Milícias no Sudão atacam minoria castigada por genocídio e ampliam risco de nova tragédia em Darfur

Violência atinge etnia Masalit, que foge do país para sobreviver; estimativas de mortos variam de 500 a 2 mil pessoas

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Henrique Gomes
Atualização:

Durante nove horas, Ahmed Farid* caminhou 28 quilômetros que separam as cidades de El Geneina, no Sudão, e Adre, no Chade, para permanecer vivo. Com um grupo de dez homens, fugia de milícias ligadas às Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês), grupo paramilitar que iniciou uma guerra com o Exército sudanês em abril que desencadeou violência em todo o país. Na região de Darfur, onde está El Geneina, essa violência é constituída de assassinatos em massa contra a minoria étnica de Farid, a Masalit, evocando uma tragédia ocorrida na região há 20 anos.

PUBLICIDADE

Conhecida como Guerra de Darfur, o episódio é um conflito entre milícias árabes, conhecidas como Janjaweed, e povos africanos não árabes, incluindo os Masalit, que resultou em mais de 300 mil mortos entre 2003 e 2005. A ONU considera o período uma campanha generalizada de violência, assassinato e limpeza étnica promovida pelo ditador Omar Bashir. Apesar de nunca ter terminado de fato, o conflito diminuiu de intensidade e os incidentes violentos se tornaram mais esparsos.

Mas, após uma nova guerra no Sudão eclodir no dia 15 de abril em Cartum, a capital do país, El Geneina foi cercada por grupos armados no dia 24 do mesmo mês e a onda violenta atual teve início. Desde então, atiradores entram diariamente na cidade montados em jipes e motocicletas e armados de AK-47 para atirar contra civis. Estimativas de mortos variam de 500 a 2 mil pessoas, mas entidades como a ONU, Médicos Sem Fronteiras e Human Right Watch dizem que os números são difíceis de verificar por causa da gravidade da situação.

Imagem divulgada pela Maxar Technolgias mostra a área do mercado de El Geneina em 20 de abril (à esq.) e a mesma área em 17 de maio (à dir.). Cidade foi devastada por milícias ligadas as RSF, com o assassinato de milhares de civis Foto: Maxar Technologies/via AFP

As autoridades também temem uma nova guerra civil étnica. Na semana passada, o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse estar altamente preocupado com o que chamou de “dimensão étnica crescente da violência” na região, com relatos de assassinatos e violência sexual generalizada.

Publicidade

Guerra civil

Ao contrário de Cartum, em Darfur os combates acontecem entre as milícias e os moradores, que se armaram após o exército sudanês abandonar a região e deixar o campo aberto para os grupos armados aliados do RSF atacarem. Hoje, não existe nenhum aparato de segurança estatal no local. Dezenas de mercados foram destruídos, campos de ajuda queimados e hospitais fechados. Sem comida e água, milhares de civis começaram a fugir e acabaram mortos por franco-atiradores espalhados na região. Imagens mostram corpos empilhados nas ruas.

Trabalhadores humanitários também saíram da cidade devido ao risco. Nascido em El Geneina, Ahmed, de 33 anos e também trabalhador humanitário, permaneceu lá até o último dia 12. Durante dois meses e meio, protegeu-se com a família dos ataques e ofereceu ajuda às vítimas do hospital local. Também manteve contato com colegas estrangeiros pela internet para informar sobre a situação da cidade.

No dia 19 de maio, Ahmed deixou de fazer contato. Ninguém soube dele durante cerca de 20 dias, até reaparecer no último dia 10. A internet de El Geneina fora cortada, deixando-o sem comunicação externa. Somente quando conseguiu chegar ao prédio vazio da Unicef que fica na cidade é que teve acesso a uma rede wi-fi. Preocupou-se em avisar que estava vivo e que tentava sair do país para não morrer. Por ser masalit e atuar em ajuda humanitária, em contato com entidades internacionais, tornara-se um alvo visado pelas milícias.

Por causa do isolamento em El Geneina, organizações internacionais não sabem a real gravidade da violência na cidade e na região do Darfur. Somente após a chegada de civis no Chade, o país mais próximo da fronteira, é que se passou a ter uma dimensão da tragédia. No dia 13, a ONU emitiu uma declaração dizendo estar incapaz de verificar a situação, mas que os relatos indicam ataques com base em identidades étnicas. “(Os ataques são) supostamente cometidos por milícias árabes e alguns homens armados com uniforme da RSF”, diz o comunicado.

