Depois de sofrer o maior revés de seu governo com a queda da Lei Ônibus em fevereiro, o governo de Javier Milei na Argentina aprovou na manhã desta terça-feira, 30, uma nova versão do seu ambicioso pacote econômico. Chamada de Lei Bases, o pacote é uma versão resumida do projeto inicial do governo, que parece ter aprendido como funciona o jogo político, avaliam analistas.
Os primeiros 100 dias do governo Milei foram marcados por fortes embates políticos com deputados, senadores e governadores que compõem a sua própria base de apoio. A guerra escalou depois que a Lei Ônibus - assim chamada pelo tamanho de propostas que trazia, mais de 600 - caiu na hora de ser votada artigo por artigo no Congresso. Na ocasião, Milei chamou seus então aliados de traidores e ratos, sendo respondido com ameaças de ruptura da aliança e corte no fornecimento de petróleo e gás.
Com a queda do projeto, que é a sustentação de todo o seu programa de governo, e a subsequente queda parcial do DNU (Decreto de Necessidades e Urgências) que desregulamenta a economia e o Estado argentino, Milei precisou dar vários passos atrás e se retratar com os “traidores”. O cenário desta votação de agora foi muito diferente do primeiro, com deputados dispostos a entrar noite a fio, ultrapassando 24 horas de sessão, para avaliar o projeto.
“Parece-me que, nesta segunda versão do projeto de Lei Bases, o governo do Liberdade Avança se animou a jogar a política”, observa o analista político do Observatório Pulsar da Universidade de Buenos Aires (UBA) Facundo Cruz. “Há dois elementos que demonstram isso. O primeiro é que o projeto chegou, em condições e forma, ao recinto com um alto grau de acordo. Tanto pela velocidade com que foi tratado na comissão quanto pela extensão da discussão no recinto.”
“O segundo é que o governo entendeu, finalmente, que em um sistema federal como o argentino, que hoje está discutindo ajuste e déficit fiscal, qualquer acordo para que uma lei seja aprovada requer o consenso dos governadores. E esse consenso é alcançado com modificações tributárias que os beneficiam. Por isso desta vez a Lei Bases veio com o Pacto Fiscal”, completa.
O Pacto Fiscal, ou Pacto de Maio, foi um acordo econômico proposto por Milei durante o seu discurso na abertura do ano legislativo no qual estendeu bandeira branca aos legisladores e governadores e os convidou para a negociação de uma nova Lei Ônibus. Com este pacto, foi aprovado um pacote fiscal que também traz benefícios às províncias e não só corte de gastos.
“É um passo favorável para o governo e também uma demonstração do funcionamento democrático das instituições”, afirma o professor de economia da UBA, Fabio Rodriguez. “Vale lembrar que isso começou com uma versão muito ampla dessa lei com muitas rejeições, onde o governo tentou impô-la da noite para o dia. Bem, vieram os controles, os contrapesos e chegamos a uma versão resumida que estava bastante acordada com os blocos que acabaram apoiando, e ela saiu praticamente sem nenhuma modificação.”
É um passo favorável para o governo e é a primeira lei que sanciona após mais de quatro meses de gestão
Fabio Rodriguez, economista da UBA
“Esse trabalho vem sendo feito pelo governo após uma série de concessões e potenciais aliados para efetivamente poder demonstrar algum tipo de vitória em termos das mudanças propostas, mudanças que inicialmente eram fundamentais e de largo espectro em termos de trabalhar energia, tributação fiscal, aposentadoria, uma série de instâncias que fundamentalmente mexe com a máquina do Estado argentino”, o internacionalista e fundador do Instituto Global Attitude Rodrigo Reis.
Idas e vindas
Mas para chegar à vitória de hoje, o governo precisou abrir mãos de muitos temas que lhe eram caros, em troca da manutenção de outros. O projeto inicial tinha 664 artigos que prometiam um choque na economia e no Estado argentino. Mas foi desidratado para 279 na hora de chegar ao Congresso. O programa chegou a ser aprovado em plenária geral, mas começou a ruir quando passou para a votação trecho por trecho.
