Mikhail Gorbachev, o ex-líder soviético que morreu nessa terça-feira, 30, aos 91 anos, representa a antítese do atual presidente russo, Vladimir Putin. Ele não anteviu nem desejava o fim do império soviético — que Putin tem a fantasia de reconstituir —, mas não colocava seus desejos acima da realidade. Num século 20 dominado por líderes que fizeram história causando guerras e genocídios, Gorbachev mudou o mundo permitindo o florescimento da paz e da democracia.
Conheci Gorbachev na redação do Estadão, em dezembro de 1992, quando o jornal passou a publicar uma coluna mensal dele. Quando ele assumiu o poder, em 1985, a União Soviética estava em profunda decadência, com uma economia disfuncional, uma burocracia comunista que se servia do Estado e uma guerra sem sentido no Afeganistão, que drenava as poucas energias do império. Gorbachev entendeu que a inércia levaria o país a um fim trágico, e lançou duas políticas tão marcantes que ficariam conhecidas no mundo por seus nomes em russo: glasnost (abertura) e perestroika (reestruturação).
Gorbachev reconheceu que a superioridade tecnológica e econômica dos Estados Unidos, Europa e Japão era consequência de seus modelos democráticos liberais.
O líder soviético aceitou uma distensão com os Estados Unidos, que criou uma onda de otimismo no mundo, até então atormentado pelo pesadelo de um Armagedom nuclear. Em dezembro de 1987, ele assinou um tratado com o então presidente americano Ronald Reagan que previa a destruição do estoque de mísseis nucleares de alcance intermediário. Seria o primeiro de vários acordos dessa natureza.
A imprensa soviética passou a ter uma liberdade sem precedentes de criticar o governo. Um novo parlamento bicameral foi instituído, o Congresso dos Deputados do Povo, com eleições diretas para uma parte de seus representantes, que por sua vez nomeavam um Soviete Supremo dotado de poderes reais no governo.
Gorbachev ordenou a retirada das tropas do Afeganistão em 1989. No mesmo ano, o Muro de Berlim caiu e os países do Leste Europeu se liberaram do jugo soviético, sem que tanques russos fossem despachados para suas capitais para reprimir esses movimentos, como ocorrera nas décadas anteriores. Essa atitude lhe valeu o Prêmio Nobel da Paz de 1991.
Gorbachev, no entanto, não pretendia ver o fim da União Soviética. Ao contrário. Suas reformas tinham como objetivo assegurar a sobrevivência do império. Tanto que não permitiu a independência das 15 repúblicas que a compunham. Estive no Azerbaijão este ano, onde Gorbachev é odiado até hoje por ter enviado tropas para reprimir a independência da república. Em Baku, há um memorial, a Alameda dos Mártires, que inclui os mortos naquela invasão de janeiro de 1991.
Mesmo assim, Gorbachev enfrentou as resistências da burocracia comunista, que não queria ceder poder. Em agosto de 1991, ele foi confinado em sua dacha (casa de veraneio) na Crimeia, por golpistas liderados por integrantes de seu próprio governo. Foi salvo por um movimento encabeçado pelo então presidente da República Russa, Boris Yeltsin.
O episódio acelerou o fim da União Soviética, ao abrir caminho para a ascensão de Yeltsin e expor as forças revisionistas no Kremlin. O presidente russo firmou no dia 8 de dezembro daquele ano os Acordos de Belovezh com os governantes da Ucrânia e da Belarus, substituindo a URSS pela Comunidade dos Estados Independentes. Isso esvaziou o poder central soviético e, com ele, o cargo de Gorbachev. No dia 25 de dezembro de 1991, ele renunciou ao cargo e a bandeira soviética deu lugar à da República Russa no mastro do Kremlin.
Putin era espião da KGB, o serviço secreto soviético, e assistiu à queda do Muro em Berlim, onde servia. Voltou para sua cidade natal, Leningrado, depois rebatizada de São Petersburgo, e ali viu desmoronar tudo aquilo por que trabalhara em sua vida. Nasceu nele uma obsessão de restaurar o império. Em 2005, já presidente, em seu discurso sobre o Estado da União, Putin declarou que o colapso da União Soviética foi “a maior catástrofe geopolítica do século”.
A repressão sangrenta do separatismo na Chechênia, assim como as invasões da Geórgia, em 2008, e da Ucrânia, em 2014 e neste ano, partiram dessa convicção. As fantasias imperialistas de Putin trouxeram de volta para o mundo angústias que Gorbachev ajudara e dissipar.
*Coluna publicada excepcionalmente nesta terça-feira
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