Publicidade

A travessia

Nos dias em que permaneceu em El Geneina, Ahmed Farid viu a situação se deteriorar cada vez mais, com corpos mortos se acumulando pelas ruas e pessoas cada vez mais próximas entre as vítimas. “Dia após dia, vi muitas pessoas morrerem. Vi crianças, idosos e mulheres perderem as suas vidas, sem comida, sem água. Todos os dias, Janjaweeds atacaram a cidade entre seis da manhã e seis da noite”, contou ao Estadão no dia 16, após chegar em Adre, no Chade.

A travessia até a cidade no país vizinho foi feita a pé. Ahmed saiu de El Geneina com um grupo de dez masalit, incluindo o sultão, às dez da noite. Deixou para trás a mãe, irmãs e outros parentes. Caminharam pela planície desértica durante nove horas, desviando-se no caminho para parar em vilarejos de nômades e fugir de emboscadas dos grupos armados ligados à RSF. Ao chegar em Adre, na manhã do dia 13, se juntaram a cerca de outros 6 mil moradores de El Geneina que fogem desde que o conflito começou.

Segundo o diretor do hospital local de Adre, Mahamoud Adam, 800 feridos estavam na unidade na segunda-feira, 19. O número é quatro vezes maior que a capacidade regular, de 200 pacientes. Em um comunicado, Adam solicitou a ajuda internacional para conseguir atendê-los.

Ahmed começou a prestar assistência na unidade hospitalar no dia seguinte à chegada em Adre para cuidar dos masalit que haviam cruzado a fronteira como ele. Também passou a anotar o número de pessoas que se perderam, foram mortas ou chegaram feridas à Adre. Em três dias, registrou mais de mil desaparecidos, 700 feridos e 254 mortos na estrada que atravessou dias antes. Depois, soube que os vilarejos que ele havia passado no caminho sofreram ataques das milícias.

Publicidade

Mulheres e crianças sudanesas que fugiram do Sudão improvisam tendas à espera de ajuda, em Koufroun, no Chade. Travessia pela fronteira aumentou desde início da guerra Foto: Yagazie Emezi/The New York Times

O masalit conversou com a reportagem do Estadão entre os dias 16 e 20. Devido a baixa conexão de internet, não foi possível conversar por videochamada, somente por mensagem. Às 18h do sábado, escreveu: “Costumo ir à fronteira verificar as pessoas que chegam, posso encontrar minha mãe e minhas irmãs, mas infelizmente elas não chegaram e ninguém sabe o que aconteceu com elas”.

Uma hora depois, enviou outra mensagem: “Conheci uma família que quatro pessoas foram mortas quando estavam cruzando a fronteira”. Nesta terça-feira, 20, ele informou que a mãe e as irmãs chegaram a Adre.

Apesar da chegada, a cidade não é considerada segura devido à proximidade com o Sudão. Ahmed espera sair o mais breve possível, agora que está junto com familiares. “Muitas pessoas de El Geneina estão aqui. Talvez alguns Janjaweed ou RSF estejam a caminho para nos caçar”, disse.

Conflito histórico

Historicamente, a região de Darfur vive disputas étnicas entre grupos árabes e africanos não árabes que se relacionam à conquista de terra para subsistência, ocasionada pela expansão demográfica e mudanças climáticas. O primeiro conflito aconteceu entre povos árabes e africanos da etnia Fur durante uma seca na região em 1987.

O episódio mais evidente aconteceu entre 2003 e 2005, quando grupos das etnias Fur, Zagauas e Masalit se rebelaram contra o governo, comandado pelas elites árabes do país. O então ditador do país, Omar Bashir, e os militares sudaneses recrutaram milícias, conhecidas como Janjaweed, para reprimir a rebelião. Além de 300 mil mortos, outras 2,7 milhões de pessoas foram deslocadas, segundo a ONU. Bashir foi acusado de genocídio pelo Tribunal Penal Internacional por causa do episódio.

