O Nobel da Paz argentino Adolfo Pérez Esquivel é crítico contundente de Javier Milei: “Ele se legitima com ações contra o povo”, disse referindo-se às políticas recessivas — ou o “remédio amargo”, nas palavras do presidente libertário. Por um lado, o corte de gastos reduz o déficit fiscal do governo, por outro, os argentinos empobrecem e a fome avança no país.
“Para nós, enquanto República, é um retrocesso”, afirma Esquivel. “Estamos tentando evitar que Milei destrua todas as instituições que custaram tanto”, justifica.
O documento assinado por ativistas e intelectuais argentinos, foi enviado ao Congresso há pouco mais de um mês e pede a investigação do libertário por mau desempenho de suas funções e possível cometimento de crimes. Em entrevista concedida ao Estadão por telefone, Esquivel defendeu o avanço da investigação, embora admita que o clima para avançar um impeachment contra Milei dependerá do Congresso.
O pedido pede a investigação tanto do presidente quanto de outros membros de seu governo por diversos possíveis crimes, entre eles: instigação da população a cometer um ou mais crimes específicos; apologia ao crime e incitação à prática de crimes financeiros com possível impacto na divisão de poderes e crime de abandono de pessoas e descumprimento de funções de funcionário público, entre outros.
O documento chega em um momento delicado do governo Milei, que tenta construir governabilidade. Elogiado pelos EUA e pelo FMI por ter alcançado o primeiro superávit fiscal do país em 16 anos, Milei também é alvo de avisos sobre os riscos de reduzir o déficit fiscal às custas da queda no consumo e da pobreza.
“Diz que não há dinheiro para as universidades, não há dinheiro para os centros de pesquisa científicas mas, sim, há dinheiro para comprar aviões de guerra”, critica. Esquivel foi laureado com o prêmio Nobel da Paz em 1980 por seu trabalho em defesa dos direitos humanos na cidade de Medellín, na Colômbia, onde coordenou a fundação Servicio Paz y Justicia en América Latina (SERPAJ-AL).
Confira trechos da entrevista:
Mais sobre a crise na Argentina
O senhor integra o grupo com intelectuais que apresentou o primeiro pedido de impeachment contra Javier Milei. O que pensa do governo?
O governo Milei tomou posse do país como se fosse o dono dele. Está destruindo todas as instituições do Estado e as instituições privadas. É um homem que não tem limites. Já não é mais uma democracia, é uma autocracia.
Diz que não há dinheiro para as universidades, não há dinheiro para os centros de pesquisa científicas mas, sim, há dinheiro para comprar aviões de guerra. Comprou 24 aviões de guerra da Dinamarca, os F-16, por mais de US$ 300 milhões e ainda precisa adequar esses aviões, equipá-los com armamento moderno dos Estados Unidos.
Para isso há dinheiro. Mas para educação, para saúde, não. Pacientes com câncer morreram por falta de medicamentos que antes eram fornecidos pelo Estado. [Organizações sociais que acompanham pessoas com doenças críticas na Argentina denunciam que, no período de quatro meses, foram ao menos sete mortes de pacientes que esperavam para receber remédios essenciais para os seus tratamentos].
O governo não acredita no próprio Estado porque direciona tudo para a política de mercado. Ou seja, as empresas privadas têm que cuidar de tudo. E o que chamam de economia livre, não é economia livre. Isso é uma mentira. Nenhuma economia livre impõe os preços dos mercados internacionais. Então, realmente estamos muito preocupados com a situação argentina.
Para entender
Estamos tentando evitar que Milei destrua todas as instituições que custaram tanto. Tudo é reduzido à necessidade de zerar o déficit mas, para zerar o déficit, não paga ninguém e demite os trabalhadores dos ministérios. Com isso, vai zerar o déficit, mas essas dívidas ficam e em algum momento terão que ser pagas. (O governo) paga ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e mais ninguém. Esse é o panorama que temos: um governo que se legitima com ações contra o povo argentino.
Há clima político para avançar o impeachment?
Espero que sim. Tudo vai depender do Congresso.
Mas não é muito cedo? Milei venceu a eleição com 55% dos votos e se mantém popular. O impeachment não estaria desconsiderando a escolha desses eleitores?
Muita gente que votou (em Milei), atualmente é vítima dessas políticas. São pessoas que têm trabalho, mas não conseguem alugar uma moradia, não sabem o que fazer com a lei de aluguéis. Mesmo as pessoas que votaram por ele estão preocupadas. Dizem que é preciso dar tempo, mas ele teve meses. É uma política recessiva. Para nós, como república, há um retrocesso. A pobreza e a fome aumentaram. Dizem que ele tem maioria, mas vamos ver o que acontece. É certo que foi votado, é um governo legítimo mas, se Milei seguir com esses políticas recessivas, vai paralisar o país. O consumo da população baixou porque as pessoas não tem como enfrentar isso. Inclusive, os grandes industriais estão preocupados.
Qual seria o caminho para a crise econômica e social na Argentina?
