México põe imigrantes em ônibus rumo ao sul e frustra travessia para os EUA

Em resposta à pressão americana para conter fluxo migratório na fronteira, governo mexicano transporta discretamente milhares de pessoas para o outro lado do país

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Por Simon Romero (The New York Times) e Paulina Villegas (The New York Times)

Os ônibus chegam dia e noite, despejando migrantes em uma cidade que muitos nem sabiam que existia.

Em vez de desembarcarem mais perto da fronteira dos EUA, eles estão sendo levados a cerca de 1.600 quilômetros na direção oposta, no sul do México, em um programa obscuro destinado a aliviar a gestão Biden e mandar os imigrantes para longe dos Estados Unidos.

Imigrantes ouvem instruções no abrigo em Villahermosa, México.  Foto: Luis Antonio Rojas/The New York Times

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As autoridades mexicanas reconhecem o programa de deslocamento, mas o fizeram publicamente poucas vezes. Isso faz com que o movimento seja bem menos controverso do que os esforços de governadores republicanos para levar imigrantes a estados democratas, situação que se tornou um teatro político nos Estados Unidos.

Esse programa tem exposto o abismo entre a retórica do governo mexicano, que diz promover uma abordagem humanitária à migração, e o papel do país de atender aos interesses dos EUA na fronteira, deixando muitas famílias de migrantes abandonadas à própria sorte.

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Imigrantes de Honduras após serem detidas em posto de controle perto de Villahermosa. Foto: Luis Antonio Rojas/The New York Times
Agentes da imigração em centro em Villahermosa.  Foto: Luis Antonio Rojas/The New York Times

“Perguntei aos agentes, ‘Como vocês podem nos tratar como lixo?’” disse Rosa Guamán, 29, do Equador. Ela foi detida com seu marido e dois filhos por agentes de migração em abril, perto da cidade fronteiriça de Piedras Negras. Ninguém disse a eles que estavam sendo levados para Villahermosa, um polo petrolífero no sudeste do México, até estarem bem longe de onde partiram.

Em um abrigo lotado em Villahermosa, ela descreveu a viagem como a parte mais frustrante de uma jornada de meses, que incluiu atravessar trechos de selva, ameaças de agressão sexual e subornar autoridades mexicanas na esperança de chegar a Nova Jersey. “Estamos recomeçando do zero”, disse Guamán.

O Instituto Nacional de Migração do México se recusou a comentar a prática. Em jargão humanitário, as autoridades por vezes classificam a detenção e transferência de migrantes de “resgates” ou “dissuasão”, com o objetivo de aliviar as condições em áreas perigosas e superlotadas. Também usam o termo “descompressão”.

Menina brinca com a mãe na frente do abrigo para imigrantes.  Foto: Luis Antonio Rojas/The New York Times
Imigrante de Honduras levado de volta para o Oasis De Paz Del Espiritu Santo Amparito, abrigo para imigrantes. Foto: Luis Antonio Rojas/The New York Times

Mas o programa de deslocamento está longe de ser humanitário, de acordo com advogados de imigração, grupos de direitos humanos e operadores de abrigos no México. As regras para transportar migrantes para o sul, longe da fronteira, muitas vezes são obscuras.

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O venezuelano Ernesto Vasconcelo, que oferece aconselhamento jurídico a migrantes em Ciudad Juárez, do outro lado da fronteira de El Paso, Texas, disse que não há um banco de dados público para advogados ou familiares verem para onde os migrantes foram levados e qual é seu status atual.

Segundo ele, as autoridades mexicanas de imigração “se recusam a fornecer qualquer informação a qualquer um e não permitem que os imigrantes tenham representação legal”.

Em dezembro, o fluxo de imigrantes na fronteira EUA-México chegou ao nível mais alto já registrado. O secretário de Estado, Antony Blinken, foi à Cidade do México para reuniões de emergência para pressionar o governo mexicano a fazer mais para conter a migração.

Logo depois, voos fretados e ônibus começaram a desembarcar muitos deles em Villahermosa. A tática foi eficaz. Nos primeiros quatro meses de 2024, as detenções na fronteira dos EUA tiveram uma das quedas mais acentuadas em décadas, dando à gestão Biden algum alívio, já que a imigração continua como uma das principais preocupações dos eleitores nas eleições deste ano.

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Um funcionário de alto escalão da Casa Branca, que não estava autorizado a falar publicamente, disse que os Estados Unidos não ditam quais medidas o México deve tomar para conter a migração. Ele declarou que, embora os números tenham diminuído, os atravessadores são sofisticados, e ambos os governos precisam observar de perto o que acontece daqui em diante.

As autoridades mexicanas têm usado a tática de deslocamento ocasionalmente há anos, mas a expansão nos últimos meses destaca o endurecimento do país em relação à migração. disse que o transporte forçado era uma “prática destinada a desgastar os migrantes e a exauri-los”.

Para Eunice Rendón, coordenadora da Agenda Migrante, coalizão de grupos de defesa mexicanos, transferir os imigrantes para o sul, longe de seu destino pretendido, impõe não apenas um ônus emocional e físico, mas também financeiro, já que eles precisam gastar dinheiro com transporte, hospedagem e subornos toda vez que fazem a viagem para o norte.