Imagem de fevereiro de 2019 mostra o ditador Omar Bashir durante um discurso no Palácio Presidencial em Cartum. Entre 2003 e 2005, Bashir promoveu violência de milícias contra etnias do Sudão Foto: Mohamed Nureldin Abdallah/Reuters

Em 2005, um acordo de paz foi firmado. Os grupos armados se dividiram e outros surgiram nos anos seguintes. O conflito nunca terminou de fato. Em 2008, 2012-13 e 2016 houve picos de maior violência. Nessa época, uma parte dos milicianos Janjaweed, por articulação de Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemeti, se transformaram nas Forças de Apoio Rápido e foram integrados ao Estado sudanês. Outras milícias continuaram com o status anterior ou se tornaram grupos rebeldes. Hemeti virou o comandante da RSF.

A ditadura de Omar Bashir chegou ao fim em 2019 após protestos civis que culminaram em um golpe militar do Exército sudanês com apoio dos paramilitares do RSF. Uma junta militar foi criada, mas os sudaneses continuaram a protestar para exigir um governo civil. No dia 3 de junho de 2019, manifestantes que protestavam em uma base militar de Cartum foram massacrados pelos paramilitares do RSF. Cerca de 130 pessoas morreram e outras centenas ficaram feridas, forçando a criação de um governo de transição civil-militar.

Em Darfur, as milícias árabes e os africanos não árabes continuaram em um conflito de baixa intensidade. Com a criação do governo de transição, a maioria dos movimentos africanos aceitaram negociar e um novo acordo de paz foi criado. O Acordo de Juba, como ficou conhecido, deu espaço a cinco movimentos do Darfur que pretendiam se tornar partidos políticos. Isso irritou os grupos árabes, que se sentiram traídos por perder espaço e passaram a intensificar os ataques em comunidades e campos de deslocados que resultaram em 100 a 200 mortos a cada episódio.

Publicidade

Governador assassinado

Um dos líderes políticos a ganhar espaço com o Acordo de Juba foi Khamis Abdullah Abakar, um masalit que se tornou notório na década de 90 na defesa das tribos de sua etnia. Ele se tornou governador de Darfur do Oeste, um dos cinco Estados que compõem o Darfur e que tem El Geneina como capital. No último dia 14, Abakar foi detido pela RSF e morto.

Horas antes do assassinato, Abakar declarou em uma entrevista que a RSF era responsável pela onda de violência na região. O grupo trava a guerra nacional com o Exército do Sudão e é acusado de apoiar as milícias que estão no Darfur, incluindo El Geneina.

A morte de Abakar aumentou a preocupação de que os líderes dos dois grupos nacionalmente em guerra – o chefe das forças armadas, o general Abdel Fattah al-Burhan, e o líder da RSF, Hemeti – não se esforcem para controlar o conflito. Desde que os embates começaram, as negociações de paz lideradas por diplomatas americanos e sauditas não conseguiram mediar um cessar-fogo duradouro. Ambas partes se acusam mutuamente de ferir os armistícios. Desta vez, também se acusam mutuamente de agravar a crise que culminou na morte do governador.

Pessoas caminham entre objetos espalhados no mercado de El Geneina, capital de Darfur Ocidental, em 29 de abril de 2023. Situação se deteriora na cidade a cada dia com ataques de milícias do país  Foto: AFP

El Geneina é um das faces mais violentas do conflito, com a dimensão trágica que pode repetir o massacre étnico do início do século. Localizada próxima à fronteira do Sudão com o Chade, a cidade é considerada estratégica para o RSF, que se estabeleceu como a principal guarda das fronteiras desde que começou a fazer parte oficialmente do Estado sudanês. A cidade também desperta interesse por ser rota de comércio, tráfico e, possivelmente, de escoamento do garimpo – principal negócio de Hemeti, comandante da força paramilitar.

Publicidade

Em todo o Sudão, os combates já deslocaram 2,2 milhões de pessoas e causaram milhares de mortes, segundo as estimativas de médicos sudaneses. O chefe do Comitê Internacional de Resgate, um grupo de ajuda, David Miliband, alertou recentemente que o país está a caminho de se tornar “a próxima Síria”. “A maior crise humanitária do mundo, tanto em termos de pessoas necessitadas quanto de deslocamentos para países vizinhos”, declarou ao jornal The New York Times.

*Nome fictício para preservação da segurança