Até então visto como uma certeza dos democratas, o voto latino virou uma disputa nas eleições de meio de mandato desta terça-feira, 8, nos Estados Unidos. Diante da decepção com a economia, a baixa popularidade de Joe Biden e uma intensa campanha republicana focada em inflação e criminalidade, o eleitorado latino dá sinais de que esta fidelidade democrata pode não ser uma regra, já que a diferença de apoio entre os dois partidos vem diminuindo. Um fenômeno que foi rapidamente notado pelo Partido Republicano.
Segundo a pesquisa Washington Post-Ipsos conduzida no início de outubro, cerca de 63% dos latinos disseram que pretendiam votar em democratas para o Congresso, contra 36% de republicanos, números que seguem a tendência histórica. Porém, as primeiras projeções nesta quarta-feira, 9, mostraram uma diferença menor: 60% dos votos foram para democratas contra 40% para republicanos, segundo projeção da NBC News.
Além disso, estudos apontam para uma redução da distância entre os dois partidos nos últimos anos. Uma pesquisa conduzida pelo Wall Street Journal em agosto e repetida nos últimos dias de outubro, publicada um dia antes das midterms, mostra que democratas lideravam entre o eleitorado latino por 5 pontos percentuais em outubro, contra 11 pontos de distância em agosto.
Em 2020, o voto latino favoreceu Joe Biden com 28 pontos a frente de Donald Trump, enquanto nas midterms de 2018 - que tiveram uma participação histórica do eleitorado latino - a diferença que garantiu a atual maioria democrata na Câmara foi de 31 pontos percentuais, segundo o AP VoteCast. A pesquisa do jornal americano capturou que latinos, e também americanos negros, estão cada vez mais migrando para apoiar republicanos.
“Há uma narrativa de que os latinos são democratas por padrão e isso é um erro que quase todos nós que tentamos interpretar a política dos Estados Unidos como algo preto e branco caímos quando se trata de latinos”, afirma Maria Isabel Puerta Riera, professora de Ciência Política e Política Internacional no Valencia College da Flórida. “O que houve foi uma forte maioria de votos indo para os democratas, mas o Partido Republicano também sempre contou com os votos dos latinos conservadores como cubano-americanos e agora venezuelanos”.
O motivo para isso, segundo várias pesquisas de intenção de votos, é o desempenho da economia americana durante o governo democrata. Repetindo o cenário nacional, o eleitorado latino está refletindo seu descontentamento com a inflação, não está sentindo a melhora na taxa de desemprego e tem respondido às pautas conservadoras discutidas na Suprema Corte e Legislativo, como aborto e armamento. Em 2022, quase 35 milhões de latinos são elegíveis para votar, o que corresponde a 14% do eleitorado americano. É o segundo maior grupo étnico hábil para votar, menor apenas que os cidadãos americanos brancos.
Nas eleições de 2018, o importante swing state da Flórida deu sinais de que a não-comunicação com este eleitorado poderia ter um preço alto. O partido perdeu o Estado aquele ano por uma margem muito apertada, o que estrategistas democratas disseram ao Post que poderia ter sido evitado se tivessem investido nos 2,5 milhões de latinos registrados no Estado.
Na eleição para governador este ano, o republicano Ron DeSantis - que ficou famoso por fretar voos com migrantes venezuelanos para Estados democratas - saiu como grande vitorioso deste pleito, especialmente no condado de Miami-Dade de maioria hispânica que em 2018 o rejeitou. O republicano Marco Rubio, de origem cubana, também levou um assento no Senado da Flórida.
Medo do socialismo
No Estado do Texas, onde a população latina já ultrapassou a maioria branca americana, republicanos esperavam ganhar espaço nas grandes cidades, até então leais a democratas, e expandir seu apoio para além da fronteira sul, onde o fluxo migratório costuma ser sua pauta motora. Em uma enorme vitória, a republicana Monica De La Cruz, de origem mexicana, virou o jogo em um tradicional assento democrata em South Texas House, no sul.
“A única coisa que o Partido Republicano tem feito é aumentar sua estratégia e se dirigir especificamente ao eleitor de origem latina, sabendo que não vão conseguir uma esmagadora maioria como o Partido Democrata, mas o suficiente para tirar uma porcentagem mínima em lugares como Miami e na fronteira do Texas”, diz Puerta Riera.
A segurança em torno do eleitorado latino pode ter sido o que, agora, traiu os democratas, apontam Puerta Riera e vários analistas ouvidos pela imprensa americana. O partido pouco investiu nas campanhas para este público, enquanto os republicanos apostaram em uma retórica que funciona bem para este eleitorado: o medo do socialismo e da criminalidade.