É preciso ter diálogo. Não há diálogo, nem sequer com as igrejas, não há nenhuma instância de diálogo do governo para atender a fome que atinge a população. Não há políticas sociais, o governo não acredita em justiça social. Se continuar como está, vai terminar mal. Vai terminar numa explosão social, que já está sendo percebida. No outro dia, vimos as marchas de estudantes contra os cortes nos orçamentos das universidades. Foi um movimento em massa pelo país.
Isso nos faz lembrar da crise do ‘Corralito’, quais são as semelhanças e diferenças deste momento atual com 2001?
Em 2001, que foi um arrebate social e econômico, as pessoas reagiram. Formaram-se as assembleias populares, as fábricas foram recuperadas. Ainda não estamos nesse momento. Mas o povo vai reagir frente a essa situação limite de fome, de pobreza. A saúde foi abandonada, os deficientes não têm recursos. Este não é o caminho. O povo vai agir de acordo com as circunstâncias. Hoje estamos chegando ao limite.
Os argentinos que ganharam o Prêmio Nobel, incluindo o senhor, passaram pela Universidade de Buenos Aires (UBA), que está em emergência orçamentária. Quais são os riscos que a educação enfrenta na Argentina?
São 57 universidades no país que estão ficando sem orçamento porque o governo não atualizou os repasses de acordo com a inflação. [Depois que a entrevista foi concedida, a Casa Rosada chegou a um acordo com as universidades]. Então, se não tem (dinheiro) para a educação, não tem para a saúde, não tem para o desenvolvimento do povo. Uma política recessiva não tem a possibilidade de se sustentar no país.
Mas muitos economistas vão dizer que a Argentina precisa cortar gastos para equilibrar as contas do governo e superar a crise...
A economia argentina pode ser corrigida, mas um governo que não está a serviço do povo está contra o povo. É preciso repatriar os capitais que retiram do país; é preciso revisar os créditos com o Fundo Monetário Internacional. (O ex-presidente Mauricio) Macri recebeu muito dinheiro do FMI [em 2018, seu governo fechou um acordo com o fundo no valor de US$ 57 bilhões], mas foi para salvar bancos e alimentar a especulação financeira. Estamos pedindo uma investigação, mas que ainda não foi aberta. A Argentina tem capacidade de produção, é possível reconstruir a economia do país, mas não vai ser por meio da especulação financeira. Espero que as novas gerações de políticos enfrentem isso, repatriem os capitais e revisem os acordos com o FMI e investiguem para onde foram esses recursos. Não é possível que o dólar suba, a pobreza aumente, mas nunca se reduza a especulação financeira, que aqui é enorme, para que as pessoas possam viver com mais dignidade. Até a classe média está empobrecida. É injusto, é imoral. Não é uma democracia.
O protocolo de segurança da ministra Patricia Bullrich restringe as manifestações, mas não conseguiu resolver o aumento da violência em Rosário. Qual avaliação que o sr. faz do governo em segurança?
Há um problema sério porque o narcotráfico tem se introduzido na província de Santa Fé, na cidade de Rosário, e as forças de segurança não tem conseguido controlar a situação. Fundamentalmente, quando há fome, (o crime organizado) se utiliza dos mais pobres para que eles sejam condutores da droga nos bairros mais necessitados. Essa atuação do narcotráfico é um problema grave não só na Argentina, mas também em muitos países.
O protocolo de segurança, em si, é limitado, mas tem sido usado para o controle social, para evitar os protestos, para reprimir e não para encontrar uma solução social, cultural e política.
E como tem sido os protestos sob o protocolo?
O protocolo diz que as manifestações não podem bloquear as ruas mas, nos protestos maiores, (as forças de segurança) não conseguem controlar. Na marcha dos estudantes universitários, por exemplo, as pessoas tomaram as ruas. Então, o protocolo só funciona para pequenos grupos e é uma medida repressiva. Não é para ajudar as pessoas, mas para reprimi-las. Estamos em um momento crítico em que os direitos humanos e os direitos democráticos estão sendo violados.
O sr. foi premiado com o Nobel da Paz pela sua atuação contra a ditadura argentina. Como é ver o governo questionar os números de vítimas?
Javier Milei, e a sua vice-presidente Victoria Villarruel, apoiam o que foi a época da ditadura. Diz que não são 30 mil (desaparecidos), mas possivelmente são mais de 30 mil. O Exército, em 1978 [cinco anos antes do fim da ditadura] disse que eram mais de 22 mil desaparecidos e mortos. São cifras oficiais. Eles se baseiam na Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep). É verdade que a Conadep registrou menos de 10 mil desaparecidos, mas isso não é um número exato.
Além disso, a questão dos desaparecidos não é um número. Houve um genocídio contra o povo na Argentina. Quem atualmente discute que seis milhões de judeus morreram nos campos de concentração? Quem discute que um milhão e meio de armênios foram mortos pelas tropas russas no genocídio armênio? Não é uma questão de números. É uma questão de como isso afetou a vida das pessoas. Eles querem negar a violação dos direitos humanos na ditadura, eu sou um sobrevivente.
Ainda na América do Sul, como o sr. avalia a inabilitação de opositores para as eleições na Venezuela?
Não concordo com a inabilitação de opositores, as eleições devem ser livres e abertas. Assim como também não concordo com Daniel Ortega, que fez o mesmo na Nicarágua. O que se chama de eleições devem ser livres e abertas.
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