O deslocamento faz parte de uma estratégia que permitiu ao presidente Andrés Manuel López Obrador de centralizar as relações com os EUA em torno da migração, afastando muitas críticas americanas explícitas em outras áreas como política comercial, gestão de recursos energéticos ou tratamento de opositores políticos.

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Há dúvidas sobre se os esforços do México são sustentáveis. O país relatou cerca de 240 mil detenções de imigrantes em janeiro e fevereiro, mas menos de 7.000 deportações nos mesmos dois meses, sugerindo que a maioria dos detidos permanece no país, com chance de seguir para o norte novamente.

O fluxo de imigrantes entrando no México vindo da América do Sul persiste. O Panamá disse que aproximadamente 109 mil pessoas cruzaram a selva que separa a América Central e do Sul, conhecida como estreito de Darién, nos primeiros três meses de 2024, um aumento de 14% em comparação com o mesmo período do ano passado.

Pessoas da Venezuela e América Central descansam na calçada perto do centro de processamento para imigrantes em Villahermosa. Foto: Luis Antonio Rojas/The New York Times
Venezuelana, levada de ônibus do Norte do México para o abrigo de Amparito, em Villahermosa.  Foto: Luis Antonio Rojas/The New York Times

Villahermosa é um dos principais destinos para onde os imigrantes são levados de ônibus. Os imigrantes dormem na rua em frente às rodoviárias e lojas de conveniência. Famílias inteiras pedem esmolas em cruzamentos movimentados.

Perto dali, pessoas sentam-se na calçada falando idiomas como hindi e russo. Karina del Carmen Vidal, gerente de um abrigo local para imigrantes, disse que sua instalação tem espaço para cerca de 160 pessoas e está lotada ou acima da capacidade há meses. Centenas de outras famílias alugam quartos em áreas próximas. “Os imigrantes chegam aqui em estado de choque”, disse Vidal. Em alguns casos, segundo ela, eles foram levados várias vezes para Villahermosa.

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Um homem russo no abrigo contou ter sido detido em março por autoridades de migração na Cidade do México, pouco antes de embarcar em um voo para Tijuana. Incapaz de falar espanhol ou inglês, teve dificuldade em entender o que estava acontecendo.

Ninguém explicou nada, disse o homem, de 34 anos, que pediu para não ser identificado. Usando o Google Tradutor, ele disse que desertou do Exército russo com o objetivo de chegar à Califórnia e tinha medo de que parentes na Rússia pudessem virar alvo se ele fosse identificado.

Desertor do Exército russo, que afirma ter sido detido na Cidade do México e levado para Villahermosa.  Foto: Luis Antonio Rojas/The New York Times
Agentes da imigração inspecionam van no posto de controle em Villahermosa.  Foto: Luis Antonio Rojas/The New York Times

Com autoridades mexicanas se recusando a fornecer detalhes, o número de pessoas levadas ao sul é desconhecido.

Milhares de migrantes estrangeiros foram enviados para Villahermosa e para outra cidade do sul, Tapachula, de acordo com especialistas em migração, advogados e líderes religiosos.

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Quando são deixados, algumas pessoas optam por ficar e pedir asilo no México. Outras recebem um “aviso de saída” oficial, que lhes dá até 30 dias para deixar o país –tempo suficiente para tentar ir para o norte novamente.

Outros disseram que foram simplesmente deixados na rua, sem serem levados ao centro de registro de migrantes.

Tonatiuh Guillén, que chefiou o Instituto Nacional de Migração do México no início do governo de López Obrador, disse que, durante sua gestão, a agência realocava números menores de migrantes, principalmente da América Central. Ele disse que era considerado mais fácil registrar os migrantes e prepará-los para deportação em cidades do sul do México.

Guillén descreveu a política atual de deslocamento como uma espécie de “carrossel” em que as pessoas são forçadas a tentar várias vezes atravessar a fronteira entre os EUA e o México, pagando subornos repetidamente a autoridades de migração e policiais durante cada tentativa. “É um cenário perverso para os migrantes”, disse.

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Agentes nacionais procuram por imigrantes em posto de controle. Foto: Luis Antonio Rojas/The New York Times

A crítica ao programa de transporte por autoridades locais em Villahermosa tem sido comedida. Não chega a surpreender, uma vez que os arredores de Tabasco são um pilar de apoio a López Obrador.

Tanto o prefeito interino de Villahermosa quanto o ex-prefeito, que está concorrendo à reeleição, não responderam aos pedidos de entrevista da reportagem. O governador do estado de Tabasco se recusou a comentar. Todos são membros do Morena, partido do presidente.

Ainda assim, a mídia local tentou vincular o fluxo de migrantes a temores de crime, chamando a atenção para os casos de um senegalês acusado de roubar telefones celulares e de outro migrante que teria embarcado em um ônibus para pedir dinheiro e depois agredido o motorista.

Roberto Valencia Aguirre, um padre católico, disse que teve que abandonar um plano de abrigar migrantes em uma igreja em uma parte rica da cidade depois que fiéis manifestaram objeções. “Foi uma reação muito desagradável de algumas pessoas que disseram: ‘Não, padre, não queremos imigrantes aqui.’”

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