A venezuelana Fernanda mora há 13 anos no estado do Texas e se define como uma independente, mas este ano vai votar republicano. Não está escolhendo candidatos, afirma, mas optando pelo partido, porque vê um desequilíbrio nos democratas atualmente. Ela pediu ao Estadão para não ter a identidade revelada frente ao ambiente polarizado do país.
Seu medo é acontecer nos EUA o que aconteceu na Venezuela caso um governo de esquerda ganhe tanto poder, diz, por isso, busca o equilíbrio de um legislativo republicano em contraponto a um executivo democrata. Na eleição anterior votou democrata, não porque aprovava Joe Biden, mas porque Trump era intolerável.
“Os republicanos têm tido muito sucesso em gerar medo com o socialismo, conectando o socialismo com o Partido Democrata”, afirma Puerta Riera. “E está sendo bem sucedido porque essa é uma população que não sabe distinguir ou entender bem o que é o socialismo e simplesmente associa um partido que não é conservador com a esquerda”. De acordo com o Pew Reserach Center, mais de 53% dos latinos tem uma visão negativa do socialismo, o número salta para 77% entre os latinos republicanos.
Economia e Trumpismo
O ponto-chave que, até o momento, impede os latinos de apoiarem com mais força os republicanos é a figura de Donald Trump. Se o partido conseguisse se “desradicalizar”, como dizem latinos ouvidos pelo Estadão, considerariam votar republicano.
Para o professor Relações Internacionais da FGV, Vinicius Vieira, no entanto, o partido nem precisaria se desradizalizar tanto, basta apresentar um “trumpismo light” para atrair esse voto. Um estudo feito pelo Pew Research Center em agosto corrobora essas afirmações, já que 73% deste eleitorado diz não querer ver Trump como uma figura política nacional.
Segundo o levantamento feito com mais de 3 mil eleitores de origem latina, a Economia é de longe o tema mais importante na hora de decidir o voto, com 80% de relevância. A visão econômica liberal do Partido Republicano agrada ao eleitorado latino, que vê maiores possibilidades de prosperar, mas são desestimulados pelas pautas sociais do partido.
É o que acontece com o administrador de empresa Jorge Martínez, de 31 anos, morador de Houston, no Texas, e de origem mexicana. Ele diz ver benefícios nas políticas econômicas dos republicanos, mas vota democrata pela crenças sociais. “Da parte do trabalho, do financeiro, os impostos e essas coisas [a visão republicana] nos beneficiariam de alguma forma, mas não equivale a um valor humano, ao que cada um acredita e o que você sabe que é o certo, e é por isso que estou mais inclinado para o lado democrata”, diz.
Com uma taxa de inflação acima dos 8%, que atinge com muito mais força as pessoas mais pobres e minorias, a Economia é o tema que o eleitorado em geral aponta como decepcionante. Além do poder de compra, minorias como latinos e também o eleitorado negro não estão se beneficiando da queda na taxa de desemprego do país, que tem atingido muito mais as classes médias. A isso se soma uma taxa de desaprovação do governo Joe Biden de 53%.
O aborto como tema relevante
A tábua de salvação do Partido Democrata tem sido as pautas cada vez mais conservadoras dos Republicanos que, embora se comuniquem com um eleitorado latino religioso - especialmente os católicos - causa afastamento nos jovens, principalmente aqueles que já nasceram no país.
São essas pautas que afastam completamente a americana de origem brasileira Melissa Flores, de 27 anos, dos republicanos. “Essa discussão que está acontecendo agora é uma das razões pelas quais eu jamais olharia para o lado republicano para votar, porque eles têm sido muito radicais”, diz. Tanto ela quanto os pais, que emigraram do Rio Grande do Sul em meados dos anos 1980, votam democrata e consideram outros temas polarizadores na hora da escolha, como a política de armas.
Depois da decisão da Suprema Corte de rever a jurisdição da lei de aborto, o tema saltou em importância para os latinos, mesmo entre aqueles religiosos. Em março, 42% dos latinos diziam que o aborto era um tema que influenciava seu voto. Em agosto, após a mudança em Roe versus Wade, esse número saltou para 57%, a maior variação percentual no levantamento da Pew Research Center.
Puerta Riera, no entanto, crê que o impacto da decisão da Suprema Corte pode ser ainda maior do que o estudo sugere, com base em sua percepção pessoal entre seus alunos e conhecidos na Flórida. Uma percepção corroborada pela pesquisa do Washington Post-Ipsos, que colocou o aborto como o segundo tema mais importante entre os latinos, atrás apenas da economia.
É por isso que especialistas apontam que, tão importante quanto olhar a variação do voto latino nessas eleições, será olhar a participação dos jovens latinos secularizados, ou seja, que não possuem tanta influência da religião. É o caso de Jorge Martinez que, apesar de ser católico e se sentir mais sensível com relação à pauta desde que se tornou pai este ano, diz não concordar com o que vê como limitação do direito das mulheres.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.