MATAMOROS, México — O clarão de um relâmpago despertou Ernesto Roja por volta das 2h. Então os pingos da chuva começaram a cair ruidosamente sobre sua pequena barraca amarela. E de repente sua morada improvisada estava alagada, o golpe mais recente no sonho que levou ele e outras milhares de pessoas a um amplo acampamento de migrantes no México, a 800 metros da fronteira americana. A intensa tempestade que atingiu essa região no sábado aprofundou a crise humanitária que irrompe à medida que solicitantes de asilo se apressam para entrar nos Estados Unidos conforme o governo Biden aperta as regras de imigração.
Desde que começou a vigorar, na semana passada, a nova política americana operou em relativa calma, com detenções na fronteira em queda. Mas o desespero no acampamento inundado em Matamoros sublinhou a natureza volátil da situação, assim como dúvidas em torno da nova política.
Os novos limites do presidente Joe Biden sobre asilos poderão desencorajar migrantes de empreender uma caminhada que já era perigosa, cara e até dolorosa? Pessoas buscando escapar de pobreza extrema e violência terão paciência para esperar no exterior audiências de solicitação de asilo? O México será capaz de responder aos pedidos urgentes de Washington para deter migrantes a caminho dos EUA ao mesmo tempo que mantém a paz em lugares como Matamoros?
Crise migratória nos EUA
Pobreza e desespero
O comerciante Roja, de 52 anos, que chegou à fronteira duas semanas atrás, não foi dissuadido pelas novas restrições dos EUA nem pela tempestade que transformou o acampamento em um pântano. Ele contou que tem uma filha de 6 anos com síndrome de down e que não consegue ganhar dinheiro para pagar terapia para a menina porque a economia da Venezuela está aos frangalhos. “Como eu posso voltar para a Venezuela? Eu não tenho nenhum dinheiro”, afirmou ele.
Matamoros, do outro lado da fronteira a partir de Brownsville, Texas, revela consequências não pretendidas que emergem com uma mudança na política imigratória. No mês passado, mais venezuelanos começaram a aparecer na cidade, e o número de migrantes lotando os abrigos passou de 700 para mais de 6 mil, de acordo com Juan José Rodríguez, diretor do instituto de migração do Estado de Tamaulipas.
Alguns tinham ouvido rumores de que a entrada de imigrantes seria facilitada depois que uma restrição da época da pandemia, o Título 42, fosse suspensa, na noite da quinta-feira. Essa regra permitia que as autoridades americanas expulsassem sumariamente solicitantes de asilo.
“Eles passaram a acreditar que, quando o Título 42 fosse suspenso, a fronteira americana lhes seria aberta”, afirmou Rodríguez. Mas os migrantes recém-chegados souberam rapidamente que sua entrada seria apenas dificultada ainda mais.
Impondo dificuldades
A nova política do governo Biden exige que solicitantes de asilo marquem data e horário de suas entrevistas em um aplicativo, o CBP One, que é repleto de obstáculos. Eles podem ser desqualificados se já passaram por algum país no qual poderiam ter pedido refúgio, como o México. Quem for deportado passa a enfrentar um banimento de cinco anos para reentrada.
Temendo esses obstáculos, centenas de migrantes atravessaram o Rio Grande para solicitar asilo na quinta-feira, congestionando a margem texana do curso d’água, que foi revestida de arame farpado e guardada por agentes de fronteira dos EUA e soldados da Guarda Nacional.
Anteriormente na semana passada, as travessias ilegais chegaram a 10 mil por dia, mas na sexta-feira, a Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA registrou uma queda significativa, com apenas 6,3 mil detenções, de acordo com dados da agência obtidos pelo Washington Post. Mais 1,5 mil imigrantes foram registrados em pontos de entrada na sexta-feira.
Cautela para evitar o pior
Mas com aproximadamente 27 mil migrantes lotando as cidades fronteiriças, as autoridades mexicanas têm atuado cautelosamente para evitar que a situação se inflame. Agentes de migração, que geralmente não carregam armas, foram acionados na margem do Rio Grande em Matamoros na quinta-feira. Mas muitos migrantes ignoraram seus alertas para não cruzar para o lado americano.
O governo mexicano acionou um contingente extra de soldados da Guarda Nacional, mas os desarmou “com o objetivo de evitar confrontos com os grupos de migrantes”, afirmou na sexta-feira o ministro de Relações Exteriores, Marcelo Ebrard.
Não obstante, sob pressão dos EUA, o México prometeu continuar as operações para conter migrantes a caminho dos EUA iniciadas durante o governo de Donald Trump. Na sexta-feira, as autoridades deram um passo além, anunciando que suspenderiam autorizações que permitiam a migrantes indocumentados transitar no México. A manobra ocorreu após o fechamento temporário de 33 abrigos de migrantes, em razão de uma investigação que se seguiu a um incêndio letal ocorrido em março em um centro de detenção de Ciudad Juárez — o que deixou às autoridades menos espaços para abrigar migrantes indocumentados.
Fluxo descontrolado
O governo americano considera o México parceiro crucial na contenção do fluxo de imigrantes para o norte. Em 2022, as autoridades mexicanas detiveram cerca de 450 mil migrantes, mais que o triplo de 2018. Apesar de todos os seus esforços, porém, um número recorde de migrantes foi detido por agentes de fronteira dos EUA no ano passado.
O cientista político José María Ramos, do Colegio de la Frontera Norte, afirmou que foi difícil para o México surtir mais impacto por causa do “papel muito amplo dos traficantes” que contrabandeiam migrantes — frequentemente com auxílio de autoridades corruptas.
Além disso, afirmou ele, houve um “enorme incentivo” para as pessoas abandonarem países como Venezuela. Cerca de 7 milhões de venezuelanos deixaram a nação produtora de petróleo conforme sua economia minguou sob o regime de Nicolás Maduro.
Roja disse que partiu porque as sessões de terapia de sua filha, duas vezes por semana, custam US$ 25 cada — uma quantia principesca em um país onde o salário mínimo é de apenas US$ 6 ao mês. “E me disseram que a oportunidade (de entrar nos EUA) acabaria” quando o Título 42 fosse suspenso.
Como muitos venezuelanos a caminho dos EUA, Roja percorreu a pé os 96 quilômetros do Istmo de Darién, entre Panamá e Colômbia, tropeçando em pedras afiadas nas montanhas, ficando sem água potável e ouvindo relatos a respeito de viajantes estuprados ou assaltados. Ele gastou mais de US$ 1,6 mil na jornada, que levou um mês.
Nos dias recentes, Roja concentrou suas esperanças em obter uma audiência por meio do aplicativo CBP One. Mas quando a tempestade inundou sua barraca de US$ 20, seu telefone parou de funcionar. “Estou pedindo a Deus para ajudar todos nós a passar, com o aplicativo”, afirmou ele. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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