Em um movimento sem precedentes, Milei pediu para que o projeto fosse retirado de votação antes que se chegasse ao artigo das privatizações, onde parecia que ia sofrer a maior das derrotas. A manobra, porém, fez o projeto voltar à estaca zero, anulando a aprovação inicial que havia passado, em uma decisão política que até hoje analistas questionam se o governo sabia o que estava fazendo.
“Isso vem de um histórico de inúmeras derrotas que o governo Milei enfrentou nos últimos meses”, aponta Rodrigo Reis. “Havia uma grande preocupação em relação à governabilidade do presidente Milei, em termos de propor uma plataforma muito audaciosa, com mudanças radicais, mas se questionava o potencial de aprovar e implementá-las.”
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Depois da derrota, e ainda com Milei vociferando na televisão e nas redes sociais contra os “traidores”, membros do alto escalão do seu gabinete, como o ministro do Interior Guillermo Francos, e o consultor Santiago Caputo - o arquiteto da vitória de Milei nas eleições - sentaram-se à mesa de negociação com os principais partidos da direita da Argentina para viabilizar o Pacto de Maio.
O resultado foi a votação de hoje, com a Lei Bases tratando de 232 artigos, sendo que pouco mais de 220 deles foram aprovados, trazendo a primeira vitória ao governo no Congresso.
O governo conquistou vitórias em temas fundamentais de seu programa, entre eles: privatizações, mudanças nos regimes de aposentadoria, reforma trabalhista, reforma do Estado entre outros. Em troca, abriu mão de trechos controvertidos da reforma trabalhista, como cota sindical, e da privatização de algumas empresas, como Banco Nación.
Segundo o analista político Gabriel Vommaro, esta segunda versão do projeto de lei se deve ao fato de que Milei “está descobrindo como é difícil governar em geral e como é complicado governar a Argentina, e ele entende que precisa ser mais pragmático”, disse em entrevista à AFP.
A aprovação, ou meia, como enfatiza o economista Fabio Rodriguez, já que ainda falta o caminho no Senado, não é só uma vitória política, mas uma perspectiva de avanço econômico. Até agora, Milei colecionou boas notícias ao conquistar o primeiro superávit trimestral da Argentina em 16 anos e a desaceleração da inflação. Mas ao custo de um arrocho dos salários e queda do consumo.
Com este pacote, especialmente o pacote fiscal negociado por último, o governo ganha uma nova margem de manobra, com aumento de arrecadações e não fica tão dependente de uma recessão para manter seus números econômicos altos.
“O pacote fiscal que era uma necessidade, porque se estava confiando muito o ajuste sobre o corte de despesas, e este pacote vai recompor um pouco as receitas basicamente através de dois impostos: os impostos sobre a renda e os impostos sobre bens pessoais, que é o patrimônio. Então, me parece que é um dia com um sinal favorável do governo para seu funcionamento tanto para o mercado, para o contexto internacional, para o Fundo Monetário Internacional, investidores, etc”, explica Rodriguez.
Próximos passos
O desafio agora vai ser manter o tom e a habilidade de negociar quando o projeto for ao Senado, o que está previsto para ocorrer até a semana que vem.
Foi no Senado que Milei sofreu sua última derrota, quando o DNU foi rejeitado. O decreto segue em vigor porque precisaria ser derrubado também na Câmara para deixar de valer. Mas a votação mostrou ao libertário que as conversações na câmara alta também não estavam favoráveis.
“Temos que seguir de perto o Senado também”, afirma Rodriguez. “O União pela Pátria [coalizão peronista opositora] e do kirchnerismo tem 34 senadores. Se precisa de 37 para começar. Ou seja, a força opositora requer apenas mais quatro para bloquear”.
“Mas o governo também tem bastantes pontos a favor, porque esses quatro que são chave respondem a governadores que desta vez jogaram do lado do governo, inclusive governadores muito opositores, como o governo de Catamarca, por exemplo”, continua.
No Senado, o Liberdade Avança conta com apenas 7 cadeiras e pode dialogar com ao menos outras 25 que compõe a chamada oposição dialoguista. Mas a força peronista é grande, e foi ela que levou o DNU a votação antes que o governo conseguisse reunir os votos necessários para sustentá-lo.
“Os números podem enganar, mas nesse momento em diria que as forças estão muito 50% a 50%”, conclui o economista.
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