplácito dos comandantes. O objetivo era criar um clima de caos social, obter apoio das Forças Armadas, criar as condições para um golpe militar e restaurar Bolsonaro no poder. O comandante do Exército foi exonerado, o governador do Distrito Federal demitiu seu secretário de segurança pública, e logo depois foi ele mesmo afastado do cargo. Mais de 2.100 pessoas foram presas por envolvimento no vandalismo e parte delas está sendo julgada.

A democracia foi desfigurada, desacreditada, ameaçada de morte pelo governo Bolsonaro. Mas não morreu. A tese de Levitsky e Ziblatt teve ampla aceitação na imprensa, nos meios acadêmicos e nas classes médias. Até que, em meados de 2024, dois renomados acadêmicos, Marcus André Melo e Carlos Pereira, contestaram aquela visão de uma democracia em risco existencial e defenderam tese divergente no livro Por que a democracia brasileira não morreu?

A democracia resistente – Por que a democracia brasileira não morreu?

Cinco anos antes da fracassada tentativa de golpe orquestrada por Bolsonaro, assessores civis e militares, Marcus Melo e Carlos Pereira, na contracorrente da academia, já sustentavam que um golpe de Estado no Brasil era uma possibilidade muito remota. Um ano e meio após o desastroso 8 de janeiro, os dois professores lançaram um livro que estimula reflexão não só sobre os riscos de ruptura do Estado de Direito, mas também sobre a capacidade de resistência das instituições, da imprensa e da opinião pública diante de ameaças antidemocráticas.

O fundamento teórico do livro de Melo e Pereira se origina, entre outros autores, na visão de Guillermo O`Donnell. “A democracia sempre estará em algum tipo de crise. … É uma perpétua ausência de algo mais, de uma agenda sempre pendente que clama pela reparação”.

Para os dois autores, “essa interpretação de crise permanente ou perpétua da democracia não poderia ser mais atual. … Em vários países democráticos, independentemente de seu arranjo institucional, as instituições políticas não têm desfrutado da confiança de seus cidadãos, sobretudo aqueles que fazem parte do lado perdedor. Existe uma espécie de mal estar generalizado com relação ao tema … como se a democracia não pudesse aguentar.”

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Assim, na perspectiva de Marcus Melo e Carlos Pereira, “esse mal estar … como se a democracia não pudesse aguentar " acabou gerando certo exagero em relação à ameaça de golpe de Estado no Brasil. Exagero que passou a dominar o meio acadêmico e a mídia, ao mesmo tempo em que se subestimavam fatores relevantes, tais como o alto grau de competição política, a multiplicidade de instituições, o peso dos órgãos de controle, uma imprensa extremamente atuante e investigativa.

Vale lembrar que o livro se destina a emular o debate a respeito da visão de ameaça existencial à democracia, e, obviamente, não a desmobilizar a sociedade civil contra um golpe de Estado. Em entrevista ao cientista político Claudio Couto, os dois autores lembram que uma sociedade civil muito mobilizada, mas sem instituições, leva à Primavera Árabe, ou a Hong Kong resistindo às investidas da China. Os embates entre Lula e o Banco Central, por exemplo, poderiam sepultar uma política monetária responsável, o que não ocorreu graças à resistência das instituições. É preciso não confundir a ineficiência (real) das instituições com sua impotência.

A base da tese de Melo e Pereira reside na resistência das instituições às investidas antidemocráticas de Bolsonaro. Esse mesmo, impotente diante de tantas Medidas Provisórias (MPs) derrotadas de forma recorrente pelo Congresso, curvou-se à instituição, e terminou sendo domesticado pelo Centrão. Presidentes populistas, por definição, são personalistas, messiânicos, o que os leva a cometer muitos erros.

Em estimulante capítulo Impeachment como bomba atômica: da distribuição à contenção, o livro abre novas janelas de interpretação sobre aquele episódio. “O impeachment é uma arma do museu de antiguidades constitucionais e isso não só na democracia brasileira, mas também no contexto latino-americano e no das democracias avançadas (como a dos Estados Unidos).”

Os autores distinguem com clareza os equívocos de política econômica praticados por Dilma Rousseff, que contribuíram para um impeachment por razões fiscais, da estratégia de desconstrução institucional de Bolsonaro, explicitada pelo chanceler Ernesto Araújo, em cerimônia de formatura no Instituto Rio Branco –”devemos ter orgulho de ser pária internacional”.

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Além de demonstrar a resistência das instituições, que tornaram remota a possibilidade de golpe de Estado no Brasil, o livro tem muita atualidade, ao focalizar o cerne de nosso sistema político no capítulo O presidencialismo de coalização e suas patologias imaginárias. Ancorados em Sérgio Abranches, os autores afirmam: “O dilema institucional do presidencialismo de coalizão referia-se à inexistência de uma instância de arbitragem dos conflitos entre o Executivo e o Legislativo, uma vez que crises de coalizão levavam a um “conflito indirimível” entre dois pólos fundamentais.”

Na citada entrevista a Cláudio Couto os autores explicaram as razões do perfil hiperbólico de atuação do STF e dos ataques tão recorrentes à instituição. Eles lembraram que o julgamento do mensalão não produziu ataques ao Supremo. Assinalaram que desde a decisão de rever o julgamento de Lula e de condenar algumas pessoas envolvidas no 8 de janeiro, esse padrão reativo do STF provocou comportamento público que pode ser degenerativo à ordem institucional.

Duas democracias ameaçadas, mas por razões muito diferentes

A transição presidencial no México, acompanhada de uma supermaioria do governo no Congresso, poderá produzir danos à democracia. A razão para isso reside no padrão adotado por AMLO – combate às instituições representativas, redução das atribuições do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), mudança na Constituição para eleger juízes da Corte Suprema e atribuição às Forças Armadas de um papel de protagonismo nunca antes assumido na história mexicana recente.

Embora esse padrão, acentuado nos últimos meses do mandato de López Obrador, possa fragilizar a democracia, um diagnóstico mais definitivo dependerá da atitude de Sheinbaum. Integrante do partido governista Morena, a presidente-eleita não poderá se afastar muito de seu patrono político. Caso venha a dar continuidade às críticas de AMLO à Suprema Corte e ao órgão eleitoral, a democracia mexicana ficará ameaçada. Assim, o risco democrático do México reside no hiper-presidencialismo e na consequente fragilização do Legislativo e do Judiciário.

Apoiadores de López Obrador protestam do lado de fora do Palácio Nacional enquanto ele faz sua última conferência diária. Claudia Sheinbaum tomará posse nesta terça-feira, 1º. Foto: Gerardo Luna / AFP

As ameaças de golpe de Estado no Brasil, ao longo do mandato de Bolsonaro e evidenciadas no vandalismo de 8 de janeiro, residem no capital político da extrema-direita bolsonarista, preservado mesmo com a inelegibilidade do ex-presidente.

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A forte polarização política tem como consequência o esvaziamento do centro liberal-democrata. Uma vitória contundente da oposição nas eleições municipais de novembro próximo poderá favorecer o bolsonarismo nas eleições presidenciais de 2026, com evidente prejuízo para a democracia em nosso país.

Outro ponto relevante é o rumo das relações entre os três poderes, com o parlamentarismo orçamentário vigente desde o governo Bolsonaro, e a hiperatividade do Supremo Tribunal Federal (STF). Embora o STF tenha sido o baluarte de democracia nos momentos mais ameaçadores do autoritarismo de Bolsonaro, e desenvolva verdadeira cruzada de combate às fake news e ao papel antidemocrático de figuras emblemáticas como Elon Musk, a hipertrofia do judiciário precisa ser contida, em benefício da própria democracia.

Em síntese, os riscos à democracia no Brasil residem em pontos distintos e até opostos dos prevalecentes no México. Lá, o risco é de um hiper-presidencialismo, combinado com um Congresso dócil, aprovar reformas constitucionais que tragam de volta a figura do presidente Imperial, que marcou os 71 anos do PRI. Aqui, o risco é de um parlamentarismo orçamentário distorcer as políticas públicas, travar embate com um Judiciário hipertrofiado e minar a governabilidade do presidencialismo de coalizão.

Análise por Sergio Abreu e Lima Florêncio

Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

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